sábado, 14 de junho de 2014

Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Sonetos)

I

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Setubal no empório celebrado,
Em sangüíneo caráter foi marcado
Pelos destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado
Dos irmãos, e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

II

Das faixas infantis despido apenas,
Sentia o sacro fogo arder na mente;
Meu tenro coração inda inocente,
Iam ganhando as plácidas Camenas.

Faces gentis, angélicas, serenas,
De olhos suaves o volver fulgente,
Da idéia me extraíam de repente
Mil simples, maviosas cantilenas.

O tempo me soprou fervor divino,
E as Musas me fizeram desgraçado,
Desgraçado me fez o deus-menino.

A Amor quis esquivar-me, e ao dom sagrado:
Mas vendo no meu gênio o mau destino,
Que havia de fazer? Cedi ao fado.

III

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores.

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

IV

Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça tristeza envenenados;

Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados

Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania.

Desculpa tendes, se valeis tão pouco;
Que não pode cantar com melodia
Um peito, de gemer cansado e rouco.

V

De suspirar em vão já fatigado,
Dando tréguas a meus males, eu dormia.
Eis que junto de mim sonhei que via
Da morte o gesto lívido e mirrado.

Curva fouce no punho descarnado
Sustentava a cruel, e me dizia:
¨Eu venho terminar tua agonia;
Morre, não penes mais, ó desgraçado...

¨Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada.
Que armada de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:

¨Emprega noutro objeto os teus rigores;
Que esta vida infeliz está guardada
Para vítima só de meus furores¨.

VI

Em que estado meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso, e duro!
Delido o coração de um fogo impuro
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo,
Quando te encontro mais, mais te procuro,
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam da alma a paz, e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados.

E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, juízo, inferno e paraíso.

VII

Senhor que estás no céu, que vês na terra
Meu frágil coração desfeito em pranto,
Pelas ânsias mortais, o ardor, o encanto
Com que lhe move Amor terrível guerra.

Já que poder imenso em ti se encerra,
Já que aos ingênuos ais atendes tanto,
Socorre-me, entre os Santos Sacrossanto,
Criminosas paixões de mim desterra.

Fugir aos laços de um gentil semblante
Não posso eu só: da tua mão preciso
Com que prostrou Davi o atroz gigante:

Fira-me a contrição, torne-me o siso,
Acode-me, Senhor, põe-me diante
Morte, juízo, inferno e paraíso.

Morres de fraco? Morres de atrevido

VIII

Aflito coração, que o teu tormento,
Que os teus desejos tácito devoras,
E ao doce objeto, ás perfeições adoras,
Só te vás explicar co(m) pensamento.

Infeliz coração, recobra alento,
Seca as inúteis lágrimas, que choras;
Tu cevas o teu mal, porque demoras
Os vôos ao ditoso atrevimento.

Inflama surdos ais, que o medo esfria;
Um bem tão suspirado, e tão subido,
Como se há de ganhar sem ousadia?

Ao vencedor afoite-se o vencido;
Longe o respeito, longe a cobardia;
Morres de fraco? Morres de atrevido

IX

Marília, nos teus olhos buliçosos
Os amores gentis seu facho acendem;
A teus lábios voando os ares fendem
Terníssimos desejos sequiosos:

Teus cabelos sutis e luminosos
Mil vistas cegam, mil vontades prendem;
E em arte aos de Minerva se não rendem
Teus alvos curtos dedos melindrosos:

Reside em teus costumes a candura.
Mora a firmeza no teu peito amante,
A razão com teu riso se mistura:

És dos céus o composto mais brilhante;
Deram-se as mãos Virtude e Formosura
Para criar tua alma e teu semblante.

X

Por esta solidão que não consente
Nem do sol, nem da lua a claridade;
Ralando o peito já pela saudade
Dou mil gemidos a Marília ausente.

De seus crimes a mancha inda recente
Lava Amor, e triunfa da verdade;
A beleza, apesar da falsidade,
Me ocupa o coração, me ocupa a mente.

Lembram-me aqueles olhos tentadores,
Aquelas mãos, aquele riso, aquela
Boca suave, que respira amores...

Ah! Trazei-me, ilusões, a ingrata, a bela!
Pintai-me vós, ó sonhos, entre flores
Suspirando outra vez nos braços dela.

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