quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Machado de Assis (Teoria do Medalhão)

DIÁLOGO

— Estás com sono?

— Não, senhor.

— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

— Onze.

— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta,  chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

— Papai...

— Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

— Sim, senhor.

— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: “a gravidade é um mistério do corpo”, definiu a compostura do medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. Quanto à idade de quarenta e cinco anos...

— É verdade, por que quarenta e cinco anos?

— Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se deem entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.

— Entendo.

— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

— Mas quem lhe diz que eu...

— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.

— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.

— Como assim, se também é um exercício corporal?

— Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.

— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?

— Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas escancaradamente. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses — suponhamos dois anos — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...

— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...

— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Ícaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem revés, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso aranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes!

— E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.

— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.

— Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término, e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso. Acresce que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira — esperta e afreguesada — que, segundo um poeta clássico, Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.

— Upa! que a profissão é difícil!

— E ainda não chegamos ao cabo.

— Vamos a ele.

— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves conquistar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heroicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e o dá aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou delegações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?

— Percebi.

— Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria descabido impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do progresso” e o “suor do trabalho” vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d'água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporteres dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.

— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.

— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, os engole a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o aroma das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é
o naturalismo do vocabulário.

— E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?

— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.

— Nem política?

— Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhes somente a utilidade do scibboleth bíblico.

— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?

— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que deseja saber por que motivo a 7ª Companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo ministro da Guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.

— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?

— Nenhuma; antes fazes correr o boato de que um tal dom é ínfimo.

— Nenhuma filosofia?

— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.

— Também ao riso?

— Como ao riso?

— Ficar sério, muito sério...

— Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente — e este ponto é melindroso...

— Diga.

— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem exageros, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?

— Meia-noite.

— Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.

Fonte: GLEDSON, John (seleção). 50 contos de Machado de Assis. Ed. Cia. das Letras.

Estante de Literatura Universal (Egito: Conto do Náufrago ou A Ilha da Serpente)

É um conto literário do Antigo Egito da época do Império Médio, datado do século XX a.C. Este conto é conhecido graças a um único manuscrito, o Papiro São Petersburgo 1115, da época da XII dinastia egípcia. Este papiro também é conhecido como o Papiro Golenischeff, em honra ao egiptólogo russo Vladimir Semenovitch Golenischeff que o encontrou no Museu Imperial de São Petersburgo em 1881, desconhecendo-se como foi ali parar o manuscrito. Atualmente o papiro encontra-se no Museu Pushkin, em Moscovo.

Relata as aventuras de um marinheiro egípcio que partiu num barco para uma expedição num país onde se achavam as minas de cobre do faraó. Durante a viagem ocorre um naufrágio, no qual morrem todos os cento e vinte integrantes da tripulação, descritos como os melhores marinheiros egípcios, com exceção do protagonista. Agarrado a uma prancha permanece três dias em alto mar, até alcançar uma ilha. Nesta ilha habitava uma grande serpente de cores dourada e lápis-lazúli, que o recebeu e levou para uma caverna, sem atacá-lo. Esta serpente era a soberana da ilha, que se caracterizava por possuir grandes riquezas. A serpente comunica ao náufrago que dentro de quatro meses passará pela ilha um barco que o levará de volta a casa. Quatro meses mais tarde, as palavras da serpente cumpriram-se. A serpente carrega o navio com as riquezas da sua ilha, como a canela, o marfim, as peles, óleos perfumados e macacos. A história termina com o regresso do herói ao Egito dois meses depois de ter partido da ilha.

Embora se trate de uma obra de ficção, os investigadores encontram no texto elementos da história e cultura egípcia, como a exploração mineira no Sinai (que foi intensamente desenvolvida pelo rei Amenemés III da XII dinastia) e as viagens comerciais ao país de Punt, um local ainda não totalmente identificado (seria talvez na região do Corno de África), mas que se caracterizava pela sua riqueza. Atualmente o texto do Conto do Náufrago é usado em aulas de aprendizagem da língua egípcia.
Fonte: Wikipedia

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Olivaldo Junior (O Poeta do Adeus)

Certo dia fui nomeado de "O poeta do adeus". Essa alcunha me fora dada por um rapaz a quem muito mandei poemas, contos e crônicas que fiz. Faço do adeus, da despedida e da lágrima meus temas, senão preferidos, recorrentes. Acho que ele não gostou muito desses temas e resolveu me batizar. Bem, é bom ser chamado de alguma coisa. Melhor que ser ignorado, igual a esse mesmo amigo tem feito há um tempo comigo. Sei que não é muito legal ficar lendo sobre adeus e seus respectivos subtemas, mas, de vez em quando, ainda volto a eles. Adeus, pelo menos, é um tanto poético. 

Venho escrevendo, por sugestão de uma amiga, mais contos e crônicas. E tenho gostado disso. Mas, quando menos percebi, voltei a esse tema do adeus novamente. Não tenho tido muitas devolutivas desses últimos textos, o que me faz pensar que não estou de fato agradando. Na verdade, como já disse um tempo, preciso me renovar mesmo. Não é fácil. Isso exige uma renovação interior que, para variar, também não é fácil. Dar adeus a velhos hábitos é como dar adeus a velhos temas de escrita e, claro, de pensamento. O tempo nem sempre cura tudo. É preciso um tempo para ajudar o tempo a nos temperar de outra forma. Portanto, espero dar um tempo em meus escritos outra vez. Assim, quem sabe, minha pena me dê novos e melhores textos, com renovados temas, e eu mesmo me refaça, me redescubra, enfim. 

Para ilustrar esse "último" texto, lhe mando uma canção muito linda, escrita por Neil Sedaka e Phill Cody, numa gravação de Sissel, cantora norueguesa de um timbre límpido, assim como todo adeus deveria ser. Não, não sou realmente adepto do adeus. Na verdade, sou mais adepto do eterno, assim como o adeus, também uma utopia. Quem nunca disse adeus? 

Quem me batizou com esse apelido é que me disse adeus sem me dizer e há muito tempo não me visita. Isso é triste, mas é a vida. 

Fonte:
O Autor

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VIII

CAPÍTULO III

A REPRESENTAÇÃO ÁRABE EM MILTON HATOUM

Perdido no passado, sua memória rondava a tarde distante em que o vi recitar os gazais de Abbas. Era um preâmbulo, e Zana se excitava com aquela voz grave, cheia de melodia, que devia tocar a alma dela antes da loucura dos corpos.
Milton Hatoum

3.1 FICÇÃO E HISTÓRIA DE IMIGRANTES

Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento. Permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou.
Milton Hatoum

O tema da identidade nacional é, sabidamente, uma das grandes recorrências nas literaturas dos países colonizados nos inícios da modernidade, abertos, após suas independências políticas, a um intenso fluxo imigratório, como sucedeu nos países da América Latina e, evidentemente, no Brasil.

Constituindo-se como elemento privilegiado de nossa produção romanesca, dramática, poética e crítica, a discussão acerca de nossa identidade cultural seria iniciada pelos viajantes e colonizadores europeus que transformariam suas crônicas de viagem, em verdadeiros ensaios sobre a natureza brasileira no século XVI.

Não obstante o acentuado etnocentrismo com o qual esses cronistas vêem a cultura indígena, não lhes passaria despercebida a explícita diversidade cultural que povoa o Brasil desde os seus primórdios. Essa diversidade seria, num contínuo, atestada nos mais variados relatos europeus, através da invariável comparação entre os índios tupinambás, detentores da hegemonia cultural no Brasil do século XVI – antropófagos e poligâmicos – e os demais povos indígenas, muito deles monogâmicos e abstêmios da carne humana, que habitavam o solo brasileiro nesse período. Assim, os narradores europeus pontuavam, em suas inaugurais descrições sobre o caráter brasileiro, a marca da nossa diversidade cultural.

Parecendo fortalecer-se com o passar dos tempos, a tematização de nossa identidade cultural seria retomada, vigorosamente, pelos românticos, em especial pelos nacionalistas, que a enriqueceria com a vertente do regionalismo, numa explícita reafirmação de nossa pluralidade cultural. Nesse enriquecimento, inauguram, em nossas letras, um procedimento estético que antecipa as grandes obras regionalistas do chamado Romance de Trinta, como ressalta Antonio Cândido:

Vem a propósito dizer que o caso do Brasil é talvez peculiar, pois aqui o regionalismo inicial, que principia com o Romantismo, antes dos outros países, nunca produziu obras consideradas de primeiro plano [...] De tal modo que só a partir de mais ou menos de 1930, numa segunda fase que estamos tentando caracterizar, as tendências regionalistas, já sublimadas e como transfiguradas pelo realismo social, atingiram o nível das obras significativas. (CÂNDIDO, 1987, p. 161)

Não obstante o nível mediano das primeiras obras regionalistas, essa vertente da temática identitária, despojada da ideologia romântica de “país novo”, orientada pela consciência dilacerada de “país subdesenvolvido”, transformaria as obras modernistas do Regionalismo de Trinta em ícones da modernidade nordestina, como observa Heloísa Toller Gomes (2003, p. 643-653), voltada para as variadas nuanças do modernismo brasileiro, atenta aos seus diferentes caminhos e olhares, na reincidente busca de desvendamento de nossas feições culturais. Essa busca, responsável pela reinvenção de nossa tradição literária, seria efetuada tanto pela ousadia dos modernistas de São Paulo quanto pela circunspeção dos modernistas do Nordeste, num movimento de complementaridade, como aponta Heloísa Toller Gomes (2003, p. 646):

Na perspectiva de que a tradição auxilia a invenção literária, trataremos do texto romanesco de Milton Hatoum, Dois irmãos, procurando observar as maneiras com as quais esse escritor amazonense, filho de imigrantes libaneses, destribalizado e aculturado como os caboclos amazônicos, reatualiza a temática identitária em nosso país, entrelaçada, pela via da ficção e da memória cultural, ao drama dos descendentes dos indígenas brasileiros e ao dos imigrantes libaneses, igualmente distantes e sequiosos de suas origens, como se vê na narrativa, principalmente através das personagens, Nael, narrador da obra, filho de Domingas, índia destribalizada, desconhecedor de sua origem paterna, representação máxima do drama que nos gerou, e do libanês, Halim, que ignora a data do próprio nascimento, fato considerado na narrativa como sina de imigrante.

Dessa reatualização de nossa tradição, vem-nos a certeza de que, longe de esgotar-se ou arrefecer-se, o tema da identidade readquire, no início desse milênio, um novo e intenso vigor, conservando a sua capacidade de impulsionar a produção literária e a conseqüente produção crítica em nosso país, conforme se pode verificar, hoje, em toda a América Latina.

Filho de imigrantes libaneses, Milton Hatoum assinala a sua construção identitária do Brasil, através da reciprocidade cultural entre o mundo árabe e o mundo de Manaus, representado pelo elemento indígena, igualmente “emigrado” de sua aldeia, a exemplo da índia Domingas.

Sistemática e abundante, como se processa na obra do romancista nordestino, a presença árabe, em Milton Hatoum, também se transformaria num dos traços estruturantes mais importantes da produção romanesca de Hatoum, frequentando todas as suas narrativas, numa verdadeira multidão. Desses traços, entranhados e transformados no mundo manauara, reavivados pela memória, Hatoum criaria o seu Oriente em Manaus. 

Professor de Literatura Brasileira, contista, romancista e crítico literário, Milton Hatoum tem, desde sua estréia no universo romanesco em 1989, com a publicação do romance,  Relato de um certo Oriente, despertado a atenção e o reconhecimento de teóricos e críticos nacionais, como Davi Arrigucci Jr., Flora Süssekind, Leila Perrone-Moisés, entre outros importantes ensaístas brasileiros.

Leitor confesso de Graciliano Ramos, Milton Hatoum aproxima-se desse escritor pela reafirmação da literatura como ficção, pela explicitação do trabalho com a linguagem, pelo projeto estético comum. Como Hatoum, na atualidade, Graciliano Ramos configura sua obra através da ruptura com o sentimentalismo, com o empirismo social, com a transparência da linguagem, com o documentário social, pretensões que o Naturalismo pôs em circulação, na fase da consolidação de nossas letras. Nesse sentido, torna sua obra, na década de Trinta, numa faca amolada, como a denomina Flora Süssekind:

Não é apenas por contrapor sua série de romances à continuidade dos ciclos que Graciliano Ramos funciona como faca amolada, como corte no modelo romanesco dominante. Sua ameaça vai além da opção por uma obra mais cheia de rupturas que os ciclos de Jorge Amado e José Lins do Rego. Funciona como um corte crítico na própria estética naturalista. Quando explicita em seus romances o trabalho com a linguagem, Graciliano joga por terra a obsessão fotográfica e documental dominante no neonaturalismo de Trinta. Dominante tanto num Jorge Amado quanto num José Lins do Rego [...] Graciliano foge à regra. Opõe a série ao ciclo. Uma literatura que se afirma como ficção à obsessão fotográfico-documental do decênio de Trinta. Uma economia expressiva, uma linguagem contida à verbosidade, à abundância descritiva dos romancistas-modelo à época. (SÜSSEKIND, 1984, p. 170-172 – grifos da autora)

Contrariando as tendências naturalistas, rompendo com as velhas soluções nacionalistas do romantismo, descartando, em seu percurso ficcional, os tons pitorescos e exóticos na configuração de seu Brasil amazonense, ignorando, enfim, as soluções estéticas românticas, retardatárias e, ainda assim, insistentemente utilizadas na representação atual do Amazonas, em textos restritos à circulação local, o romancista Milton Hatoum – precedido por Márcio Souza, autor da obra, Galvez, imperador do Acre (1977) – parece querer preencher, pela via da excelência estética, a lacuna da literatura (erudita) em solo amazonense. Carência, essa, vivamente lamentada por Graciliano Ramos quando, no século passado, incumbido pela Casa do Estudante do Brasil a proceder a uma seleção das narrativas mais expressivas publicadas em nosso solo, no período compreendido entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quartel do século XX, declararia consternado:

Ambicionávamos fazer uma espécie de exposição das mais expressivas histórias publicadas em um século, mas este projeto esbarrou com sérias dificuldades. Não nos foi possível recolher e estudar a produção do interior [...] Nada encontrei no Amazonas, em Mato-Grosso. Do resto do país vão novidades e velharias. (RAMOS, [s.d.], p. 16)

Como se procedesse a uma reparação do contexto literário amazonense, lamentado  pelo mestre alagoano, Milton Hatoum, num trajeto de negação e de afirmação de nossas tradições literárias, publica, num período de quinze anos, sua trilogia sobre o Brasil caboclo, alcançando uma enorme visibilidade, afirmando-se, assim, como um grande escritor contemporâneo, a ponto de conquistar para sua obra o Prêmio Jabuti de melhor romance em 1989, com a narrativa, Relato de um certo Oriente, o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2000, com Dois irmãos e, em janeiro de 2006, o Prêmio Jabuti de melhor romance em 2005 e o Grande Prêmio da Crítica da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – com o romance, Cinzas do Norte, publicado em outubro de 2005.

Além desses prêmios, a obra de Hatoum tem atraído o reconhecimento internacional, tanto nos países do Oriente Médio quanto nos Estados Unidos e na Europa, onde tem circulado em meio a um receptivo acolhimento. No Brasil, além dos críticos citados, vemos a obra de Hatoum tornar-se, cada vez mais, objeto de nossa ensaística, dos estudos acadêmicos, como demonstram as Monografias, as Dissertações de Mestrado, defendidas e aprovadas nos Programas de Pós-Graduação das Universidades Federais de Brasília, de Minas Gerais e da Universidade de Sorocaba, presentes em nossa bibliografia.

Não obstante a trilogia de Hatoum voltar-se, recorrentemente, para o mundo manauara em seu contato com a cultura árabe, elegemos a obra Dois irmãos (2000) no intuito de observar as maneiras e os gestos estéticos com os quais o romancista líbano-amazonense capta as transformações históricas e étnicas na antiga morada dos índios manaós, após os quinhentos anos de conquista e de colonização européia.

Nessa compreensão, nos voltaremos para o texto Dois irmãos numa perspectiva interdisciplinar, que nos possibilite a apreensão da Manaus de Milton Hatoum, antiga morada dos índios manaós; Porto de Lenha, para os imigrantes e viajantes ingleses; Vila da Barra, para os colonizadores portugueses e Terra de Ajuricaba, para os caboclos amazônicos.

Ao publicar Dois irmãos, seu segundo romance, voltado para o mundo dos imigrantes árabes, Milton Hatoum, valendo-se de sua prerrogativa autoral, se utilizaria de um curioso elemento paratextual, no qual previne seu leitor de que sua obra é tão somente produto da imaginação, um fato ficcional, portanto. Dessa forma, indica ao leitor o caráter de sua obra e, evidentemente, o modo como lê-la: como verdade ficcional, conforme se nota na página destinada às informações técnicas de composição do livro: Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião (HATOUM, 2000, p. 4).

Num desejo, simetricamente inverso às epigrafes e/ou notas dos autores naturalistas, a advertência de Milton Hatoum, além de apontar para a instigante vitalidade da discussão sobre a difícil relação entre Ficção e História, se constitui como um dado diferenciador entre a sua escritura e a dos romancistas naturalistas que, a exemplo de Jorge Amado e Aluísio Azevedo, insistem na perspectiva da honestidade, da verdade, mesmo com o sacrifício do literário, em acordo com o que já expusemos nesse trabalho.

Tematizando, como Jorge Amado, a presença do imigrante árabe, num contexto relativamente recente de nosso país, Milton Hatoum parece se preocupar com a possibilidade de sua ficção ser lida como verdade, como ícone de autenticidade do narrado. Nessa preocupação, tenta esvaziar, da leitura de sua obra, quaisquer analogias entre o que narra e o vivido ou experimentado. Assim, subtrai, na advertência, o importante papel que desfruta as memórias, no processo do fazer literário e no da sua própria ficção, como se constata da leitura de sua narrativa. Nessa subtração, Milton Hatoum parece antecipar-se, contraditoriamente, ao seu próprio narrador, que confere às reminiscências, às suas e às que colhe dos variados personagens, o caráter de indispensabilidade, em seu projeto escritural.

Concebendo, implicitamente, a sua narrativa como um jogo prazeroso de lembranças e esquecimentos, o narrador de Dois irmãos concebe as memórias como elementos privilegiados de reinvenção da realidade, do processo de ficcionalidade, portanto. Mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado [...] Naquela época, tentei em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras verdadeiras [...] o jogo de lembranças e esquecimentos – me dava prazer. (HATOUM, 2000, p. 90; 244; 265)

Nesse exercício, Nael, o narrador de Dois irmãos, assinala a instável relação entre o Tempo e a Memória, caracterizada, dialeticamente, pelos princípios da corrosão (esquecimento) e o princípio da combustão (reavivamento). Assim, procede a uma implícita alusão ao elemento predominante nas memórias poéticas de Carlos Drummond de Andrade, o princípio da corrosão, traço considerado capital em sua memorialista, como assegura Luiz Costa Lima, ao analisar o poema drummondiano, “Destruição”, que Hatoum escolheu como epígrafe de sua obra:

Na verdade, este seu retrato de castelo solar apenas representa o lado da adesão afetiva, do apego ao que, cruel, era entretanto amado. Se esta fosse a inteireza recordada o poeta seria preso do saudosismo e assim não alcançaria o estado de poeta maior. Mas o solar não fora isento ao tempo; o tempo se introduz como cupim, lenta corrosão de seus alicerces e travejamentos de que só conhecemos o resultado [...] A corrosão é assim a figura central da poética drummondiana. Por ela tanto fala o poder que se carcome, quanto da dissolução que se processa. Ou seja, a corrosão abarca tanto a adesão afetiva ao espaço contra que o poeta se rebelara – sua culpa. (LIMA, 1981, p. 172)

Trazido à narrativa como epígrafe, o poema de Drummond não apenas sinaliza para a perspectiva de Hatoum acerca das memórias, como também para o princípio construtor, elemento comburente, de sua tessitura memorialista, como já apontara, noutra direção, Maria Zilda Ferreira Cury (2007, p. 84). Sorrateira e concomitantemente, indicia o seu processo narrativo centrado no segredo e no anúncio (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 110), no sugerido e no escamoteado e, muitas vezes, num silêncio que, embora sustente o interesse, confunde e desorienta o leitor. Entre nós, esse desejo de confundir o leitor está presente tanto nas memórias ficcionais de Machado de Assis, quanto nas memórias de Graciliano Ramos.

Para essa compreensão, concorrem o poema de Drummond, o exercício de metalinguagem do narrador e as próprias palavras de Milton Hatoum. Este, como afirma em entrevista concedida a Susana Scramim, publicada pela BABEL – revista de poesia, tradução e crítica, nutriu-se largamente da memória da família, dos amigos e conhecidos para a elaboração de seu Relato de um certo Oriente (1989), reconhecendo esse exercício, a exemplo de seu narrador, como elemento decisivo na composição de seu discurso romanesco, como se apreende do fragmento abaixo:

Quando comecei a escrever o Relato, a memória da família, dos amigos e conhecidos, toda a memória da infância foi decisiva [...] Foi um alívio saber que meus parentes não se reconheceram nas personagens do livro. Sei que alguns deles estão lá, mas mascarados, metamorfoseados. (HATOUM, 2000, p. 11)

Acreditamos que o recurso autoral, utilizado por Milton Hatoum, intenta, sim, o alívio que Graciliano Ramos não encontrou quando das publicações de seus discursos memorialistas, especialmente de Infância (1945), segundo testemunha o filho do escritor nordestino, Ricardo Ramos, em discurso certamente conhecido pelo autor de Dois irmãos. Testemunho esse que se refere ao processo escritural e à recepção das obras memorialistas de Graciliano Ramos:

Não sei até que ponto foi compreendido o processo de Graciliano memorialista. Sei que aqui e ali, com alguma freqüência, há pessoas que estranham a colocação de figuras do Memórias do cárcere ou do Infância, em particular quando elas são parentes do autor [...] Logo depois da publicação de Infância, chegaram a meu pai uns ecos magoados, claro que de parentes ou pessoas próximas. Ele se espantou, se irritou vendo que não o entendiam [...] E concluía: “eu tenho lá problema com ninguém? (RAMOS, 1987, p. 14-15)
________________
continua...

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008
Imagem: IBGE 

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (O homenzinho na orelha)

Tan Jinxuan, trabalhava na subprefeitura de Zichuan, na província de Shandong, depois de ser aprovado nos exames de primeiro grau para funcionário público. Ele era taoísta e praticava exercícios respiratórios sempre que podia, mesmo quando fazia muito frio ou muito calor. Depois de muitos meses, achava que os exercícios de controle de respiração estavam lhe fazendo bem.

Um dia, pouco depois de se preparar para a meditação, escutou saindo de seu ouvido uma voz muito fina, tão fina que parecia a de uma mosca:

- Dá pra ver!

Tan Jinxuan abriu os olhos, mas não viu nada. Fechou-os novamente, prendeu a respiração, e os cochichos recomeçaram. Ele achou que esses cochichos eram um sinal de que seria imortal, e ficou muito contente com disso.

A partir desse dia, começou a ouvir essa voz logo que se sentava para meditar. E ficava ali, calado, esperando que a criatura de seu ouvido recomeçasse a cochichar, para descobrir como ela era. 

Uma vez, como escutou de novo o cochicho, perguntou:

- Dá pra ver?

Sentiu imediatamente uma cosquinha na orelha, como se estivesse saindo alguma coisa de seu ouvido. Num lance, percebeu que era um homenzinho, de mais ou menos dez centímetros, e de aspecto tão repugnante como o de um yaksa, o demônio de origem indiana. Maravilhado com as cambalhotas que o homúnculo dava no chão, Tang concentrava toda a sua atenção nesses movimentos, quando, de repente, ouviu um vizinho bater à porta, certamente para pedir alguma coisa emprestada. Com esse barulho, o homúnculo entrou em pânico, correu de um lado para outro, como um rato em fuga que volta para a sua toca.

Sem fôlego, Tan nem conseguiu perceber para onde a criaturinha tinha corrido. E nesse instante mesmo caiu num estado de demência, gritando e chorando sem parar, só se curando seis meses depois, com um tratamento à base de poções com ervas colhidas no alto da montanha.

Fonte: 

Paleta de Versos n. 1

Obs: Republicado. Faltou uma estrofe do Nei Garcez

Nei Garcez
(Curitiba/PR)

RIO DOCE

Nasci rio, na campina,
pra irrigar a propriedade,
e a avareza me assassina
com dejetos e maldade.

Sempre fui bem cristalino,
saciando a sociedade,
mas mudaram meu destino
que é o sustento à humanidade.

Irrigando esta campina,
noite adentro, ou sol à pino,
o “poder”, vem, e assassina
o meu leito cristalino.

Vou morrendo como rio,
poluído, com mal cheiro...
Já não ouço qualquer pio
de um só pássaro pesqueiro!

O “poder”, sem dar guarida,
porque sempre está lucrando,
não respeita a própria vida...
Fui Rio Doce, hoje amargando!

Como pode um peixe vivo
viver dentro da água impura,
se eu sou rio, tão nocivo,
e o meu leito é sepultura!
Jaz, ainda agonizante,
e morrendo de impureza,
faço o apelo torturante:
- “salvem minha natureza”!

Sem um peixe para a rede
das pessoas que aqui vêm,
já não mato a própria sede
de matar fome de alguém!


Amargando, vivo em pranto,
pois meu leito se angustia
- Minas ao Espírito Santo -
dizimando a Ecologia!
____________________________

Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

SERENA ABSTRAÇÃO

Às vezes tua ausência me visita
…bonita…e te torna tão real,
Que toda sedução que nela habita,
Parece infinita… e passional.

Abraço-a com lágrimas nos olhos,
Sorrindo e colorindo o teu olhar,
O amor é como o mar… e eu ?...os abrolhos
Deixando a saudade me açoitar.

Às vezes, como vens, tu distancias
De mim, essa utopia tão serena
Que traz as mais fugazes fantasias,

Mas fazem tão feliz meu coração,
Que a minha alegria mais amena
Transforma-se em serena abstração. 
_______________________

Neyde Bohon
(Itajaí/SC)

NA RUA

Na calçada poça d'gua
Por dias, guarda esperança
Corre tropeça na ansiedade
Continua...

O vento sopra ilusões
Suspiros! Novo pensamento...
Ah, novamente a ansiedade!
Calçada, passos em linhas quebradas

No ardor da fantasia
Mente doida enluarada!

Destino ou acaso,coração acelerado
Do outro lado da rua, VOCÊ.
_________________________________

Clarice da Costa
(Biguaçu/SC)

O BARCO

O mar levou
para bem longe
onde não se vê o fim
e nem a linha
do seu horizonte;
Revoadas de pássaros
passam
enquanto a vida
lentamente
vai esvaindo;
O tempo
não marca o curso
e o barco
fica à deriva.
____________________________

Samuel da Costa
(Itajaí/SC)

NOTA DO DIA
Para Vanessa Martins DA Maia

Vem consorte meu
Vem para mim
Quero-te todos os dias
Todas as noites
Para todo o sempre

Não pela metade
Em sintéticos nanospedaços
Algarismos alquebrados
Livres a vagar
Pelo cosmo infindo

Quero-te por inteiro
Meu sacrossanto amor
Perdido em tempos de guerra
Quero-te 
Em tempos de paz

Simplesmente quero-te
Somente para mim
E mais ninguém

Quero-te
Como o vento abraça
E levanta 
A branca areia da praia

Como a brisa
Balança intempestivamente
Os galhos das tundras
Mais altas
E eleva a folha seca
Para além do infinito

Quero-te
Como uma diáfana árdea
A ruflar 
As alabastrinas asas
Que ascende ao céu
Embrenha-se 
Nas alvas nuvens 
E desaparece 
No níveo imaginário
Do menestrel contemporâneo
Em tempos 
De realidade liquefeita
Do aedo surrealista

Quero-te enamorado meu
Em tempos pós-modernos
Como o poetiza nefelibata
Que ama
Na realidade abstrata

Não tarde amando meu
Vem voando nas asas
De Ícaro
Espero-te nua 
Na alcova em chamas 
____________________________

João Batista Xavier Oliveira
(Bauru/SP)

TOM MAIOR
Em Memória de Tom Jobim (1927 – 1994)

Hoje chorei muito por uma pessoa
de uma vida intensa e também produtiva
que abraçou a causa tão lúcida e viva;
um mundo melhor que na pauta ressoa.

Os pássaros choram e a flor sempre-viva
insiste em viver pois a vida é tão boa.
O som da floresta não se esparze à toa;
alcança infinito na canção que ativa.

JOBIM, o seu nome, um canto de guerra
que exalta a paisagem soando na terra
os ecos audazes no apelo da paz.

O tempo não passa a quem sempre passeia
no enlevo das mentes que pautam na areia
eterna Ipanema que o mar não desfaz !
____________________________

Pajo
(Formiga/MG)

SIMPLESMENTE MULHER 

A você mulher 
Que por si só já é virtude 

Que traz no ventre a vida 
E no peito, a coragem 

No coração, o aconchego 
E nos braços, o filho que acalenta 

De olhar no horizonte 
Na busca do filho ausente 

Que o lar administra 
O suor do pai que em você confia 

No leito do filho doente 
Braços de Morfeu que não lhe aceita 

Que da vida é flor que enfeita 
Conselheira, esposa, mãe, trabalhadora, amiga 

A você por ser 
Simplesmente... mulher.
________________________________

Ruth Farah
(Cantagalo/RJ)

TODOS PELA PAZ

Neste mundo ameaçado
pela maldade cruel,
parece terem montado
nova Torre de Babel.
Peçamos em oração
que os novos canhões de guerra,
em vez de destruição,
detonem amor na Terra.
"Vamos todos nos unir"
é um lema dos cristãos,
devendo a paz garantir
_ela está em nossas mãos.
Começando em cada lar
e no trabalho, também,
as pessoas vão se amar
visando somente o bem.

Respeitar o ser humano
com tal solidariedade
é um exemplo soberano
para toda a humanidade.
Com real inteligência
de sentimento profundo,
dando um basta à violência,
salvaremos nosso mundo.
Quando povos e nações
se consideram irmanados,
não há discriminações
_ direitos são respeitados.
Queremos, neste milênio,
seja o lema natural
dos povos igual convênio:


manter a Paz Mundial!

Estante de Literatura Universal (A Tomada de Joppa)

A tomada de Joppa é um antigo conto egípcio que descreve a conquista da cidade de Joppa (atual Jaffa) pelo general Djehuty à época de Tutmés III. Conserva-se uma cópia no papiro Harris 500, guardado no British Museum com a referência EA 10060.

Não se trata de uma narração histórica mas de um conto cujo fundo é a campanha na Síria de Tutmés, e o que ocorreu a um comandante de tropa chamado Djehuty que servia sob as ordens do faraó. As tática usadas por Djehuty na história evocam o episódio do Cavalo de Troia relatado na Odisseia e o conto de Ali Babá das "Mil e uma Noites".

O papiro data de começos da XIX dinastia, durante o reinado de Seti I ou Ramsés II. Está escrito em hierático e conserva-se em forma fragmentar: o começo perdeu-se e o restante do texto tem muitas lacunas.

No fragmento conservado, Djehuty convida o príncipe de Joppa (Jaffa) a um encontro no seu acampamento das cercanias da cidade. O príncipe acode com 120 soldados, e Djehuty convida à sua barraca, onde o nocauteia. Oculta duzentos dos seus soldados em cestas, coloca-os sobre animais e envia um auriga à cidade para anunciar que os egípcios se renderam e estão enviando um tributo. As duzentas cestas são levadas por 500 mensageiros, que não são mas que soldados de Djehuty: uma vez dentro da cidade, conquistam-na. A história termina com uma carta na qual Djehuty informa ao faraó desta vitória.

Embora os acontecimentos descritos nesta história sejam fictícios, estão situados num contexto real: Tutmés realizou um total de 16 campanhas na Síria entre 22 e 42 do seu reinado; a tomada de Jaffa deve ter sucedido numa das primeiras. O general Djehuty é um personagem real, bem documentado em diversos achados arqueológicos, por exemplo numa tigela de ouro com a qual Tutmés III o obsequiou pelos seus méritos e que se conserva no Museu do Louvre. A sua tumba foi encontrada em 1824 em Saqqara.

Fonte:

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

José Feldman (Sonetilho de Adeus a Cléo)


SONETILHO DE ADEUS A CLÉO
(Maringá/PR – 8/2/2014 – 28/1/2017)

Impotente assim estou,
perante tal pesadelo,
já nem mesmo sei quem sou,
nem como posso detê-lo.

Este dia se extinguiu,
e esta noite será fria,
pois a sua alma partiu,
consigo a sua alegria.

A vida não tem sentido,
perde todo o colorido
nas lágrimas, a razão.

Faz do meu mundo deserto,
onde a saudade por certo
morará no coração.

Olivaldo Junior (O Maior Sonho)

Era uma vez um menino que se chamava Téo. Ele, igual a tantos meninos do mundo, gostava de bola, de gente e de emoção. Morava com seu pai, com sua mãe e seus dois irmãos menores no subúrbio de uma velha cidade do interior. A vida seguia calma, com as manhãs na escola, as tardes na rua e as noites em casa, com a família e com seu cachorro Toddy.

O pai de Téo era um jovem caminhoneiro, mas corria como ninguém nas estradas que o menino só veria pelos mapas que a "fessora" lhe ensinasse. Vez por outra, lá de longe, o pai trazia algum "produto" local, feito o crânio de boi que repousava no meio da sala, vindo de um Nordeste que ainda clama por água e se retira para o Sul. As velhas "vidas secas".

Certa noite, a família do menino estava só. O pai saíra em viagem fazia um mês. A noite ventava como se a lua quisesse cair. Caíram no sono, Téo e seus irmãos, mas a mãe estava inquieta. Bateram na porta. Dois policiais. A mãe de Téo soltou um grito. O pai não voltaria para casa com nenhum crânio de boi, nenhuma carranca do Rio São Francisco, nenhuma concha.

Após a "sorte" do pai, a mãe, que já lavava para fora, intensificou o serviço e, como se fosse um decreto, conseguiu com a vizinha uma velha caixa de pinho, madeira ainda boa, e, gastando uns trocos na venda, mandou o filho ir à luta. "Vai, Téo, ser gauche na vida!". E Téo foi. Foi ser engraxate. A praça o esperava. Era o destino. Chorou. Cadê o seu pai? A saudade.

Por um bom tempo, a mãe de Téo tentou manter os estudos de que tanto gostava seu filho. Mas a praça mais próxima estava fraca em movimento. A do Centro era melhor. O pobre largou a escola. Téo teve festa de despedida e tudo. A história se passa num tempo em que, em muitos casos, era certo largar a escola e ganhar a vida. O maior sonho de Téo era estudar. Não pôde.

Passado um tempo, já moço, passou a fazer viagens de caminhão com um certo tio que queria lhe ensinar o ofício. Gostava da estrada. Nela, quem sabe, encontraria seu pai. Não, jamais o encontraria. Mas sonhava com o "velho". E era bom sonhar com ele, com seu riso sempre ali, à moda de quem sabe que a vida é curta e não vale a pena chorar. Seu pai estava com eles.

A família de Téo comemorava o casório. O jovem se casara com a filha de um nobre pastor. O caminhão ficaria para trás. Téo conseguiu emprego na fábrica do sogro. Sabia que, mesmo que fosse caminhoneiro a vida inteira, o pai dele jamais voltaria para casa. A casa de Téo seria a cidade em que nascera, os braços da esposa e, quem diria, a escola, o supletivo, onde encararia a dura missão de, após tanto tempo, voltar aos estudos. Seu maior sonho estava a toda de novo! Seu coração, de estudante, rondava os volumes da séria Barsa, do austero Aurélio, e rodava, rodava, rodava, em silêncio.

Fonte:
O Autor