terça-feira, 11 de setembro de 2018

Filemon F. Martins (Quem é Vanda Fagundes Queiroz?)

Escritora, poetisa, cronista, trovadora, declamadora, memorialista, contista, professora, mãe, e hoje também avó, casada com o Dr. Geraldo Queiroz (Cirurgião-Dentista) e mãe de Jone, Eliana, Gude e William. Nasceu em 20 de novembro de 1938, na vila de Santo Antonio da Boa Vista, município de São João da Ponte, norte de Minas Gerais. Viveu parte de sua infância na Fazenda Tipis, segundo ela, “um paraíso, o melhor lugar do mundo”. Filha de Aristides Fagundes de Souza (falecido em 1945) e Maria de Deus Ferreira (falecida em 1999).

Eu a conheci como exímia trovadora quando na década de 80 frequentava as reuniões da União Brasileira de Trovadores – Seção de São Paulo, então sob a presidência do magnífico Izo Goldman. Naquela época faziam parte da UBT-SP, grandes trovadores, como Orestes Turano, Adélia V. Ferreira, Alice Bueno de Oliveira, Clóvis Maia, Lauro de Almeida, Cipriano Ferreira Gomes, Geraldo Pimenta de Moraes, Sara Kanter, Marilita Pozzoli e outros cujos nomes não me recordo, no momento.

Vanda, conforme narra em seu livro “UMA LUZ NO CAMINHO”, com sete anos de idade iniciou o curso primário na cidade de Ibiracatu, naquela época uma pequena vila. Logo de inicio, aflorou a tendência para a arte de ler e escrever, e a menina estudiosa e declamadora tornou-se poetisa, ainda adolescente. Sua vida de infância, até a conclusão do curso primário, foi retratada com emoção no seu livro “UMA CANDEIA NA JANELA”, narração romanceada de seu contexto familiar, baseada em lembranças da infância, mas que indiretamente se faz registro de uma cultura regional, com seu linguajar próprio, culinária, costumes, tipos humanos, traços vivos de um determinado tempo e um determinado espaço restritos a uma rústica região do sertão mineiro.

Continuou os estudos no Colégio Imaculada Conceição, em Montes Claros, progressista cidade do norte de Minas Gerais, e ali fez o curso ginasial e depois se formou normalista (Curso Normal de Formação de Professores Primários). Casou-se em 1958 e foi residir em Curitiba, Paraná. Por concurso público, ingressou no então DCT (Departamento de Correios e Telégrafos), hoje ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Ainda em Curitiba, fez o curso de Letras (Português e Francês) na Universidade Católica do Paraná (PUC), enquanto escrevia crônicas, poemas, trovas e sonetos.

Depois de 16 anos de trabalhos e estudos em Curitiba, em razão da transferência de seu esposo para a Base Aérea de São Paulo, Cumbica – Guarulhos, a família mudou-se para Guarulhos, onde Vanda continuou trabalhando nos Correios, escrevendo e participando de concursos de Trovas e Poesia em todo o país. Licenciada em Letras, tornou-se professora da rede escolar paulista, lecionando, inclusive Francês. Pouco depois, concursada, deixou a ECT e efetivou-se como professora na Escola Estadual de Primeiro e Segundo Graus “Professor Fábio Fanucchi”, em Guarulhos-SP. Em 1984 recebeu medalha de “Professor do Ano”, uma promoção da Prefeitura Municipal. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Guarulhense de Letras (AGL). Ainda em Guarulhos, fez o Curso de Pedagogia Plena, nas Faculdades Farias Brito.

Contando com trabalhos ainda inéditos, publicou até agora cinco títulos: “TRAJETÓRIA” (Poesia), Editora do Escritor, São Paulo, 1981; “DESCORTINANDO” (Poesia), J. Scortecci Editora, São Paulo, 1990; “CONVERSA CALADA” (Sonetos), Editora Lítero-Técnica, Curitiba, PR, 1990; “UMA CANDEIA NA JANELA” (Prosa), Torre de Papel Editora Gráfica, Curitiba, PR, 1997 e “UMA LUZ NO CAMINHO” (Autobiografia), Editora Torre de Papel, Curitiba, PR, 2004.

Premiadíssima nos concursos de poesias e trovas por todo o Brasil e às vezes em Portugal, a poesia versátil de Vanda é repleta de ternura, sensibilidade, profundidade de sentimento, com domínio perfeito da língua portuguesa, mas sem rebuscamento. Emociona quem lê, porque escreve com o coração. No livro CONVERSA CALADA, são sessenta (60) sonetos (incluindo uma versão para o Francês), versando sobre desencontro, esperança, tristeza, alegria, família, criança, flor, fantasia, filosofia, amor, saudade, vida, etc.

Assim, em seus versos encontramos a jovem apaixonada: 

“Quando eu te conheci,
plasmou-se a infinitude
das coisas eternas.

Algum liame perene
para além firmou-se,
muito além das coisas menores.

Estrelas trocaram sorrisos,
anjos tocaram guizos.

Nasceu o inexplicável,
o essencial,
o verdadeiro”. 

A mulher casada e mãe, embevecida com suas crianças, como escreveu no soneto A Meu Filho: 

“Vejo a criança de ontem em você,
que embalei nos meus braços ternamente.
Sinto inundar-me de emoção porque
eu vi botão a flor hoje imponente”. 

Ou ainda, a avó saudando o primeiro neto: 

“A notícia é como afago,
traz-me ternura e carinho:
Que bênção! Chegou Tiago,
o meu primeiro netinho”.

Lendo a poesia espontânea, vibrante e suave de Vanda Queiroz é impossível não nos lembrarmos da grande poetisa de Goiás, Cora Coralina, com suas “Estórias da Casa Velha da Ponte”.

Retornando a família em 1985 para Curitiba, Vanda aposentou-se do magistério e passou a ocupar-se com trabalhos de revisão de texto, além de desempenhar serviço voluntário na igreja. Ocupa, hoje, a cadeira nº 12 da Academia Paranaense de Poesia. Pela sua obra literária, foi agraciada em 2008 com a Medalha de Mérito “Fernando Amaro”, promoção da Prefeitura Municipal de Curitiba. Só no âmbito da trova, conta com mais de trezentas premiações. Eis uma pequena amostra: Em Niterói, RJ: 

“Sombra e luz fazem nuança
no largo painel da vida.
Luz é o raio de esperança,
e sombra, a ilusão perdida”. 

Pouso Alegre, MG: 

“Olhando o velho retrato
da praça, eu ouço à distância
acordes que são, de fato,
cirandas da minha infância”. 

Bandeirantes, PR: 

“A mais sublime lição
de grandeza, amor e fé,
foi ver um homem sem mão
pintando flores com o pé”. 

Campinas, SP: 

“Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
o amor será sempre amor!”

Sua preocupação social é patente no poema “Menino da feira”, 1º lugar no Concurso Rosacruz, em Guarulhos, SP: 

“Menino da feira,
esperto e magrinho,
tão cedo na vida
perdeu seu lazer.

Carreto, moça?
Baratinho, dona!
Posso cuidar do carro, tia?

Menino insistente
pedindo com os olhos
que guardam no fundo
segredos do lar…

(Talvez o pai fugiu…
A mãe leva para fora…
Oito irmãozinhos com fome...)

Menino
sem direitos…
só deveres.

Seus pais, onde estarão?
Talvez você seja filho…
da minha própria omissão.”

Segundo Adélia Victória Ferreira, “Vanda não precisa de apresentações ou apologistas. Sua arte fala por si. Basta conhecê-la para se constatar que ali se desvenda uma das maiores poetisas brasileiras da atualidade”. Bem definiu a professora Elisa Campos de Quadros, Mestre em Letras e Professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná, quando disse: “A alma doce e introvertida da autora demonstra, nesse impulso para o retraimento, que a poesia coabita mais com a solidão do que com o barulho, viceja mais no silêncio do que no burburinho”. E acrescenta que: “Conversa Calada é uma obra que traz canto, encanto e encantamento”.

Está presente no “Anuário de Poetas do Brasil – 1980 – 3º volume, organizado pelo saudoso poeta Aparício Fernandes, Rio de Janeiro, RJ, páginas 447/452 com dez sonetos primorosos. Figura também no “Anuário – Coletânea de Trovas Brasileiras (página 10) e em ESCRÍNIO, Seleção Anual de Trovas (página 14) ambos de 1981, organizados pelo saudoso trovador Fernandes Vianna, Recife – Pernambuco.

Assim, a mineira de nascimento e paranaense de coração, ou por adoção, vai construindo sua obra literária sem alarde, mas forte, vigorosa e contínua, sem abdicar, contudo, da ternura e da simplicidade, garantindo um lugar de destaque no Panorama da Literatura Brasileira.

BIBLIOGRAFIA:
Anuário de Poetas do Brasil – 1980 – 3º volume, Aparício Fernandes, Folha Carioca Editora Ltda, Rio de Janeiro, RJ;
Anuário – Coletânea de Trovas Brasileiras – 1981, Fernandes Vianna, FIDA Editorial, Recife, PE;
Escrínio – Seleção Anual de Trovas – 1981, Fernandes Vianna, FIDA Editorial, Recife, PE;
Conversa Calada – Vanda Fagundes Queiroz, Editora Lítero-Técnica, 1990, Curitiba, PR;
Uma Luz no Caminho – Vanda Fagundes Queiroz, Editora Torre de Papel, 2004, Curitiba, PR.

Fonte:

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer)II


A CHEGADA

Noite de chuva tétrica e pressaga.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimáría o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!

SEM TÍTULO

Amo, e por este amor verto o meu próprio sangue;
E sei que deste amor o que de bom me resta,
É que por to provar eu te irrite, eu te zangue
Pois entraste da intriga a embrenhada floresta.

Mas que importa que o luar importune a avantesma
E que a suspeita gire em torno de uma estima,
Quando essa estima tem a mesma força e a mesma
Vida eterna de um sol que outros astros encima?

Gravitem em redor satélites mesquinhos
Os bastardos da luz, os espúrios da glória.
Que importa! Se este amor por tortuosos caminhos
Beijo a beijo nos leva à suprema vitória?

Os espinhos cruéis se transformam em louros
E a mulher que os teceu vai à imortalidade;
Tira ao Dante Beatriz os egrégios tesouros,
Ou com ele deslumbra ainda hoje a humanidade?

Porventura a nobreza e os brasões de Eleonora
Tinham vida e grandeza iguais ao tempo e o espaço?
Não, que o esquecimento a asa desoladora
Sobre ela vinha abrir – não fora o amor de Tasso!

Que o ódio impotente e vil se definhe e se exaura
No seu esforço vão, - babugento heresiarca –
Que seria de ti, ora aureolada Laura
Se te não perpetuasse o plectro de Petrarca?

Se esses amores, tu, velho gênio da intriga,
Não chegaste a queimar na pira do teu culto
Quando eles tinham só por companheira e amiga
A musa do poeta a perpetuar-lhe o vulto,

Quanto mais destruir este em que duas almas,
Filhas da mesma luz, filhas do mesmo gênio,
Se unem para a conquista ideal das mesmas palmas,
À luz do mesmo teatro e do mesmo proscênio?

Vem! que clamam por ti as vozes do meu verso,
Náufragos a pedir socorro entre os escolhos
Para que em mim concentre e resuma o universo
Basta a constelação que vive nos teus olhos!

DA MINHA JANELA
(Soulary)

Desta janela aberta aos eflúvios de Abril,
Vendo os que vão e vêm, a alma sonha e medita:
- "Pela vida- a lutar nesta faina febril,
Este e aquele, onde vão? de onde vêm nesta grita?”

O que se ama ou se odeia ou se busca ou se evita,
Tudo se cruza aqui numa trama sutil.
- Quantos a morte leva ou seja nobre ou vil,
Enquanto em pleno sol o vivente se agita? -

E penso então que desde o tempo mais distante
A rua vê correr a humana vaga, e nela,
Nada mudar da vida o drama palpitante.

E que outras ondas sempre aqui virão rolar...
Sempre as mesmas! porém, desta minha janela,
Outros - não eu! - virão vê-las ir e voltar...

FLAVA DEA

Da discreta persiana pelas fendas
Cuidadosos passai, raios brilhantes
Do sol! segui-os meu olhar! Instantes
Raros vos mostram as mais raras prendas.

Como das ondas das pagas legendas
Súbito surgem deusas triunfantes.
Saltam-lhe as formas níveas, palpitantes
Da branca espuma das nevadas rendas.

Agora uma; agora esta outra poma;
O ventre agora, agora... - que ansiedade! -
Curva por curva, o corpo todo assoma!

Sol! meu olhar! mais ávidos! pois há de
Ao desprender-se farta a loura coma,
Velar da Deusa a nua majestade.

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Antonio Brás Constante (O Copo ao Corpo e ao Fundo do Poço)

O mundo é um lugar fantástico; coisas simples, como o mel, são verdadeiras maravilhas da natureza. A semente que cai na terra germinando em bela planta, como um limoeiro, por exemplo, que se enche de flores e delas surge o fruto. Até a areia pode ter seus grãos transformados em vidro. Pensem na cana-de-açúcar, que uma vez processada vira alimento, combustível e até o álcool de farmácia.

Eis que então surgiu o homem, cuja inteligência tornou-o senhor absoluto de tudo que existe no mundo. Seu gênio criativo foi desenvolvendo as maravilhas modernas que conhecemos, entre elas carros, casas, aviões, etc. Mas alguns indivíduos resolveram fazer diferente. Então o homem pegou o vidro e inventou o copo, dentro dele pôs o mel e o limão. Da cana-de-açúcar fez a cachaça, juntando-a aos demais ingredientes dentro do copo. Bebeu todo o seu conteúdo e viu que aquilo era bom, recomeçando o processo várias vezes, até que quebrou o copo, derramou o mel, cortou o dedo ao fatiar o limão, cambaleou até um canto qualquer e decidiu tomar só a cachaça diretamente do gargalo mesmo. 

A partir daí surgiu o “bebum”. O bebum enche a cara por vários motivos, mas não lembra de nenhum deles, pois justamente bebe para esquecê-los. Isso o torna uma criatura sem passado e muito provavelmente sem futuro. E lá se vai o arremedo de homem, encharcado de bebida, de volta para casa por ter sido expulso do bar. Após toda uma caminhada em “zigue-zague”, com eventuais paradas para recordar o motivo de estar caminhando pela noite ao invés de ter continuado no boteco, o bebum finalmente chega em sua morada, onde acredita que irá encontrar a sua amada esposa (ao menos espera que desta vez aquela seja a sua casa, já que nas outras inúmeras vezes ele bateu em casas erradas).

Para quem não sabe, nessas situações a “amada esposa” é aquela criatura que fica dentro de casa, sentada no sofá de frente para a porta. Geralmente vestida de roupão de dormir, calçando pantufas felpudas cor-de-rosa e que mesmo podendo facilmente abrir a porta para a entrada do bebum, deixa que ele mesmo faça isso. Algo que pode demorar um bom tempo, pois se já foi difícil achar a rua e a casa, agora começa a tarefa mais difícil que é inserir a chave na diminuta fechadura que fica aparecendo de forma dupla e se movendo freneticamente na sua frente. Quando pressente que o seu alcoolizado marido conseguirá finalmente adentrar pela porta, a esposa então se levanta. Permanece com o rosto fechado e os braços cruzados. Sua mão esquerda tamborilando os dedos no cotovelo direito e a mão direita segurando o rolo de macarrão.

A primeira coisa que as mulheres dizem nessas ocasiões é algo do tipo: “sabe que horas são?”. Como se essa informação pudesse ser de qualquer valia para o organismo empapado de bebida que paira na sua frente de pé (tentando manter o equilíbrio), também conhecido como marido. Essas mulheres ainda podem se considerar felizardas. Duro mesmo é quando o bêbado resolve bancar o machão. Quebrando tudo, batendo na mulher e nos filhos. Transformando seu lar em um tormento para todos aqueles que convivem com ele.

Enfim, o mundo é um lugar maravilhoso, cheio de coisas maravilhosas. Infelizmente o alcoolismo não é uma delas, pois, na estrada da vida, a bebida é o combustível que leva qualquer indivíduo velozmente para longe de todas as pessoas que ele ama. Conduz seu destino para um profundo e solitário abismo, localizado no fundo de uma garrafa.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Academia Ituana de Letras (Evento Comemorativo 29 de Setembro)


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Prof. Garcia (Trovas do Meu Cantar) II


A doce voz das camenas*,
na fonte, sempre a chorar…
Vai dobrando as minhas penas,
nas penas do meu cantar!

Amores na mocidade!…
Depois, a contrapartida:
Cansaço, dor e saudade,
na curva extrema da vida!

Aquela casinha pobre,
piso de terra batida…
Fiz dela, a mansão mais nobre,
na infância de minha vida!

A saudade é sempre afoita,
mansa, chega sutilmente,
depois que chega e se amoita,
começa a bater na gente!

Da engenhoca de madeira,
que vovó fiava nela…
Eu guardo o fuso, a cadeira
e a dor da saudade dela!

Em seus varais, sempre expostas,
bem cedo ao romper do dia…
As nuvens, trazem nas costas,
mil caçuás** de poesia!

Esta dor que, em mim, persiste
e não me deixa dormir!…
É “aquela” lembrança triste
do que deixou de existir!

Eu e tu, meu passarinho,
no penar, somos iguais!
Penas longe do teu ninho,
e eu, do ninho de meus pais!

Mesmo que o amigo te ofenda,
não temas, sê mais feliz;
que a mão do tempo remenda
toda e qualquer cicatriz!

Não tinha ceia!… No entanto,
ao lado de nosso pais,
brindamos noites de encanto,
no encanto e outros Natais!

Nas areias calcinadas
do meu sofrido sertão,
a seca deixa pegadas
e rastros de solidão!

Nunca me entrego aos fracassos,
o amor, tanto me seduz…
Que, preso à cruz dos teus braços,
esqueço da minha cruz!

O sol, a brisa e esta rede,
no entardecer, que esplendor!
E o mar, morrendo de sede,
mata-me a sede de amor!

Para a criança sem teto,
que mendiga o pão que come,
qualquer palavra de afeto
é alívio que mata a fome.

Para que brilhe o esplendor
no Natal, entre os irmãos,
que a mão que semeia o amor,
encha de amor, outras mãos!

Pela crença se deduz,
que, numa justa aliança,
Deus pinga gotas de luz,
nas pegadas da esperança!

Quando, à tarde, ao pôr do sol,
tu te sentires tristonho,
busca teu novo arrebol,
no arrebol de um novo sonho!

Rasga o manto que te cobre,
mostra teu riso e esplendor…
Pois, a cortina mais nobre,
não cobre um riso de amor!

Sei que pouca gente sabe,
perdoar, pedir perdão;
não tem dor que não se acabe,
quando se abraça outro irmão!

Sem revelar meus segredos,
as minhas mãos de aprendiz,
vão descobrindo, em teus dedos,
o amor que me faz feliz!

Sem rumo, o meu barco avança,
e à deriva, à fé se agarra…
Enfim, a luz da esperança
do velho Farol da Barra!

Talvez, por nossos  deslizes
ou ausência de nitidez…
Nós somos dois infelizes,
escravos da insensatez!

Tarde sem luz!… E eu, tristonho,
vejo, sem graça, o sol posto!…
Finjo um sorriso e me ponho
a por mais luz no meu rosto!
_______________
Notas:
* Camenas: Na mitologia romana, as camenas (em latim: Camenae) eram originalmente deusas da primavera, do bem, e das fontes ou ninfas das águas de Vênus. Eram sábias e muitas vezes profetizavam o futuro. 
Existiam quatro camenas: Carmenta, Egéria, Antevorta e Postverta. Carmenta era a chefe das ninfas; o bosque fora da Porta Capena era dedicado a Egéria.
No dia do seu festival, a Carmentália, celebrado entre os dias 11 e 15 de janeiro, as virgens vestais retiravam água das nascentes.
As camenas foram depois identificadas com as musas da mitologia grega. Na tradução da Odisseia, Lívio Andrônico traduziu a palavra grega Mousa por Camena.

** Caçuá: Cesto de cipó, taquara ou vime, fasquias de bambú para colocar na cangalha nas costa do burro, cavalo ou jumento no transporte de alimentos. O mesmo que jacá em outras regiões brasileiras.
Berços de cipó e balaios de taquara, caçuás sem fundo (Euclides da Cunha, em Grandes Sertões).

Fontes:
– Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
– Camenas. Wikipedia. 

Vinicius de Moraes (O amor que move o sol e outras estrelas)

Foi no cruzamento de São José com a Avenida, depois na Cinelândia, depois em Copacabana. Elas atravessavam a rua, entravam em lojas, saíam de automóveis, paravam para admirar vitrinas e aí seguiam num novo impulso, quais jovens barcos, os barcos a se agitarem como remos de incerta parlamenta, ganhando devagar e sempre os mares azuis da tarde carioca fresca e fagueira. Saias pretas, batinas brancas, sapatinhos de balé, os cabelos graciosamente curtos ou atacados no alto, lá iam elas bamboleando a sua doce carga, com os veludosos olhos atentos aos mostruários. Surgiam às dezenas, de todos os lados, como obedecendo a um sinal convencionado e ao se cruzarem miravam-se de soslaio, a se medirem como embarcações rivais. Às vezes, numa esquina, paravam por um momento, ligeiramente resfolegantes, para descansar um pouco do esforço feito dentro do mar picado da multidão. Mas nada que denunciasse nelas uma grande estafa ou um sentimento de derrota. As barriguinhas pandas, os corpos equilibrados à nova distribuição de peso, a pele esticada, a nuca fresca, súbito punham elas de novo a funcionar o motorzinho de popa e saíam empinadinhas em frente, um enxame de mulherzinhas grávidas a penetrar a vida urbana de uma nova vida, uma nova graça e uma certa gravidade. 

Como explicar a emoção que senti? Talvez essa que provocaria a vista de um quadrinho de regata feito por Guignard, com os ioles e esquifes distendidos na puxada e por ali tudo, em meio ao esvoaçar multicor de bandeirinhas, um mundo de serenas baleeiras a se balançarem suaves ao sabor das ondas. Sei que fiquei lírico, possuído do sentimento da fecundidade da vida, sentindo a brisa farfalhar em meus cabelos e arder em minha pele o sol claro do dia.

Soube que o tempo tinha cumprido a sua missão, e todas aquelas mulherzinhas fecundadas, a berçar no movimento de seus passos a gestação dos filhos, constituíam em seu gracioso desenho convexo uma maravilhosa afirmação de vida e um caminho positivo para o amor. Soube que o amor é uma missão a cumprir por nós, homens, e que é a nós de constantemente querer, zelar e defender essas que, tão frágeis, fazem a nossa força e miséria e cuja existência é um contínuo sofrer, se alegrar e se extinguir por nós. Soube que homem e mulher são, em sua constante atração e repúdio, a imagem mesma da vida em movimento, e que sua longa jornada de mãos juntas, a se afastar cada vez mais do Paraíso Perdido, tende a uma alfombra cada vez menos distante, onde se aninharão melhor e onde fecundarão seres cada vez mais próximos da terra.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para viver um grande amor.

domingo, 9 de setembro de 2018

Jessier Quirino (Parafuso de Cabo de Serrote)


Tem uma placa de Fanta encardida
A bodega da rua enladeirada
Meia dúzia de portas arqueadas
E uma grande ingazeira na esquina
A ladeira pra frente se declina
E a calçada vai reta nivelada
Forma palmos de altura de calçada
Que nos dias de feira o bodegueiro
Faz comércio rasteiro e barateiro
Num assoalho de lona amarelada.

Se espalha uma colcha de mangalho:
É cabestro, é cangalha e é peixeira
Urupema, pilão, desnatadeira
Candeeiro, cabaço e armador
Enxadeco, fueiro, e amolador
Alpercata, chicote e landuá
Arataca, bisaco e alguidar
Pé de cabra, chocalho e dobradiça
Se olhar duma vez dá uma doidiça
Que é capaz do matuto se endoidar.

É bodega pequena cor de gis
Sortimento surtindo grande efeito
Meia dúzia de frascos de confeito
Carrossel de açúcar dos guris
Querosene se encontra nos barris
Onde a gata amamenta a gataiada
Sacaria de boca arregaçada
Gargarejo de milhos e farelos
Dois ou três tamboretes em flagelo
Pro conforto de toda freguesada.

No balcão de madeira descascada
Duas torres de vidro são vitrines
A de cá mais parece um magazine
Com perfume e cartelas de Gillete
Brilhantina safada, canivete
Sabonete, batom... tudo entrempado
Filizolla balança bem ao lado
Seus dois pratos com pesos reluzentes
Dá justeza de peso a toda gente
Convencendo o freguês desconfiado.

A Segunda vitrine é de pão doce
É tareco, siquilho e cocorote
Broa, solda, bolacha de pacote
Bolo fofo e jaú esfarofado
Um porrete serrado e lapidado
Faz o peso prum março de papel
Se embrulha de tudo a granel
E por dentro se encontra uma gaveta
Donde desembainha-se a caderneta
Do freguês pagador e mais fiel.

Prateleiras são tábuas enjanbradas
Com um caibro servindo de escora
Tem também não sei qual Nossa Senhora
Com um jarrinho de louça bem do lado
Um trapézio de flandres areados
Um jirau com manteiga de latão
Encostado ao lado do balcão
Um caneiro embicando uma lapada
Passa as costas da mão pelas beiçadas
Se apruma e sai dando trupicão.

Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Tem rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
Bodegueiro despacha a um artesão
Parafuso de cabo de serrote.

Jessier Quirino (1954)

Jessier Quirino é paraibano de Campina Grande PB e filho adotivo de Itabaiana/PB, onde reside desde 1983. Filho de Antonio Quirino de Melo e Maria Pompéia de Araújo Melo e irmão mais novo de Lamarck Quirino, Leonam Quirino, Quirinus Quirino e irmão mais velho de Vitória Regina Quirino.

Arquiteto por profissão e poeta por vocação, estudou em Campina Grande (entre curso primário e ginasial), o curso científico em Recife e faculdade de Arquitetura na UFPB – João Pessoa.

Na área artística, é autodidata como instrumentista (violão) e fez cursos de desenho artístico e desenho arquitetônico em Campina Grande. Na área de literatura, trabalha a prosa, a métrica e a rima. Poeta, escritor, compositor e artista de palco, autor de oito livros e cinco CDs, é considerado mais um abridor de veredas poéticas e musicais no bem sortido território das artes nordestinas e cuida de defender sua poesia a golpes de declamações, textos e canções. 

Em sua incursão editorial publicou pelas Edições Bagaço de Recife os livros: Paisagem de Interior, Agruras da Lata D`água, Prosa Morena (livro e CD), Bandeira Nordestina (livro e CD), Berro Novo (livro e CD), Política de Pé de Muro (folclore político popular), Chapéu Mau e Lobinho Vermelho (infantil), Miudinha (infantil) e os CDs: Paisagem de Interior I e II.

Encarnando o personagem Euclydes Villar, fez parte do elenco da minissérie: A Pedra do Reino do dramaturgo Ariano Suassuna, veiculada pela Rede Globo de Televisão em junho de 2007. 

Dono de um estilo próprio – domador de palavras – de uma verve apurada e de um extremo preciosismo no manejo da métrica e da rima, o poeta sabe como poucos prender a atenção do distinto público e tem chamado a atenção dos amantes da boa arte nordestina. Num espetáculo poético e musical composto de causos, poesias e canções autorais, Quirino trafega do interior ao litoral com humor, lirismo e nordestinidade abordando temas que tratam do desengonço das palavras aos pios dos sanhaçus no terreiro e tem feito um dos mais belos recitais do gênero. Apesar de muitos considera-lo um humorista, opta pela denominação de poeta popular e escritor, onde procura mostrar o bom humor e a esperteza do matuto sertanejo, sem, no entanto, fugir ao lirismo poético.

Fonte:

Olivaldo Júnior (Meus Desertos)

Não, meus desertos não são feitos de areia, pedras e sal. Meus desertos são períodos hiatos em minha existência, que, às vezes, parece mais de uma, ou mais de mil, ao mesmo tempo. Tempo. Eis a areia que escorre de um lado para o outro na ampulheta, tanto a de dentro, quanto a de fora. Porque, não sei se você sabe, mas um deserto interior só pode nascer quando existe um descompasso entre a ampulheta interior e a outra, a exterior. Deus é muito engenhoso mesmo! Fez o homem à Sua imagem e semelhança, ou seja, não igual a Ele, mas à imagem e semelhança Dele, um vislumbre do que um dia poderemos, ou que poderíamos ser.

Meus desertos, na verdade, são minhas lágrimas não choradas, minhas músicas não cantadas, meus enterros que não fiz direito. Por isso, ao meu redor, fantasmas emocionais, mentais e espirituais me fazem ver os fantasmas que deixei para trás, sem direção. Pois meus desertos são minha forma de estancar meu choro, meu som, minha falta do que me faz falta e eu não quero ver. Cego, tateio no escuro dos meus desertos a saída para o meu próprio oásis.

Cansado, com a trouxa da vida nas costas, me encosto-me à beira do mundo e me vejo passar. Sim, eu me desdobro e me vejo passar entre os vivos, certo de que eu também, feito eles, também vivo e, nessa hora, me apalpo um pouquinho, para me certificar de que estou mesmo entre todos. Todos vivem seus desertos, isso é certo. Os meus, embora não venham do Saara, nem das dunas tão lindas dos Lençóis Maranhenses, meus desertos são tão vastos quanto a Inteligência Divina. Pena, que eu seja humano!... Pena, que eu seja um!... Não, não quero mais ter pena de mim... Quero enxergar o outro lado da fúria e chegar, chegar a mim.

Fonte: O Autor

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Álvaro Posselt (Lançamento do livro "Bichinhos de Estima São")

Neste 01/09, sábado, das 10 às 18 horas, lanço meu livro Bichinhos de estima são.

O evento será aqui em casa mesmo e marca a abertura oficial do espaço como casa cultural.

Haverá também: 

Banca de bolo da Bru Gonçalves

Banca de risoto, crepiocas e caldinhos da Soraia Guillarducci

Arte em cerâmica com a Kezia Talisin
Duendes, fadas e outros seres mágicos com a Silvina Gonzalez
Exposição de quadros no ateliê e muito mais!

Endereço: Rua Ebenezer, 96 - Pilarzinho - Curitiba/PR.

O livro já está disponível para pedidos via correio: R$ 35,00 já com frete.

Um abraço.
Alvaro Posselt
41-99183-1371

Fonte da imagem: https://www.pikdo.me/tag/alvaroposselt

sábado, 25 de agosto de 2018

Trova 320 - José Lucas de Barros


Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) I


GOTA D’ÁGUA

Olha a paisagem que enlevado estudo!...
Olha este céu no centro! olha esta mata
E este horizonte ao lado! olha este rudo
Aspecto da montanha e da cascata!...

E o teu perfil aqui sereno e mudo!
Todo este quadro que a alma me arrebata,
Todo o infinito que nos cerca, tudo!
D'água esta gota ao mínimo retrata!...

Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo!
Vê o firmamento sobre nós baixando;
Vê de que luz suavíssima me inundo!...

Vai teus braços, aos meus, entrelaçando,
Beija-me assim! vê deste azul no fundo,
Os nossos olhos mudos nos olhando!...

MATINA

Noite! Cesse o teu ar imoto e quedo!
Quero manhã! todos os sons que vazas!
Fujam do ninho ao lépido segredo
Todas as bulhas de reflantes asas.

Sol! tu que a terra fecundando a abrasas.
Desce da aurora em raio doce e a medo,
Todas as luzes travessando o enredo
Diáfano e leve das nevoentas gazas.

Telas festivas deslumbrai-me a vista!
Cantos alegres desferi-me em roda
Em toda a luz, em todo o som que exista.

E a natureza toda em harmonia,
Iluminada a natureza toda,
Surja gloriosa no raiar do dia.

VIDA NOVA

De uma vida sem fé de nebuloso inverno,
Furtei-me sacudindo o gelo da descrença.
Aquece-me outra vez este calor interno,
Esta imensa alegria, esta ventura imensa.

Sinto voltar de novo a minha antiga crença,
Creio outra vez no céu, creio outra vez no inferno,
Na vida que triunfe ou na morte que a vença
Creio no eterno bem, creio no mal eterno!

E quando enfim do corpo a alma for desgarrada
E procure entrever a região constelada
Que aos bons é concedida, esplêndida a irradiar,

Ao coro festival de um hino triunfante
Abra-se a recebê-la, olímpico e radiante
Todo o infinito céu do teu sereno olhar!...

O PEIXE
(José Maria de Heredia)

Do mar, ao fundo, o sol, em misteriosa aurora,
Dos corais da Abissínia a floresta alumia,
Banhando, à profundez da tépida bacia
A fauna que floresce e a palpitante flora.

E tudo o que do oceano o iodo ou o sal colora
A anêmona marinha, as algas de haste esguia,
Põe suntuoso desenho em púrpura sombria
Na pedra verminosa onde o pólipo mora.

Amortecendo o brilho à refulgente escama,
Um grande peixe vaga entre a enlaçada rama;
Da água as ondas, em torno, indolente desfralda.

Mas súbito ele agita a barbatana ardente,
E à tona do cristal azulado e dormente,
Corre um rastilho de ouro e nácar e esmeralda!

AS SEREIAS

Fui pelo mar em fora. A recurva trirreme
Ampla, em prata estendendo um rastilho de espuma,
Leva, léguas além, a áurea canção que geme
E canta, d'harpa, e ri, nas cordas, uma a uma.

Vibra sempre a canção; adelgaça-se a bruma;
Surge a lua, e ao luar, a superfície treme
Do mar que a essa canção em colo a vaga apruma,
Extreme de paixões, de cóleras extreme.

Tão sugestivo é o canto, e entre as vagas do oceano
Os golfins e dragões sorvem-lhe o eco em tal dose,
Que pouco a pouco vão tomando o aspecto humano.

Súbito, cessa o canto e as sereias em rima,
Mudas pasmam de ver esta metamorfose:
- Monstros do ventre abaixo e deusas ventre acima.

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Vinicius de Moraes (O amor por entre o verde)


Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns 13 anos, o corpo elástico metido nuns blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de-cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, 16, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos, e ficam montados, um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem dariam para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.

Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a perscrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando não há passantes, num longo e meticuloso beijo.

Que será, pergunto-me eu em vão, dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com os cabelos presos? E se prosseguirem se amando, pergunto-me novamente em vão, será que um dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?

É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado... Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que devia ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e não se reconheceram. E é então que esqueço de tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos mirando muito além das estrelas.

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