sábado, 4 de maio de 2013

Boleslaw Prus (O Realejo)


Bolesław Prus, batizado com o nome de Aleksander Głowacki, nasceu em 20 de agosto de 1847, em Hrubieszów, na Polônia, descendente de uma família de nobres empobrecidos. Já na mais precoce juventude, viveu experiências como revolucionário e prisioneiro que marcaram decisivamente sua obra artística. Aos 25 anos, principiou uma grande carreira jornalística, na qual atuaria por quatro décadas. Prus, que serviu sua nação como soldado, filósofo e escritor, e com sua obra assegurou um lugar de destaque no panteão da literatura universal, não chegou a vivenciar a independência definitiva da Polônia, depois do fim da Primeira Guerra Mundial: morreu em Varsóvia, em 19 de maio de 1912.
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 Na Rua Miodowa, por volta do meio-dia, via-se diariamente um senhor de certa idade, a caminhar da Praça dos Krasinski em direção à Rua Senatorska. Durante o verão, usava elegante capote azul-marinho-escuro e cartola já um tanto surrada. Tinha o rosto rosado, suíças grisalhas e olhos claros, bondosos. Andava meio inclinado, com as mãos nos bolsos. Se o tempo era bom, sobraçava uma bengala; nos dias nublados, carregava um guarda-chuva inglês de seda.

Caminhava devagar, abismado em profundas meditações. Diante da igreja dos Capuchinhos, tocava piedosamente na cartola e atravessava a rua para observar na vitrina da Pik a elevação do barômetro e do termômetro; depois, voltava à calçada direita, parava em frente da vitrina da Mieczkowsky, contemplava as fotografias de Modrzejewska e retomava o passeio, cedendo o lugar a cada transeunte; e se alguém o empurrava, sorria com benevolência. Cruzando alguma jovem bonita, punha os óculos para vê-la melhor. Mas, como executasse a operação bem devagar, quase nunca lograva êxito.

Este cavalheiro era o Sr. Tomás. Havia trinta anos que percorria a Rua Miodowa, e por vezes pensava que muita coisa nela tinha mudado. A rua poderia pensar o mesmo a respeito dele. Quando ainda advogado num tribunal de paz, corria tão depressa que nenhuma costureirinha, de volta da loja para casa, conseguiria escapar-lhe. O Sr. Tomás era então alegre, loquaz, esbelto, tinha cabeleira, e bigode retorcido.

Já naquela época o impressionavam as belas-artes, porém não lhes consagrava o seu tempo, porque era louco pelas mulheres. Freqüentemente fora bem-sucedido com elas e tivera boas oportunidades de casar; mas a isso ligava pouca importância, e nunca se lhe oferecia ocasião para declarar-se, ocupado que estava com a profissão ou com os encontros amorosos. Depois de haver visitado a Chiquita, dirigia-se ao tribunal, de onde corria à casa da Sofia, a quem deixava tarde para jantar com a Josefina e a Filka.

Ao ser nomeado advogado junto a um tribunal mais alto, já tinha a testa crescida até o topo da cabeça, em conseqüência do árduo trabalho mental, e apontavam-lhe no bigode uns fios brancos. Perdera o ardor juvenil, possuía razoável fortuna e passava por um conhecedor das belas-artes. E, como continuasse a amar as moças, começou a pensar em casar-se. Alugou um apartamento de seis quartos, mandou pavimentá-lo, cobriu as paredes de papéis pintados, comprou lindos móveis e foi à procura de uma esposa.

Porém não era fácil a escolha para um homem maduro. Uma era jovem demais; a outra, ele a namorava desde muitíssimo tempo; a terceira tinha aparência e idade adequadas, mas gênio impróprio; a quarta, de aparência, idade e gênio apropriados, não aguardou a declaração do advogado e casou com um médico.

Não se afligia muito o Sr. Tomás: mulheres não faltavam. Entretanto completava o arranjo do aposento, cuidando cada vez mais de que as menores peças tivessem valor artístico. Mudava os móveis, deslocava os espelhos, comprava quadros.

Com o correr do tempo, o apartamento se tornara famoso. O Sr. Tomás, não se sabia quando, transformara a casa numa verdadeira galeria. O número de amigos e curiosos que iam visitá-la aumentava sempre, tanto mais que o dono era muito hospitaleiro, dava recepções excelentes e mantinha relações com alguns músicos. Aos poucos, iam-se organizando em sua residência vesperais de concertos, honradas também com a presença de senhoras. O Sr. Tomás recebia a todos com muita fidalguia.

Verificando, nos espelhos, que a testa já lhe ultrapassara o topo da cabeça e se aproximava, por trás, do colarinho impecavelmente branco, lembrava-se de que, fosse como fosse, era tempo de tomar estado; tanto mais quanto os seus sentimentos em relação ao belo sexo se mantinham calorosos.

Certa vez, ao receber uma companhia mais numerosa que de costume, uma das moças, contemplando os salões, exclamou:
— Que quadros! E este parquete, que beleza! A esposa do senhor será muito feliz!
— Será, se o belo parquete lhe bastar para a felicidade — observou baixinho um bom amigo do advogado.

O ambiente do salão fez-se muito alegre. O Sr. Tomás sorriu também, mas desde aquele dia, se alguém lhe falava em casamento, ele se limitava a um gesto de desdém, dizendo apenas:
— Ih, ih, ih!

Nessa época, rapou o bigode e deixou crescer as suíças. A respeito das mulheres, continuava a exprimir-se muito respeitosamente, desculpando-lhes os defeitos com larga indulgência.

Nada mais esperando da sociedade, pois já tinha abandonado a profissão, o advogado concentrou nas artes os seus tranqüilos afetos. Um lindo quadro, um bom concerto, uma pré-estréia, eram acontecimentos marcantes na sua vida. Não se extasiava, não se agitava: saboreava.

Nos concertos, escolhia sempre um lugar longe da platéia, para ouvir a música sem perceber nenhum outro ruído e sem ver os artistas. Antes de ir ao teatro, lia a peça, a fim de poder observar sem curiosidade febril o desempenho dos atores. Quando não havia muita gente na galeria, admirava os quadros. Passava ali horas inteiras.

Se gostava de uma coisa, dizia:

— Vocês sabem, isto não está mau!

Era um desses poucos entendidos que logo reconhecem um talento. Mas nem por isso condenava as obras medíocres.

— Aguardem um pouco — dizia, ao ouvir criticarem um artista. — Talvez ele melhore.

E assim continuava, sempre indulgente com as imperfeições humanas, sem jamais comentar as falhas.

Felizmente nenhum dos mortais é de todo livre de extravagâncias. Não o era o Sr. Tomás. Odiava ele os realejos e os homens que os tocam.

Ao sentir na rua os sons de um realejo, acelerava o passo e perdia o bom humor por algumas horas. Apesar de tão calmo, agitava-se; de tão silencioso, gritava; de tão brando, encolerizava-se, ouvindo o primeiro toque de um realejo.

Longe de esconder esta fraqueza, explicava-a:

— A música — dizia, fora de si — é a coisa mais sutil, mais espiritual que existe; no realejo, todo esse espírito se transforma em execução mecânica num instrumento de banditismo; pois que são os tocadores de realejo, senão uns bandidos? Por isso — acrescentava — os realejos irritam-me; e como só tenho uma vida, não quero desperdiçá-la escutando essa música detestável.

Uma pessoa malévola, conhecendo-lhe a aversão às caixas de música, lembrou-se de lhe pregar uma peça: mandou dois realejistas tocarem sob suas janelas. O Sr. Tomás adoeceu de indignação, e depois, tendo descoberto o autor, provocou-o a duelo. Foi preciso convocar-se um tribunal de honra, para evitar derramamento de sangue por motivo aparentemente tão frívolo.

O edifício onde morava o Sr. Tomás mudou algumas vezes de proprietário. E cada um deles, naturalmente, considerava de seu dever aumentar o aluguel de todos os inquilinos, principalmente do Sr. Tomás. O advogado pagava sem protesto os aumentos, mas, de cada vez, estipulava no contrato, com todos os efes-e-erres, que não poderiam tocar realejo no quintal do edifício.

Independentemente das restrições contratuais, sempre que chegava novo vigia o Sr. Tomás o chamava ao seu apartamento e tinha com ele mais ou menos esta conversa:

— Escute, amigo... Seu nome?

— Casimiro, senhor.

— Escute, Casimiro: cada vez que eu voltar para casa tarde e você me abrir a porta, terá vinte groszy. Entendeu?

— Entendi, Excelência.

— Além disso, você terá de mim, no fim de cada mês, dez zlotych. Sabe para quê?

— Não posso saber, Excelência — respondia o vigia, todo alvoroçado.

— Para que você nunca deixe entrar ninguém com realejo no quintal. Entendeu?

— Entendi, Excelência.

O apartamento do Sr. Tomás compunha-se de duas partes. Quatro grandes cômodos tinham janelas para a rua; dois menores, para o quintal. A parte mais elegante do apartamento destinava-se aos convidados. Aí se realizavam os banquetes, aí eram recebidos os clientes, aí se hospedavam parentes e conhecidos do advogado, vindos da roça. Raramente o Sr. Tomás aparecia nessa parte — apenas para ver se o parquete estava bem encerado, se os móveis não se estragavam e se lhes tinham tirado a poeira.

Quando ficava em casa, levava dias inteiros no gabinete, do lado do quintal; lia, escrevia cartas ou examinava documentos dos conhecidos que lhe pediam conselho. Se queria descansar a vista, sentava-se numa poltrona ao pé de uma das janelas e, acendendo um charuto, abismava-se em meditações. Sabia que o pensamento constituía função muito importante da vida, função que um homem cuidoso da saúde não devia desprezar.

Do outro lado do quintal, em frente das janelas do Sr. Tomás, havia um apartamento alugado a pessoas de menores recursos. Muito tempo morou ali um velho funcionário do tribunal, que, tendo perdido o seu posto, se mudou para Praga. Depois, um alfaiate alugou o pequeno apartamento; mas, como gostava de embriagar-se de vez em quando, e então fazia barulho, foi despejado. Veio em seguida a viúva de um funcionário, a qual passava o tempo a brigar com a empregada. Mas no dia de S. João uns parentes da província vieram buscar a velha, já muito decrépita (aliás, relativamente rica), e levaram-na consigo, apesar do seu gênio altercador. O apartamento foi ocupado por duas senhoras e uma menina de uns oito anos.

As senhoras viviam do seu trabalho: uma cosia, a outra fazia meias e coletes numa máquina de tricotar. A menina chamava mãe à mais jovem e bonita das mulheres, e tratava a outra por "senhora".

Tanto as janelas do Sr. Tomás como as das novas moradoras ficavam abertas o dia inteiro. Assim, sentado na sua poltrona, podia o advogado ver perfeitamente o que se passava no apartamento das vizinhas, cujos móveis eram modestos para aquele local. Nas mesas e nas cadeiras, no sofá e na camiseira viam-se panos para costurar e novelos de algodão para meias.

De manhã as moças varriam, elas mesmas, o apartamento; ao meio-dia, mais ou menos, uma criada lhes trazia o almoço parco.

Durante o resto do dia, as duas mulheres quase não deixavam as sussurrantes máquinas.

A criança ficava, em geral, sentada à janela. Tinha cabelos pretos e um lindo rostinho, mas era singularmente pálida e de uma calma excessiva. Às vezes, com duas agulhas de tricô, fazia uma cinta com um pouco de linho ou de algodão. Outras vezes, brincava com uma boneca, vestindo-a e despindo-a repetidamente, a custo. Em outras ocasiões, não fazia nada; permanecia sentada à janela, à escuta.

Nunca o Sr. Tomás a ouviu cantar nem a viu correr pelo quarto, nem lhe enxergou nunca um sorriso nos lábios exangues e no rosto impassível.

— "Que menina esquisita!" — dizia consigo.

E entrou a observá-la mais atentamente.

Certo dia — um domingo — notou que a mãe dera à criança um pequeno ramozinho de flores. A menina animou-se, separou e juntou as flores, beijou-as. Finalmente fez delas outro ramo e o pôs num copo de água, sentou-se à janela a disse:

— Mamãe, está muito triste aqui, não é?

O advogado espantou-se. Como? Triste aquela casa onde ele vivera de bom humor tantos anos?

Outro dia, por volta das quatro horas, o advogado encontrava-se de novo no seu gabinete. A essa hora o Sol batia na janela das vizinhas, aclarando-a e aquecendo-a bastante. O Sr. Tomás olhava para o outro lado do quintal. De repente botou os óculos, como se houvesse algo extraordinário. Eis o que era: A pálida menina, apoiando a cabeça no braço, quase se deitara de costas para a janela, e com os olhos escancarados fitava o Sol. No seu rosto, de ordinário tão impassível, refletiam-se agora alguns sentimentos, um pouco de alegria, um pouco de tristeza.

— "Ela não vê" — disse consigo o Sr. Tomás, baixando os óculos.

E só de pensar como se podia fitar assim o Sol, que parecia lançar fogo, sentia doerem-lhe os olhos.

De fato, a menina era cega havia dois anos. Aos seis, adoecera de estranha moléstia, que a deixou desacordada algumas semanas, e depois a tornou tão débil que ela ficava estendida na cama, sem se mover, sem falar, como se estivesse morta. Davam-lhe vinho e canja, a assim se refazia aos poucos. Mas no primeiro dia em que se pôde sentar na cama, perguntou à mãe:

— Mamãe, agora é noite?

— Não, minha filha... Por que é que você pergunta?

A criança não respondeu; tinha sono. Só no dia seguinte, ao chegar o médico, perguntou de novo:

— Ainda é noite?

Então compreenderam que estava cega. O médico examinou-lhe os olhos e disse que era preciso aguardar.

Mas a doente, à medida que recuperava as forças, preocupava-se cada vez mais com aquela enfermidade:

— Mamãe, por que não posso ver a senhora?

— Porque você tem os olhos tapados. Mas isso há de passar.

— Quando?

— Daqui a algum tempo.

— Amanhã, talvez?

— Dentro de alguns dias, minha filha.

— Então, quando isto passar, mamãe, me avise imediatamente, porque, assim como estou, fico muito triste, por não ver nada.

Dias e semanas decorreram em expectativa. A menina principiou a levantar-se. Aprendeu a andar no quarto às cegas, vestia-se e despia-se sozinha, mas com vagar e cautela. A vista, porém, não voltava.

Um dia, ela disse:

— Mamãe, o meu vestido é azul, não é?

— Não, minha filha, é cinzento.

— Você o vê?

— Vejo-o, sim, querida.

— Como se fosse dia?

— Sim.

— E eu, eu também voltarei a ver tudo daqui a poucos dias? Dentro de um mês, por exemplo?

Como não obtivesse resposta, continuou:

— Mamãe, na rua é sempre dia, não é? O jardim tem árvores, como dantes? E aquele gatinho branco de patas pretas vem sempre visitar a gente? Não é verdade, mamãe, que eu já me tenho visto num espelho? Você não tem um?

A mãe deu-lhe um espelho.

— A gente deve olhar aqui, onde o espelho é liso — disse a pequena, aproximando-o do rosto —, mas não vejo nada. Mamãe, você também não me vê no espelho?

— Vejo-a, meu bem.

— Como pode ser? — exclamou a menina, aflita. — Se eu não me posso ver, não deveria haver ninguém no espelho... E essa menina que você vê no espelho, ela me vê ou não?

A mãe saiu às pressas, chorando.

O passatempo preferido da menina era tocar diferentes objetos pequenos com as mãos e reconhecê-los.

Um dia a mãe deu-lhe uma boneca de porcelana, bem-vestida, que custara um rublo. A criança não largava a boneca, fazia-lhe carinhos. Deitou-se muito tarde, pensando sempre no brinquedo, que guardou numa caixa estofada de algodão.

À noite a mãe foi despertada por um ruído; saltou da cama, acendeu uma vela e viu num canto a sua filha, já vestida, a brincar com a boneca.

— Que é que está fazendo? — exclamou. — Por que não dorme?

— Para que dormir, se já é dia? — respondeu a ceguinha.

Para ela, dia e noite fundiam-se, e duravam sempre...

Obliterava-se-lhe gradualmente a memória das sensações visuais. Uma cereja vermelha tornava-se uma frutinha lisa, redonda e macia; uma moeda reluzente fazia-se um pequeno disco duro e tininte, com figurinhas em baixo-relevo. Ela sabia que o quarto era maior do que ela mesma, a casa maior do que o quarto, a rua maior do que a casa. Mas tudo isto se foi de certa maneira resumindo, na sua imaginação.

Concentrava-se-lhe a atenção no tato, no olfato a no ouvido. O rosto a as mãos adquiriram sensibilidade tal que, ao aproximar-se algumas polegadas de uma parede, sentia um leve frio. Acontecimentos mais afastados penetravam nela pelo ouvido; ficava escutando dias inteiros.

Reconhecia os passos vagarosos do vigia de voz aguda que varria o quintal. Distinguia se o veículo que passava diante da casa era um carro de camponês carregando madeira, um fiacre ou um caminhão de lixo. Não lhe escapava o menor ruído, o cheiro mais leve, um resfriamento ou um aquecimento imperceptível do ar. Com incrível sagacidade, percebia os menores fatos e deles tirava conclusões.

Um dia, ouvindo a mãe chamar a empregada:
— Ela saiu — disse a cega, sentada, como sempre, no seu canto. — Foi buscar água.
— Como é que você sabe? — perguntou a mãe, assombrada.
— Como? Sei que apanhou o regador na cozinha e foi ao outro quintal tirar água com a bomba. Agora está conversando com o vigia.

Com efeito, do outro lado da cerca vinha o som da conversa de duas pessoas, mas tão abafado que dificilmente se podia entender.

Por maior que fosse o aperfeiçoamento dos outros sentidos, não substituía a vista, e a menina começou a ressentir-se da escassez de impressões e a experimentar saudades.

Permitiam-lhe andar por toda a casa, o que a serenava um pouco. Conhecia cada pedra do quintal, tocava em todos os algerozes, em todos os barris. Mas o maior prazer advinha-lhe de excursões a dois mundos inteiramente diversos: o celeiro e a adega.

Na adega o ar era fresco, as paredes úmidas. O bulício da rua chegava de cima, amortecido; os outros sons desapareciam. Para a cega, isso era a noite. No celeiro, sobretudo perto da janelinha, tudo se passava de maneira completamente diversa. Havia mais barulho que no quarto. A menina percebia o ruído dos carros de algumas ruas. De mais a mais, lá se concentravam os rumores da casa inteira. Um vento quente lhe afagava o rosto. Ouvia o gorjeio das aves, o latido dos cães e o sussurro das árvores num jardim vizinho. Era o dia.

Não só isto: no celeiro o Sol brilhava com maior freqüência que no quarto, e, ao volver para o Sol os seus olhos extintos, a pequena tinha a impressão de ver alguma coisa. Na sua imaginação apontavam sombras de formas e cores, mas tão confusas e fugidias que não podia lembrar-se de nada.

Foi nesse tempo que a mãe, tendo-se reunido à amiga, se mudou para a casa onde residia o Sr. Tomás. Estavam ambas as senhoras muito contentes da nova morada, mas para a ceguinha a mudança foi um verdadeiro desastre. Era obrigada a ficar no quarto, não lhe sendo permitido ir à adega nem ao celeiro. Não ouvia aves nem árvores. Reinava no quintal um silêncio horrível. Lá nunca entravam belchiores para quebrá-lo. Era proibida a entrada de velhas mendigas que entoavam cânticos religiosos, assim como de velhos tocadores de clarineta ou de realejo.

A única distração da menina era olhar para o Sol; mas nem sempre este luzia da mesma forma, e não tardava a esconder-se atrás das casas.

A criança principiou novamente a sentir saudades, emagreceu em poucos dias, e apareceu-lhe no rosto aquela expressão de desalento e desânimo que tanto espantou o Sr. Tomás.

Não podendo ver, a ceguinha queria ao menos ouvir os rumores mais diferentes; mas a casa era toda silenciosa...

— "Coitada da pequena!" — resmungava por vezes o Sr. Tomás, observando a triste menina. — "E se eu pudesse fazer alguma coisa por ela?" — perguntava, vendo-a cada vez mais pálida a magra.

Por esse tempo, um amigo do advogado teve um processo e, como de praxe, trouxe-lhe os autos, pedindo que os examinasse e desse alguns conselhos. Embora já não pleiteasse no tribunal, o Sr. Tomás, como bom profissional que era, sabia sempre indicar o caminho adequado e fornecia ao colega, por ele mesmo escolhido, muitas explicações úteis.

A causa que o Sr. Tomás agora estava examinando era complicada. Quanto mais atentamente a estudava, tanto mais se enchia de paixão. No ancião aposentado acordava o causídico. Já não saía do apartamento, já não verificava se fora tirada a poeira dos móveis. Encerrado no seu gabinete, lia os documentos e tomava notas.

À noite chegou, como de costume, o velho lacaio do advogado, com um relatório dos acontecimentos do dia. Informou que a esposa do doutor partira com os filhos em férias; que não estava sendo feito o fornecimento da água; que o vigia Casimiro, tendo brigado com um policial, fora preso por uma semana. Por fim, perguntou se o senhor advogado não queria falar com o novo vigia. O amo, inclinado sobre os papéis, fumava o seu charuto, lançava anéis de fumaça, e nem volveu os olhos para o fiel criado.

No dia seguinte o Sr. Tomás ainda estudava os autos. Por volta das duas almoçou, e depois tornou ao trabalho. O rosto vermelho e as suíças grisalhas, em combinação com o fundo azul da parede, assemelhavam-se a uma natureza-morta. A mãe da menina cega e a sua companheira, que fazia meias à máquina, observavam o advogado, a quem julgavam um viúvo robusto que habitualmente dormia da manhã até à noite, sentado à mesa do trabalho.

No entanto, o Sr. Tomás, bem que estivesse de olhos fechados, não dormia. Meditava sobre o caso.

Em 1872 o cidadão X legou ao sobrinho A uma fazenda, e em 1875, ao sobrinho B, um edifício. B pretendia que em 1872 X era louco, ao passo que A queria provar que ele só enlouquecera em 1875. Porém o marido da irmã do falecido Sr. X apresentou documentos autênticos que provavam que, tanto em 1872 como em 1875, X agia como um doido, pois havia legado a fortuna à irmã já em 1869, tempo em que ainda se achava de posse de todas as suas faculdades.

O Sr. Tomás fora convidado a resolver quando X enlouquecera, e depois a reconciliar as três partes, nenhuma das quais estava disposta a fazer a menor concessão.

Enquanto o Sr. Tomás procurava dirimir todas essas complicações, aconteceu um incidente incompreensível e estranho: No quintal, justamente sob a sua janela, um realejo pôs-se a berrar.

Se o falecido Sr. X se tivesse levantado do túmulo, houvesse recuperado os sentidos e entrado no gabinete para ajudar o advogado a encontrar a solução, decerto o Sr. Tomás não teria sentido espanto igual ao que experimentou ouvindo o realejo.

E se pelo menos fosse um realejo italiano, de acordes agradáveis como os de uma flauta, de boa fabricação, tocando belas melodias! Mas não! Como para irritá-lo de modo especial, o instrumento estava quebrado, tocava desafinadamente valsas a polcas ordinárias, a tão alto que as vidraças tremiam. Para cúmulo de desgraça, a tuba do realejo bramia de vez em quando, que nem uma fera raivosa.

Sob a tremenda impressão, o advogado ficou atônito. Não sabia que fazer nem que pensar. Por um instante cismou até que, lendo o testamento do louco Sr. X, ele mesmo houvesse perdido a razão e estivesse sujeito a alucinações. Mas qual! não eram alucinações. Era um verdadeiro realejo de pífanos quebrados e de tubo extra-forte.

No coração do Sr. Tomás, homem tão indulgente, tão afável, levantaram-se instintos selvagens. Lamentava que a natureza não o tivesse feito rei de Daomei, com o direito de matar os seus súditos, e imaginava o prazer com que, naquele momento, tiraria a vida ao tocador.

Como os homens do gênio do Sr. Tomás, quando violentamente encolerizados, passam com facilidade de projetos audaciosos a realizações terríveis, o advogado saltou à janela como um tigre, decidido a ralhar contra o homem do realejo com palavras as mais ásperas. Já se debruçara no peitoril para gritar "seu vagabundo!", quando ouviu uma voz infantil. Olhou para o apartamento fronteiro.

A menina cega dançava no quarto, batendo palmas. O rostinho pálido estava corado, a boca ria, e, contudo, corriam lágrimas dos olhos extintos. Havia muito tempo a coitadinha não conhecia tamanhas impressões naquela casa tranqüila! Que bela aparição constituíam para ela os acordes falhos do realejo! Que soberbo o rugido da tuba, que por um triz não causou uma apoplexia ao advogado!

Vendo o júbilo da criança, pôs-se o tocador a marcar o ritmo com o grande salto do sapato e a assobiar feito uma locomotiva ao cruzar-se com outra.

— Meu Deus! Que beleza, este assobio!

No gabinete do advogado surgiu o seu criado fiel, fora de si, empurrando para a frente o vigia, a exclamar:

— Eu disse a este patife, Excelência, que pusesse logo no olho da rua esse tocador. Expliquei-lhe que ia receber uma gratificação de V. Exa., e que nós tínhamos um contrato. Mas o malandro chegou da roça há uma semana, e não conhece os nossos costumes. Agora você vai ouvir — gritou, aferrando o braço do vigia. — Escute o que S. Exa. em pessoa lhe vai dizer.

O realejo tocava já a terceira melodia, sempre no mesmo tom desafinado e barulhento das duas primeiras. A menina estava em delírio.

O advogado voltou-se para o vigia, com a sua calma habitual, embora estivesse um pouco pálido:

— Escute, amigo... Como se chama você?

— Paulo, Excelência.

— Então, Paulo, eu lhe pagarei dez zlotych por mês, mas sabe para quê?

— Para que eu nunca deixe tocarem realejo no quintal — interveio o criado.

— Não — disse o Sr. Tomás. — Para que, por algum tempo, você deixe todos os dias tocarem realejo no quintal. Entendeu?

— Que é que o senhor está dizendo? — exclamou o criado, a quem a ordem incompreensível tornara muito atrevido.

— Digo que ele deve, até ordem em contrário, deixar diariamente tocarem realejo no quintal — repetiu o advogado, pondo as mãos nos bolsos.

— Não estou compreendendo o senhor — disse o criado, com sinais insolentes de surpresa.

— Você é bobo, meu velho amigo — replicou-lhe bondosamente o Sr. Tomás.

E acrescentou:

— Está bem, voltem ao serviço.

O criado e o vigia saíram. O advogado notou que o seu fiel criado murmurou alguma coisa ao ouvido do companheiro, pondo um dedo na testa.

O Sr. Tomás sorriu-se e, como para confirmar as sinistras suposições do criado, lançou uma moeda ao tocador do realejo.

Depois, tomando de um calendário, procurou a lista dos médicos e anotou numa folha os endereços de alguns oftalmologistas. Como o tocador, animado pela moeda, se virou agora para a sua janela e entrou a bater com os pés e assobiar ainda com mais força, o que não deixou de irritá-lo, agarrou a folha e saiu resmungando:

— Coitada da menina! Eu devia ter tomado conta dela há muito tempo...

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de histórias. vol. 7. RJ: Nova Fronteira.

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