quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Leandro Bertoldo Silva (Projeto Literário em Escola no Vale do Jequitinhonha)


Tudo começou com uma pergunta: como fazer os jovens se interessarem mais pela leitura? E a resposta apareceu muito clara e direta: colocá-los do outro lado da história, ou seja, do lado de quem escreve.

Pimba!

A partir daí, o escritor e professor Leandro Bertoldo Silva procurou a escola Orlando Tavares, a qual já havia lecionado há 5 anos, e fez a proposta à diretora Jussara Pinheiro Paiva que, prontamente, acatou a ideia abrindo as portas da escola para que o projeto acontecesse. Tal aprovação é externada em sua fala:

Jussara Pinheiro Paiva. Diretora da Escola Orlando Tavares:

“É de uma imensa alegria compartilhar desse projeto com os alunos, professores e demais profissionais da escola. Foi desenvolvido pelo escritor, professor e amigo Leandro Bertoldo Silva atividades em sala de aula que acabaram aguçando a imaginação dos nossos discentes, nos mostrando como são habilidosos.

Acredito que a escola seja um lugar para construir prazerosamente o conhecimento integrado com afeto, valorizando a leitura e a escrita. Este livro proporcionou exatamente isso: possibilitou aos nossos alunos a elaboração de textos partindo de uma história de cada família. Durante esse trabalho fica claro que o entendimento literário pode ser prazeroso quando se trata do que se vive e é nessa pequena/grande diferença que mora o segredo para (des)costurar pensamentos com a ajuda da entrelinha.

Quero parabenizar a iniciativa do escritor e professor Leandro e a cada aluno que aceitou esse desafio. Que seja o primeiro de muitos livros publicados pelos alunos da EOT”.

Para isso, Leandro assumiu as aulas de redação da escola, levando aos alunos todo o conhecimento adquirido em seu curso Vivenciando a Linguagem, Leitura e Escrita na cidade de Padre Paraíso e região, oferecendo aos alunos uma forma pragmática de estudo.

O projeto foi dividido em 4 etapas – uma para cada bimestre – onde, em cada um deles, os alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º anos) foram sendo orientados a partir de dinâmicas de escrita criativa e conhecimentos técnicos da escrita narrativa a entrarem em contato com o texto literário.

A proposta foi a escrita de um livro em conjunto – uma coletânea de mini contos – na qual cada aluno escreveria uma história partindo da concepção da escrita concisa, bem aos moldes do livro Entrelinhas Contos mínimos, escrito pelo próprio professor e escritor Leandro, e que todos tiveram acesso de forma online, juntamente com outro livro do autor (esse físico) – Janelas da Alma: uma tempestade íntima, um conflito, um retorno – como forma de mostrar na prática o processo de escrita e publicação de uma obra.

Faltava o fio condutor do livro, e este ficou por conta das memórias de família, que acabou sendo a temática do trabalho como mais uma estratégia de envolver as famílias dos alunos aproximando-as ainda mais do projeto, da escola e deles mesmos, pois, segundo o escritor Bartolomeu Campos Queirós em uma das unidades de um dos livros didáticos dos próprios alunos, “o que não foi esquecido merece ser repensado”.

Como mostra do envolvimento dos alunos, leia a seguir alguns depoimentos bem emocionantes!

Ana Esther Alvim de Godoy – Aluna do 6º ano.
“Essa aventura começou quando tivemos que levar um objeto antigo de família para a escola. Na hora fiquei um pouco preocupada, pois pensei que em casa não teria nada para levar. Fiquei a aula toda pensando sobre aquilo. Chegando em casa comentei com minha mãe e meu pai. Ao entardecer, meu pai chegou em casa falando que tinha pensado em uma coisa com bastante história, e eu fiquei muito empolgada. Era um rádio bem velho, mas em bom estado. Achei muito interessante, pois vinha do passado, o que seria bom, pois estávamos falando de lembranças, não é mesmo?”

Igor Gomes da Silva – aluno do 7º ano.
“Antes de relatar minha experiência com esse projeto, gostaria de parabenizar o meu professor Leandro pela iniciativa, pois estar à frente da construção de um livro requer muita coragem, esforço, dedicação e amor. Quanto a experiência, o tempo que passei com a minha mãe e irmão em busca do material foi muito importante, pois juntos percebemos que naquelas fotografias estavam registrados momentos que eu não teria como me recordar porque era muito pequeno. A fotografia escolhida retratava uma viagem que fiz com toda minha família para um hotel fazenda próximo de Governador Valadares, um lugar lindo, com tirolesa, piscina, sinuca, animais como cavalos e aves”.

Renato Santos Silva – aluno do 8º ano.
“Minha busca pelo objeto foi muito interessante, pois fui à casa da minha bisavó procurar algumas lembranças significativas na minha família para levar à escola. Chegando lá, minha bisavó começou a contar histórias da sua infância e de toda sua vida através dos objetos que tive curiosidade de conhecer. Dentre tantos, optei por dois, sendo eles o cassetete de quando o meu bisavô era soldado, da Polícia Militar de Minas Gerais, o qual minha bisavó sempre guardou com muito carinho para lembrar dele, que infelizmente faleceu. O outro foi o telefone que a esposa do Dr. Domingos Savio, grande médico que teve em Padre Paraíso, havia dado para ela. Minha bisavó gostava muito dele e ele a admirava muito. Sempre que podia, o médico a visitava, e ela, esperta como sempre, aproveitava para fazer uma consulta. Prova disso é que ela tem várias receitas guardadas até hoje”.

Vitória Amaral Neves – aluna do 9º ano.
“Desde que nos foi feita a proposta, questionei-me inúmeras vezes de como a mesma seria realizada, pois cada aluno teria que escrever uma história a curto prazo direcionadas para um livro. Confesso que passou em minha cabeça a possibilidade de que o projeto não seria concluído, mas agora vejo que nada está sendo em vão. Com a procura dos objetos e fotos foi possível que um vínculo fosse criado em nossa família. Relembrar as histórias fez com que criássemos um momento particular entre nós, além do que pudemos nos aproximar de outros alunos e contar o trajeto das fotos e dos objetos levados por nós. Vejo que com o andamento das histórias irá ser um trabalho de incrível repercussão, podendo servir de inspiração para outras escolas, assim ampliando e fortalecendo ainda mais a literatura brasileira”.

Fabiene Ramalho Lopes Dutra, mãe da aluna Hanna Ramalho Dutra, do 6º ano.
“Penso que a leitura tem que fazer parte da educação da criança, e sempre incentivei Hanna a ler, mostrando a ela o quanto podemos aprender com um bom livro. Quando fiquei sabendo do projeto de escrever um livro, achei muito interessante. Uma forma de incentivar os alunos, a desenvolver a leitura e a escrita. O processo de pesquisa e a busca por informações envolveu a família e amigos. Recordamos momentos alegres e tristes, mas que faz parte da nossa história”.

A publicação do livro ficou por conta da Árvore das Letras, através do selo Alforria Literária, também desenvolvido pelo escritor e professor, no qual a publicação obedece a um conceito de sustentabilidade, onde os livros são publicados sob demanda produzidos com capa de papel ecológico inteiramente personalizado com fibras de material orgânico e tinta natural, numa verdadeira artesania literária, sendo o miolo do livro de papel reciclado, demonstrando um valor importante na preservação do meio ambiente, através do uso de recursos renováveis. (Clique AQUI para conhecer os livros e saber mais sobre a Alforria Literária).

A culminância do projeto, como não poderia deixar de ser, será uma noite de lançamento, com data já marcada para o mês de novembro, onde os alunos/escritores irão receber seus convidados e autografar os seus livros, fazendo desse momento mais uma realidade literária de nossas letras, valorizando o que de melhor existe em Padre Paraíso e no Vale do Jequitinhonha: sua própria gente e suas próprias histórias.

Para mim há uma grande diferença entre estudo vivo e estudo morto. Estudo vivo é aquele que pauta sua existência na produção de ideias e não apenas na repetição do que já existe, ainda mais o disfarçando sob o viés do conhecimento. Estudo vivo privilegia o compartilhamento, mesmo que o mundo muitas vezes nos leva a acreditar no contrário e nos faz criar escolas que são regimentos de competições, mas, pelo estudo vivo, aprendemos que há lugar para todos, pois ele cria e vive nas asas das possibilidades. Estudo vivo respira e se pergunta sempre “por que não?”, ao invés de conservar-se no abafamento das respostas prontas que nos faz ter vidas prontas, permanecidas em si mesmas, cinzas, sem perfume e cor. Sempre duvidei das escolas cinzas… Não, não pintem suas salas de aula de cinza. Se for para tê-las, tenha-as coloridas.

Acho que sempre fui indisciplinado, uma espécie de inconformado social, a ponto de não aceitar verdades verdadeiras; elas podem ser falsas e perigosamente destruidoras de sonhos. Também sempre acreditei que uma escola não pode motivar os seus alunos utilizando apenas o velho recurso de provas e notas. Uma escola assim tem algo de muito, muito errado, e alguma coisa precisa ser feita. Este livro é a tentativa dessa coisa, como é a tentativa de tudo o que eu faço, pois livros mudam vidas.

Quando fiz aos alunos a proposta de escreverem um livro, li em seus rostos uma certa descrença. Mas já esperava por isso. Minha tarefa não era apenas concretizar o que eu sabia que eles poderiam, mas tocar-lhes o coração. E isso foi acontecendo gradativamente, até que todos perceberam que sim, era verdade, escreveríamos um livro e que eu não iria desistir.

Uau!! É mesmo verdade! Vamos escrever um livro! Sobre o quê? Aqui entra uma outra coisa que acredito: a família. Sem ela não existimos. É ela que nos nutre, que nos faz acontecer. Precisava envolver não apenas os alunos, mas as suas famílias nas páginas do que seria escrito, confiando que desse encontro surgiriam lembranças, memórias, aproximações e curas, sim, curas, pois a busca de memórias escondidas pode sarar muitas distâncias…

E como diz Bartolomeu Campos Queirós, um escritor que soube muito bem entender como as lembranças moram em nós e delas surgem histórias, “a memória é um espaço interno onde a fantasia conversa com a realidade”, ou seja, “o que não foi esquecido merece ser relembrado”.

Pronto. Estava tudo exposto. Agora era trabalhar, fornecer aos alunos o que precisavam para escrever. Algumas técnicas, umas dinâmicas, um pouco de experiência, um tantinho de informação e muita, muita leitura e uma dose imensa de vontade. O resultado? Bem, está aqui em suas mãos ao alcance de seus olhos. É só virar as páginas e permitir-se ir nessa viagem, que não há feio nem errado; há histórias lindas, reais e imaginadas, também há as misturadas saídas de cada um a sua maneira e que, por isso, já bastam.

Quanto a mim, sigo o meu caminho com um profundo sentimento de gratidão. Obrigado aos alunos, à escola e às famílias por acreditarem que sonhos foram feitos para serem sonhados e muito mais para serem realizados.

Fonte:

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Filemon F. Martins (Quem é Vanda Fagundes Queiroz?)

Escritora, poetisa, cronista, trovadora, declamadora, memorialista, contista, professora, mãe, e hoje também avó, casada com o Dr. Geraldo Queiroz (Cirurgião-Dentista) e mãe de Jone, Eliana, Gude e William. Nasceu em 20 de novembro de 1938, na vila de Santo Antonio da Boa Vista, município de São João da Ponte, norte de Minas Gerais. Viveu parte de sua infância na Fazenda Tipis, segundo ela, “um paraíso, o melhor lugar do mundo”. Filha de Aristides Fagundes de Souza (falecido em 1945) e Maria de Deus Ferreira (falecida em 1999).

Eu a conheci como exímia trovadora quando na década de 80 frequentava as reuniões da União Brasileira de Trovadores – Seção de São Paulo, então sob a presidência do magnífico Izo Goldman. Naquela época faziam parte da UBT-SP, grandes trovadores, como Orestes Turano, Adélia V. Ferreira, Alice Bueno de Oliveira, Clóvis Maia, Lauro de Almeida, Cipriano Ferreira Gomes, Geraldo Pimenta de Moraes, Sara Kanter, Marilita Pozzoli e outros cujos nomes não me recordo, no momento.

Vanda, conforme narra em seu livro “UMA LUZ NO CAMINHO”, com sete anos de idade iniciou o curso primário na cidade de Ibiracatu, naquela época uma pequena vila. Logo de inicio, aflorou a tendência para a arte de ler e escrever, e a menina estudiosa e declamadora tornou-se poetisa, ainda adolescente. Sua vida de infância, até a conclusão do curso primário, foi retratada com emoção no seu livro “UMA CANDEIA NA JANELA”, narração romanceada de seu contexto familiar, baseada em lembranças da infância, mas que indiretamente se faz registro de uma cultura regional, com seu linguajar próprio, culinária, costumes, tipos humanos, traços vivos de um determinado tempo e um determinado espaço restritos a uma rústica região do sertão mineiro.

Continuou os estudos no Colégio Imaculada Conceição, em Montes Claros, progressista cidade do norte de Minas Gerais, e ali fez o curso ginasial e depois se formou normalista (Curso Normal de Formação de Professores Primários). Casou-se em 1958 e foi residir em Curitiba, Paraná. Por concurso público, ingressou no então DCT (Departamento de Correios e Telégrafos), hoje ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Ainda em Curitiba, fez o curso de Letras (Português e Francês) na Universidade Católica do Paraná (PUC), enquanto escrevia crônicas, poemas, trovas e sonetos.

Depois de 16 anos de trabalhos e estudos em Curitiba, em razão da transferência de seu esposo para a Base Aérea de São Paulo, Cumbica – Guarulhos, a família mudou-se para Guarulhos, onde Vanda continuou trabalhando nos Correios, escrevendo e participando de concursos de Trovas e Poesia em todo o país. Licenciada em Letras, tornou-se professora da rede escolar paulista, lecionando, inclusive Francês. Pouco depois, concursada, deixou a ECT e efetivou-se como professora na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus “Professor Fábio Fanucchi”, em Guarulhos-SP. Em 1984 recebeu medalha de “Professor do Ano”, uma promoção da Prefeitura Municipal. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Guarulhense de Letras (AGL). Ainda em Guarulhos, fez o Curso de Pedagogia Plena, nas Faculdades Farias Brito.

Contando com trabalhos ainda inéditos, publicou até agora cinco títulos: “TRAJETÓRIA” (Poesia), Editora do Escritor, São Paulo, 1981; “DESCORTINANDO” (Poesia), J. Scortecci Editora, São Paulo, 1990; “CONVERSA CALADA” (Sonetos), Editora Lítero-Técnica, Curitiba, PR, 1990; “UMA CANDEIA NA JANELA” (Prosa), Torre de Papel Editora Gráfica, Curitiba, PR, 1997 e “UMA LUZ NO CAMINHO” (Autobiografia), Editora Torre de Papel, Curitiba, PR, 2004.

Premiadíssima nos concursos de poesias e trovas por todo o Brasil e às vezes em Portugal, a poesia versátil de Vanda é repleta de ternura, sensibilidade, profundidade de sentimento, com domínio perfeito da língua portuguesa, mas sem rebuscamento. Emociona quem lê, porque escreve com o coração. No livro CONVERSA CALADA, são sessenta (60) sonetos (incluindo uma versão para o Francês), versando sobre desencontro, esperança, tristeza, alegria, família, criança, flor, fantasia, filosofia, amor, saudade, vida, etc.

Assim, em seus versos encontramos a jovem apaixonada: 

“Quando eu te conheci,
plasmou-se a infinitude
das coisas eternas.

Algum liame perene
para além firmou-se,
muito além das coisas menores.

Estrelas trocaram sorrisos,
anjos tocaram guizos.

Nasceu o inexplicável,
o essencial,
o verdadeiro”. 

A mulher casada e mãe, embevecida com suas crianças, como escreveu no soneto A Meu Filho: 

“Vejo a criança de ontem em você,
que embalei nos meus braços ternamente.
Sinto inundar-me de emoção porque
eu vi botão a flor hoje imponente”. 

Ou ainda, a avó saudando o primeiro neto: 

“A notícia é como afago,
traz-me ternura e carinho:
Que bênção! Chegou Tiago,
o meu primeiro netinho”.

Lendo a poesia espontânea, vibrante e suave de Vanda Queiroz é impossível não nos lembrarmos da grande poetisa de Goiás, Cora Coralina, com suas “Estórias da Casa Velha da Ponte”.

Retornando a família em 1985 para Curitiba, Vanda aposentou-se do magistério e passou a ocupar-se com trabalhos de revisão de texto, além de desempenhar serviço voluntário na igreja. Ocupa, hoje, a cadeira nº 12 da Academia Paranaense de Poesia. Pela sua obra literária, foi agraciada em 2008 com a Medalha de Mérito “Fernando Amaro”, promoção da Prefeitura Municipal de Curitiba. Só no âmbito da trova, conta com mais de trezentas premiações. Eis uma pequena amostra: Em Niterói, RJ: 

“Sombra e luz fazem nuança
no largo painel da vida.
Luz é o raio de esperança,
e sombra, a ilusão perdida”. 

Pouso Alegre, MG: 

“Olhando o velho retrato
da praça, eu ouço à distância
acordes que são, de fato,
cirandas da minha infância”. 

Bandeirantes, PR: 

“A mais sublime lição
de grandeza, amor e fé,
foi ver um homem sem mão
pintando flores com o pé”. 

Campinas, SP: 

“Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
o amor será sempre amor!”

Sua preocupação social é patente no poema “Menino da feira”, 1º lugar no Concurso Rosacruz, em Guarulhos, SP: 

“Menino da feira,
esperto e magrinho,
tão cedo na vida
perdeu seu lazer.

Carreto, moça?
Baratinho, dona!
Posso cuidar do carro, tia?

Menino insistente
pedindo com os olhos
que guardam no fundo
segredos do lar…

(Talvez o pai fugiu…
A mãe leva para fora…
Oito irmãozinhos com fome...)

Menino
sem direitos…
só deveres.

Seus pais, onde estarão?
Talvez você seja filho…
da minha própria omissão.”

Segundo Adélia Victória Ferreira, “Vanda não precisa de apresentações ou apologistas. Sua arte fala por si. Basta conhecê-la para se constatar que ali se desvenda uma das maiores poetisas brasileiras da atualidade”. Bem definiu a professora Elisa Campos de Quadros, Mestre em Letras e Professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná, quando disse: “A alma doce e introvertida da autora demonstra, nesse impulso para o retraimento, que a poesia coabita mais com a solidão do que com o barulho, viceja mais no silêncio do que no burburinho”. E acrescenta que: “Conversa Calada é uma obra que traz canto, encanto e encantamento”.

Está presente no “Anuário de Poetas do Brasil – 1980 – 3º volume, organizado pelo saudoso poeta Aparício Fernandes, Rio de Janeiro, RJ, páginas 447/452 com dez sonetos primorosos. Figura também no “Anuário – Coletânea de Trovas Brasileiras (página 10) e em ESCRÍNIO, Seleção Anual de Trovas (página 14) ambos de 1981, organizados pelo saudoso trovador Fernandes Vianna, Recife – Pernambuco.

Assim, a mineira de nascimento e paranaense de coração, ou por adoção, vai construindo sua obra literária sem alarde, mas forte, vigorosa e contínua, sem abdicar, contudo, da ternura e da simplicidade, garantindo um lugar de destaque no Panorama da Literatura Brasileira.

BIBLIOGRAFIA:
Anuário de Poetas do Brasil – 1980 – 3º volume, Aparício Fernandes, Folha Carioca Editora Ltda, Rio de Janeiro, RJ;
Anuário – Coletânea de Trovas Brasileiras – 1981, Fernandes Vianna, FIDA Editorial, Recife, PE;
Escrínio – Seleção Anual de Trovas – 1981, Fernandes Vianna, FIDA Editorial, Recife, PE;
Conversa Calada – Vanda Fagundes Queiroz, Editora Lítero-Técnica, 1990, Curitiba, PR;
Uma Luz no Caminho – Vanda Fagundes Queiroz, Editora Torre de Papel, 2004, Curitiba, PR.

Fonte:

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer)II


A CHEGADA

Noite de chuva tétrica e pressaga.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimáría o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!

SEM TÍTULO

Amo, e por este amor verto o meu próprio sangue;
E sei que deste amor o que de bom me resta,
É que por to provar eu te irrite, eu te zangue
Pois entraste da intriga a embrenhada floresta.

Mas que importa que o luar importune a avantesma
E que a suspeita gire em torno de uma estima,
Quando essa estima tem a mesma força e a mesma
Vida eterna de um sol que outros astros encima?

Gravitem em redor satélites mesquinhos
Os bastardos da luz, os espúrios da glória.
Que importa! Se este amor por tortuosos caminhos
Beijo a beijo nos leva à suprema vitória?

Os espinhos cruéis se transformam em louros
E a mulher que os teceu vai à imortalidade;
Tira ao Dante Beatriz os egrégios tesouros,
Ou com ele deslumbra ainda hoje a humanidade?

Porventura a nobreza e os brasões de Eleonora
Tinham vida e grandeza iguais ao tempo e o espaço?
Não, que o esquecimento a asa desoladora
Sobre ela vinha abrir – não fora o amor de Tasso!

Que o ódio impotente e vil se definhe e se exaura
No seu esforço vão, - babugento heresiarca –
Que seria de ti, ora aureolada Laura
Se te não perpetuasse o plectro de Petrarca?

Se esses amores, tu, velho gênio da intriga,
Não chegaste a queimar na pira do teu culto
Quando eles tinham só por companheira e amiga
A musa do poeta a perpetuar-lhe o vulto,

Quanto mais destruir este em que duas almas,
Filhas da mesma luz, filhas do mesmo gênio,
Se unem para a conquista ideal das mesmas palmas,
À luz do mesmo teatro e do mesmo proscênio?

Vem! que clamam por ti as vozes do meu verso,
Náufragos a pedir socorro entre os escolhos
Para que em mim concentre e resuma o universo
Basta a constelação que vive nos teus olhos!

DA MINHA JANELA
(Soulary)

Desta janela aberta aos eflúvios de Abril,
Vendo os que vão e vêm, a alma sonha e medita:
- "Pela vida- a lutar nesta faina febril,
Este e aquele, onde vão? de onde vêm nesta grita?”

O que se ama ou se odeia ou se busca ou se evita,
Tudo se cruza aqui numa trama sutil.
- Quantos a morte leva ou seja nobre ou vil,
Enquanto em pleno sol o vivente se agita? -

E penso então que desde o tempo mais distante
A rua vê correr a humana vaga, e nela,
Nada mudar da vida o drama palpitante.

E que outras ondas sempre aqui virão rolar...
Sempre as mesmas! porém, desta minha janela,
Outros - não eu! - virão vê-las ir e voltar...

FLAVA DEA

Da discreta persiana pelas fendas
Cuidadosos passai, raios brilhantes
Do sol! segui-os meu olhar! Instantes
Raros vos mostram as mais raras prendas.

Como das ondas das pagas legendas
Súbito surgem deusas triunfantes.
Saltam-lhe as formas níveas, palpitantes
Da branca espuma das nevadas rendas.

Agora uma; agora esta outra poma;
O ventre agora, agora... - que ansiedade! -
Curva por curva, o corpo todo assoma!

Sol! meu olhar! mais ávidos! pois há de
Ao desprender-se farta a loura coma,
Velar da Deusa a nua majestade.

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Antonio Brás Constante (O Copo ao Corpo e ao Fundo do Poço)

O mundo é um lugar fantástico; coisas simples, como o mel, são verdadeiras maravilhas da natureza. A semente que cai na terra germinando em bela planta, como um limoeiro, por exemplo, que se enche de flores e delas surge o fruto. Até a areia pode ter seus grãos transformados em vidro. Pensem na cana-de-açúcar, que uma vez processada vira alimento, combustível e até o álcool de farmácia.

Eis que então surgiu o homem, cuja inteligência tornou-o senhor absoluto de tudo que existe no mundo. Seu gênio criativo foi desenvolvendo as maravilhas modernas que conhecemos, entre elas carros, casas, aviões, etc. Mas alguns indivíduos resolveram fazer diferente. Então o homem pegou o vidro e inventou o copo, dentro dele pôs o mel e o limão. Da cana-de-açúcar fez a cachaça, juntando-a aos demais ingredientes dentro do copo. Bebeu todo o seu conteúdo e viu que aquilo era bom, recomeçando o processo várias vezes, até que quebrou o copo, derramou o mel, cortou o dedo ao fatiar o limão, cambaleou até um canto qualquer e decidiu tomar só a cachaça diretamente do gargalo mesmo. 

A partir daí surgiu o “bebum”. O bebum enche a cara por vários motivos, mas não lembra de nenhum deles, pois justamente bebe para esquecê-los. Isso o torna uma criatura sem passado e muito provavelmente sem futuro. E lá se vai o arremedo de homem, encharcado de bebida, de volta para casa por ter sido expulso do bar. Após toda uma caminhada em “zigue-zague”, com eventuais paradas para recordar o motivo de estar caminhando pela noite ao invés de ter continuado no boteco, o bebum finalmente chega em sua morada, onde acredita que irá encontrar a sua amada esposa (ao menos espera que desta vez aquela seja a sua casa, já que nas outras inúmeras vezes ele bateu em casas erradas).

Para quem não sabe, nessas situações a “amada esposa” é aquela criatura que fica dentro de casa, sentada no sofá de frente para a porta. Geralmente vestida de roupão de dormir, calçando pantufas felpudas cor-de-rosa e que mesmo podendo facilmente abrir a porta para a entrada do bebum, deixa que ele mesmo faça isso. Algo que pode demorar um bom tempo, pois se já foi difícil achar a rua e a casa, agora começa a tarefa mais difícil que é inserir a chave na diminuta fechadura que fica aparecendo de forma dupla e se movendo freneticamente na sua frente. Quando pressente que o seu alcoolizado marido conseguirá finalmente adentrar pela porta, a esposa então se levanta. Permanece com o rosto fechado e os braços cruzados. Sua mão esquerda tamborilando os dedos no cotovelo direito e a mão direita segurando o rolo de macarrão.

A primeira coisa que as mulheres dizem nessas ocasiões é algo do tipo: “sabe que horas são?”. Como se essa informação pudesse ser de qualquer valia para o organismo empapado de bebida que paira na sua frente de pé (tentando manter o equilíbrio), também conhecido como marido. Essas mulheres ainda podem se considerar felizardas. Duro mesmo é quando o bêbado resolve bancar o machão. Quebrando tudo, batendo na mulher e nos filhos. Transformando seu lar em um tormento para todos aqueles que convivem com ele.

Enfim, o mundo é um lugar maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas. Infelizmente o alcoolismo não é uma delas, pois, na estrada da vida, a bebida é o combustível que leva qualquer indivíduo velozmente para longe de todas as pessoas que ele ama. Conduz seu destino para um profundo e solitário abismo, localizado no fundo de uma garrafa.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Academia Ituana de Letras (Evento Comemorativo 29 de Setembro)


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Prof. Garcia (Trovas do Meu Cantar) II


A doce voz das camenas*,
na fonte, sempre a chorar…
Vai dobrando as minhas penas,
nas penas do meu cantar!

Amores na mocidade!…
Depois, a contrapartida:
Cansaço, dor e saudade,
na curva extrema da vida!

Aquela casinha pobre,
piso de terra batida…
Fiz dela, a mansão mais nobre,
na infância de minha vida!

A saudade é sempre afoita,
mansa, chega sutilmente,
depois que chega e se amoita,
começa a bater na gente!

Da engenhoca de madeira,
que vovó fiava nela…
Eu guardo o fuso, a cadeira
e a dor da saudade dela!

Em seus varais, sempre expostas,
bem cedo ao romper do dia…
As nuvens, trazem nas costas,
mil caçuás** de poesia!

Esta dor que, em mim, persiste
e não me deixa dormir!…
É “aquela” lembrança triste
do que deixou de existir!

Eu e tu, meu passarinho,
no penar, somos iguais!
Penas longe do teu ninho,
e eu, do ninho de meus pais!

Mesmo que o amigo te ofenda,
não temas, sê mais feliz;
que a mão do tempo remenda
toda e qualquer cicatriz!

Não tinha ceia!… No entanto,
ao lado de nosso pais,
brindamos noites de encanto,
no encanto e outros Natais!

Nas areias calcinadas
do meu sofrido sertão,
a seca deixa pegadas
e rastros de solidão!

Nunca me entrego aos fracassos,
o amor, tanto me seduz…
Que, preso à cruz dos teus braços,
esqueço da minha cruz!

O sol, a brisa e esta rede,
no entardecer, que esplendor!
E o mar, morrendo de sede,
mata-me a sede de amor!

Para a criança sem teto,
que mendiga o pão que come,
qualquer palavra de afeto
é alívio que mata a fome.

Para que brilhe o esplendor
no Natal, entre os irmãos,
que a mão que semeia o amor,
encha de amor, outras mãos!

Pela crença se deduz,
que, numa justa aliança,
Deus pinga gotas de luz,
nas pegadas da esperança!

Quando, à tarde, ao pôr do sol,
tu te sentires tristonho,
busca teu novo arrebol,
no arrebol de um novo sonho!

Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor…
Pois, a cortina mais nobre,
não cobre um riso de amor!

Sei que pouca gente sabe,
perdoar, pedir perdão;
não tem dor que não se acabe,
quando se abraça outro irmão!

Sem revelar meus segredos,
as minhas mãos de aprendiz,
vão descobrindo, em teus dedos,
o amor que me faz feliz!

Sem rumo, o meu barco avança,
e à deriva, à fé se agarra…
Enfim, a luz da esperança
do velho Farol da Barra!

Talvez, por nossos  deslizes
ou ausência de nitidez…
Nós somos dois infelizes,
escravos da insensatez!

Tarde sem luz!… E eu, tristonho,
vejo, sem graça, o sol posto!…
Finjo um sorriso e me ponho
a por mais luz no meu rosto!
_______________
Notas:
* Camenas: Na mitologia romana, as camenas (em latim: Camenae) eram originalmente deusas da primavera, do bem, e das fontes ou ninfas das águas de Vênus. Eram sábias e muitas vezes profetizavam o futuro. 
Existiam quatro camenas: Carmenta, Egéria, Antevorta e Postverta. Carmenta era a chefe das ninfas; o bosque fora da Porta Capena era dedicado a Egéria.
No dia do seu festival, a Carmentália, celebrado entre os dias 11 e 15 de janeiro, as virgens vestais retiravam água das nascentes.
As camenas foram depois identificadas com as musas da mitologia grega. Na tradução da Odisseia, Lívio Andrônico traduziu a palavra grega Mousa por Camena.

** Caçuá: Cesto de cipó, taquara ou vime, fasquias de bambú para colocar na cangalha nas costa do burro, cavalo ou jumento no transporte de alimentos. O mesmo que jacá em outras regiões brasileiras.
Berços de cipó e balaios de taquara, caçuás sem fundo (Euclides da Cunha, em Grandes Sertões).

Fontes:
– Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
– Camenas. Wikipedia. 

Vinicius de Moraes (O amor que move o sol e outras estrelas)

Foi no cruzamento de São José com a Avenida, depois na Cinelândia, depois em Copacabana. Elas atravessavam a rua, entravam em lojas, saíam de automóveis, paravam para admirar vitrinas e aí seguiam num novo impulso, quais jovens barcos, os barcos a se agitarem como remos de incerta parlamenta, ganhando devagar e sempre os mares azuis da tarde carioca fresca e fagueira. Saias pretas, batinas brancas, sapatinhos de balé, os cabelos graciosamente curtos ou atacados no alto, lá iam elas bamboleando a sua doce carga, com os veludosos olhos atentos aos mostruários. Surgiam às dezenas, de todos os lados, como obedecendo a um sinal convencionado e ao se cruzarem miravam-se de soslaio, a se medirem como embarcações rivais. Às vezes, numa esquina, paravam por um momento, ligeiramente resfolegantes, para descansar um pouco do esforço feito dentro do mar picado da multidão. Mas nada que denunciasse nelas uma grande estafa ou um sentimento de derrota. As barriguinhas pandas, os corpos equilibrados à nova distribuição de peso, a pele esticada, a nuca fresca, súbito punham elas de novo a funcionar o motorzinho de popa e saíam empinadinhas em frente, um enxame de mulherzinhas grávidas a penetrar a vida urbana de uma nova vida, uma nova graça e uma certa gravidade. 

Como explicar a emoção que senti? Talvez essa que provocaria a vista de um quadrinho de regata feito por Guignard, com os ioles e esquifes distendidos na puxada e por ali tudo, em meio ao esvoaçar multicor de bandeirinhas, um mundo de serenas baleeiras a se balançarem suaves ao sabor das ondas. Sei que fiquei lírico, possuído do sentimento da fecundidade da vida, sentindo a brisa farfalhar em meus cabelos e arder em minha pele o sol claro do dia.

Soube que o tempo tinha cumprido a sua missão, e todas aquelas mulherzinhas fecundadas, a berçar no movimento de seus passos a gestação dos filhos, constituíam em seu gracioso desenho convexo uma maravilhosa afirmação de vida e um caminho positivo para o amor. Soube que o amor é uma missão a cumprir por nós, homens, e que é a nós de constantemente querer, zelar e defender essas que, tão frágeis, fazem a nossa força e miséria e cuja existência é um contínuo sofrer, se alegrar e se extinguir por nós. Soube que homem e mulher são, em sua constante atração e repúdio, a imagem mesma da vida em movimento, e que sua longa jornada de mãos juntas, a se afastar cada vez mais do Paraíso Perdido, tende a uma alfombra cada vez menos distante, onde se aninharão melhor e onde fecundarão seres cada vez mais próximos da terra.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

UBT – Curitiba (Programação de Setembro 2018)

A União Brasileira de Trovadores - Seção de Curitiba convida todos os Trovadores, Poetas e Amigos simpatizantes da Trova, para:

Dia: 15 de setembro 

Hora: das 14h30min às 17h00min.

Local: Centro de Letras do Paraná. Rua Fernando Moreira, nº 370, quase esquina com o SESC da Esquina.

TARDE COM TROVAS - REUNIÃO MENSAL

Dentro da programação:

- Concurso Interno: 
Tema – OFERENDA (L/F). 01 trova por concorrente. 
Sistema de envelopes. Não é necessário que as palavras tema constem do corpo da trova.

- Revoadas de trovas 
Reunião dedicada a Trovas referentes aos temas de setembro, dentre outros: Pátria, Bíblia, Imprensa, Frevo, irmão, secretária, etc..

 - Apresentações Musicais:

- Sorteio de Brindes

- Lanche

* Participe durante a reunião das revoadas, declamando trovas Humorísticas e também com temas de sua preferência.
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Dia 20 de setembro

Hora: 17 horas

Local: 
Biblioteca Pública do Paraná – Auditório Paul Garfunkel – 2° andar. Cândido Lopes, 133 - Curitiba – Paraná.

Premiação do concurso de trovas Cidade de Curitiba

Solenidade de Premiação – Todos os âmbitos e categoria./Exposição de trovas
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Dia 20 de setembro 

Hora: 20 horas

Local: Hotel Del Rey – Rua Ermelino de Leão, 18 – Centro

Jantar de confraternização (por adesão)

Valor: R$45,00 por pessoa ( sem inclusão de bebidas).
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22 de Setembro de 2018 

Hora: 10 h às 19 horas

Espaço A Fábrika – Praça do Expedicionário

Trovoada poética

Contamos com a sua presença e participação!
UBT-Curitiba.

domingo, 9 de setembro de 2018

Isabel Furini (A Festa)


Olhou ao redor. Sua visão parecia turva. Ouvia as vozes dos convidados em matizes cinzentos.  As vozes cada vez mais e mais longínquas. A orquestra tocava música de Ray Conniff.  A mulher loira de cabelos encaracolados que caíam sobre os ombros e ressaltavam sobre o vestido preto, longo, com um laço bordado na cintura, olhava para ela. Essa é a filha do dono, murmurou João. A mulher aproximou-se deles, mas virou a cabeça e só cumprimentou com elegância o casal de velhos que estava do lado direito, com os olhos fixos no quadro de Portinari.

-  Como Portinari soube exprimir a subjetividade do homem!- exclamou o velho.

-  Meu avô foi amigo de Portinari... declarou  a mulher loira que era a rainha da festa. Um homem elegante, de cabelos grisalhos, aproximou-se, segurando um copo de uísque.

- Querida, a esposa do doutor  Sargado perguntou por você.

-  Com licença - falaram os dois em coro.

A orquestra iniciava um blue. Ela viu a filha do dono aproximar-se de uma mulher com vestido de renda verde escuro e uma jóia enorme pendurada do pescoço. Deve valer uma fortuna, pensou.

E ela ficou ali, sem ar, perto da porta, os olhos turvos e uma vontade de chorar. Havia percorrido todos os brechós da cidade - compre um vestido mais ousado, você parece uma velha, havia falado sua filha Carolina. E ela, para sentir-se jovem, havia escolhido um vestido de uma cor muito chamativa, entre o rosa choque e o roxo, ombros descobertos e brincos enormes - a vendedora disse que estavam na moda.

Mas ao entrar no amplo salão do clube viu que só imperavam cores escuras. As jóias brilhavam entre vestidos pretos, verde-escuros, cinza e prata. A anfitriã vestia uma saia preta, longa, de tafetá e uma blusa bordada.

João, murmurou - eu sou a única com um vestido rosa choque, comprado em um brechó!

- Nem se preocupe, você está bem...

Ela teve vontade de chorar. Olhou em silêncio para seu marido, o paletó marrom escuro, barato, não se parecia em nada com os que ostentavam os outros convidados. Fitou novamente seu marido. Parecia tão mal vestido ao lado desses esnobes elegantes. E ela com uma cor berrante. Somos dois palhaços, pensou.

De repente, a música parou. Alguém importante da firma subiu ao palco e começou um discurso. Ao terminar o discurso, vamos embora, murmurou ela, bem perto do ouvido de João.

Olharam-se e,  em cumplicidade, caminharam a passinhos leves para a porta de entrada que estava aberta.

O orador terminou o discurso e a sala vibrou de tantos aplausos.

Mais um discurso.  O casal entreolhou-se. Ambos sorriram e continuaram a mexer-se devagar e silentes como assassinos em filmes de mistério, até chegar à porta. Só ao sair ela respirou fundo.  Caminharam abraçados entre o jardim e os carros. Passaram pelo portão e avançaram pela rua bem iluminada.  Fazia tanto tempo que não se abraçavam. Caminharam unidos por ruas desertas.

- Vamos pegar um táxi? -  perguntou ele.

- Se você quer...

- A próxima quadra é uma avenida, deve ter um...

- E vamos chegar a tempo para assistir a um filme.

- Você pode fazer pipocas no microondas. Assistir a um filme comendo pipocas é o melhor da vida, não é?

- É sim, é - disse ela com voz entrecortada, passando a língua pelos lábios para enxugar uma lágrima.

Fonte:

Jessier Quirino (Parafuso de Cabo de Serrote)


Tem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.

Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.

É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.

No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom... tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.

A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.

Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.

Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Tem rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
Bodegueiro despacha a um artesão
Parafuso de cabo de serrote.