segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Gracéli Maria (A Chinesinha)


Comprei o jornal, como de costume, na banca do Sr. Juvenal. Mas, aquele dia estava apressado demais para dar uma paradinha no café. Todas as manhãs minha rotina era a mesma; comprava o jornal, trocava algumas palavras com Sr. Juvenal, acendia meu primeiro cigarro do dia, caminhava até a esquina, onde costumava tomar um cafezinho bem forte, enquanto lia as notícias e, em seguida, voltava calmamente para casa.

É bem certo que duas ou três vezes por semana, Dona Samira varria a calçada em frente ao seu velho sobrado e me dirigia algumas perguntas.

- Como vai sua menina, mandou notícias já, foi?

- Não, Dona Samira, ela não telefonou esta semana, nem a passada. Está em época de provas - respondi apressado.

- Ah! Sim! Uma sobrinha de meu marido estava a estudar na Europa, mas a pobrezinha...

- Já conheço a estória - interrompi, antes que ela continuasse. - Desculpe-me, mas tenho de ir. Preciso dar uns telefonemas - acrescentei.

Entrei o mais rápido que pude no prédio. É bem verdade que ela continuou a balbuciar algumas coisas, mas eu já me encontrava na porta do elevador.

Mal toquei no trinco e o telefone tocava. Atendi.

– Alô!

- Sr. Fernando, é da lavanderia La Maris.

- Pois não! - respondi

- A respeito do seu terno azul-marinho, ele já está pronto faz dias.

- Mas, estou sem tempo - eu disse

- O senhor passe hoje aqui faça o favor, ou daremos seu terno - disse ela, batendo o telefone na minha cara.

Acabei saindo apressado.

Chegando á lavanderia deparei com uma jovem atrás do balcão, que eu nunca vira antes. Atendia pelo nome de Dolores. Usava um penteado esquisito, mascava um chiclete estrondoso e parecia ter um imenso prazer em deixar as pessoas esperando.

A lavanderia estava cheia, pelo menos umas dez pessoas.

Ela, a tal Dolores, me chamou.

– Até que enfim o senhor apareceu - disse ela.

- Desculpe, mas eu não tive tempo de vir antes. Trabalho demais! - disse eu.

- Esta insinuando que eu não trabalho demais? - perguntou ela.

- Não, senhorita. Me referia à minha falta de tempo. - respondi - Bem, pode me trazer meu terno, por obséquio? - acrescentei.

Ela não me respondeu e arregalou os olhos para a porta. Então, virei - me para olhar.

Uma jovem de baixa estatura, olhos puxados e vestindo um traje oriental, estava parada à porta da lavanderia. Dolores correu para dentro, voltou com um embrulho e o entregou à jovem.

A figura lembrava uma frágil boneca chinesa, tinha pele de porcelana, usava um chapéu chinês. Ela pegou o embrulho, agradeceu numa espécie de reverência oriental. E saiu em movimentos rápidos.

- Sr. Fernando, vou buscar o terno - disse Dolores.

Enquanto esperava, recordava-me da figura que saíra há pouco. Olhei para fora, o tempo estava feio, parecia que ia chover. Dolores voltou e me deu o terno.

- Obrigado! - respondi.

Ao sair, pisei num envelope caído à porta, olhei para trás, Dolores havia desaparecido por detrás do balcão.

Peguei-o e resolvi correr para escapar da chuva.

Entrei no carro e abri o envelope. Era uma passagem com um nome quase ilegível. Destino: Xangai. Só então liguei as coisas, devia ser da jovem chinesinha, ela estava apressada. A data da passagem era vinte e três e estávamos no dia vinte e dois.

Olhei à volta e nem sinal dela. Desci do carro e tentei caminhar em direção ao metrô, talvez ainda pudesse encontrá-la.

Da escada rolante, olhei a multidão na plataforma e avistei-a. Pequena, ela se desviou entre as pessoas. E quando quase consegui alcançar seu braço, ela sumiu de novo, com a multidão que se apertava metrô adentro.

Pensei em como iria achá-la.

Resolvi, no maior sacrifício, voltar à lavanderia. Indaguei sobre a chinesinha com a antipática figura de Dolores. Mas a má vontade dela, quase me desanimou.

- Dolores, trata-se de uma passagem. Com data marcada e para amanhã - disse eu.

- Está bem! Mas antes tenho de dar um telefonema.

- Santo Deus! - pensei comigo.

Ela fez a tal ligação, parecia que falava com alguém muito íntimo, pois se escancarava de rir ao telefone e se não ria, estourava uma bola de chiclete enorme.

Esperei uns quatro ou cinco minutos até que ela desligasse o telefone.

Voltou. Me deu um nome. Akitami.

- Como? - repeti - Akitami?

- É surdo?

- Tem sobrenome?

- Na ficha não diz.

– É ela?

- Não sei.

- Tem um telefone?

- Só endereço: Rua Chamoios, 557.

Anotei o endereço e saí.

Voltei pra casa e olhei num mapa da cidade. O tal endereço ficava num bairro muito afastado.

Chamei Amanda, uma amiga, para me acompanhar.

Fomos com meu carro. Durante o trajeto, Amanda dormiu.

Depois de entrar em algumas ruas sem nome, desertas, e sem vermos uma pessoa sequer para dar informações, achamos o dito endereço.

Em frente à casa com o referido número havia uma placa gigante de neon onde estava escrito "Boite Lumière".

Descemos do carro, toquei a campainha. Um jovem, também oriental, abriu a porta.

- Boa tarde, procuro por Akitami - disse eu.

O jovem fechou a porta na minha cara. Mas resolvi bater novamente. Ele abriu-a outra vez dizendo: - Não conheço ninguém Akitami.

- É uma jovem de baixa estatura, traços chineses.

- Espere aqui.

Veio uma garçonete nos atender. 

- Vocês procuram uma jovem oriental?

- Sim, uma chinesinha.

– Ela saiu.

- Podemos esperar?

- Entrem! - disse a moça.

Lá dentro havia uma penumbra perturbadora, mal podíamos enxergar as mesas.

A garçonete nos ofereceu drinques, e uma mesinha num canto.

Vieram as bebidas. Os copos eram compridos, saindo deles uma estranha fumaça colorida. Ficamos ali, bebendo e conversando.

De repente, tudo começou a girar. As luzes da boate acenderam-se, um globo no centro da sala começou a rodar. Uma estranha fumaça, tomou conta do recinto. E começaram a surgir algumas figuras bizarras.

Amanda ria e se divertia, achando tudo normal.

Alguém me convidava para dançar, mas em meio à penumbra, mal vi seu rosto.

Quando olho para os lados, Amanda havia sumido!

Chamei o garçom, e indaguei sobre ela, mas ninguém a vira.

Uma dançarina aproximou-se de mim, tinha um rosto pálido e imensos olhos castanhos. Em sua boca, um batom marrom escuro.

Perguntei se ela conhecia a chinesinha.

- Somos amigas - respondeu. - O que deseja com ela? - perguntou em seguida.

- Tenho algo para entregar-lhe.

A dançarina se aproximou de meus ouvidos e disse:

– Não devia ter vindo aqui. Em seguida desapareceu.

Fiquei angustiado, solitário ali na mesa.

Comecei a gritar pelo nome de Amanda. Então, a dançarina reapareceu.

– Acalme-se - disse ela. - Há algo que o senhor precisa saber.

- Preciso entregar a passagem, a data é para amanhã, entende? Amanhã! - gritei.

- Deixe que eu entrego a passagem.

- Eu quero entregar pessoalmente!

- O senhor não sabe de nada. Não se envolva.

~ Qual o problema?

– Amanda? Akitami? Chinesinha? O senhor está louco! - disse ela, agarrando-me o braço e acrescentou: - Encontre-me agora na rua do canal. Você deve sair já daqui!

Levantei-me meio cambaleante e saí da boate. Lá fora, o luminoso estava apagado. Ninguém na rua, meu carro não estava mais ali. 

Lá na esquina, de um táxi, saltava alguém. Aproximei-me, era a chinesinha.

Gritei seu nome. Mas ela dobrou a esquina e foi em outra direção.

Eu gritava e comecei a correr... correr...

Senti o suor descendo em meu rosto. Até que tudo se apaga. Ouço um som estridente, que parece um telefone, mas não é...

Acordo! Que alívio! Não existia boate, nem chinesinha, nem lavanderia.

Levantei-me. No rádio anunciavam um dia muito quente.
________________________________

Gracéli Maria nasceu em Curitiba, bacharelou-se em letras na UFPR. Contista. Trabalhou como atriz de teatro. Apaixonada por arte, dedica-se à dança.

Fonte:
Isabel Florinda Furini (org.). 50 Contos por 14 Autores. 
Curitiba: JM, 2008.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 10 - Fome e Miséria


Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. 
Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista 
[Dom Helder Câmara).

A fome aniquila o ser humano, alucina consciências, gera desespero. A fome rouba a honra e a altivez do homem, que sem forças para a luta entrega-se à languidez e assim é acusado de preguiça. Josué de Castro em seu livro Geografia da fome mostra bem este indesejável fenômeno.

A geografia da fome
mostra a distância traçada
entre quem tudo consome
e quem não consome nada.
Gonzaga da Silva - RN

Eu sei de uma negra cruz,
de tão negra não tem nome:
essa que o pobre conduz
pelo calvário da fome.
Sebastião Soares - RN

A tristeza me consome
diante desta crueldade!
A violência da fome
dizimando a humanidade.
Reinaldo Aguiar - RN

A miséria por capricho
sai bem cedo vasculhando...
Mexe mil latas de lixo
volta de mãos abanando.
Minervino Wanderley - RN

É o abuso da riqueza
e o desprezo à educação
que põe sobre a nossa mesa
a fome, em lugar do pão.
Sônia Sobreira da Silva - RJ

Poderosa, ela se ajeita
e entre o bem e o mal permeia
a infame fortuna feita
à custa da fome alheia...
Divenei Boseli - SP

Quando a miséria se ajeita,
na ausência d'água e de pão,
faminta a fome se deita
na esteira que forra o chão!
Prof. Garcia - RN

A miséria devora os seres humanos. A miséria crônica é uma patologia social que poderia e deveria ser evitada. Mas como evitar a fome se os Estados preferem gastar com armamentos? Não podemos deixar de lembrar o título completo do livro de Josué de Castro: Geografia da fome: o dilema brasileiro - pão ou aço. Parece que o mundo prefere mesmo o aço.

A fome que o mundo assola
tem raízes na injustiça:
o pobre vive de esmola
sob o jugo da cobiça!
Angélica Villela Santos - SP

A arma mais poderosa
que o homem já inventou
foi esta fome horrorosa
que a tantos já dizimou.
Gonzaga da Silva - RN

O triste da caminhada,
na longa estrada da vida,
é ver a fome estampada
em tanta gente excluída!
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Não pode haver raciocínio
quando a miséria, sem nome,
invade qualquer domínio
e o domina pela FOME!...
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

Se o teu riso é de grandeza,
vaidade que te consome,
- olha bem para a tristeza
do pranto de quem tem fome.
Fernando Câncio - CE

Sentir fome e não comer
porque não tem condição
pode mesmo comover
quem tem duro coração.
Aracy da Silveira Cavalcante - CE

Mas como se comover se em geral a fome em sua forma mais terrível está longe dos nossos olhos? Nossos amigos não passam fome, nossos vizinhos não passam fome, no meio social que frequentamos não vemos ninguém passando fome... Os meios de comunicação não mostram os bolsões de fome, preferem mostrar o "progresso" das vitrines... É como diz o provérbio: O que os olhos não veem o coração não sente! Só mesmo uma convulsão social drástica para alertar o mundo.

As revoltas não têm fim
e explodem cada vez mais,
que a fome acende o estopim
das convulsões sociais!
João Freire Filho - RJ

Treme o mundo e se consome
ao som de um terrível brado:
- o grito que sai com fome
da boca do ínjustiçado!
A. A. de Assis - PR

Metade da humanidade
infelizmente não come;
e não dorme a outra metade,
temendo os que passam fome,
Geraldo Amâncio - CE

Há mil gritos e protestos
na fila ingente da fome,
onde a migalha dos restos
não chega pra quem não come!
Delcy Canalles - RS

Hoje a fome encontra abrigo
nos campos de plantação...
Violência é plantar o trigo
e não ter direito ao pão,
Arlindo Tadeu Hagen - MG

Quando os muros da opressão
enfim forem derrubados,
o mundo terá mais pão
e menos injustiçados.
Gonzaga da Silva - RN

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. 
Natal/RN, abril de 2019.

Malba Tahan (Mil Histórias sem Fim) Narrativa 14 e 15


Da janela de minha casa, em Bagdá, observava uma tarde o vaivém dos aventureiros e beduínos, quando a minha atenção foi despertada por um fato que me pareceu estranho e muito singular.

Um homem, ricamente trajado, aproximou-se de um velho mercador que oferecia à venda, sob largo toldo, uma bela coleção de jarros de diversas formas. Depois de escolher, com um empenho que me pareceu exagerado, a peça que mais lhe interessava, o desconhecido pagou ao vendedor, sem hesitar, o preço exigido. Isso feito, encaminhou-se para o meio da rua e levantando, com ambas as mãos, o jarro atirou-o com toda força contra uma pedra, espatifando-o.

- É um louco! - murmurei. E, como não sei resistir à atração que sobre mim exerce o ímã da curiosidade, fui sem demora juntar-me ao grupo dos que faziam roda ao desatinado comprador.

O homem, entretanto, sem se preocupar com os árabes e cameleiros que bem de perto o observavam, abaixou-se e começou a ajuntar vagarosamente os cacos, como se lhe movesse a intenção de reconstituir o que ele mesmo destruíra inexplicavelmente.

Sheiks e caravaneiros que cruzavam a rua, vendo o caminho impedido pelo ajuntamento, gritavam do alto dos maharis (camelo de sela):

- Passagem! Eia! Por Alá! Passagem!

Ao cabo de algum tempo tornou-se enorme a confusão; os mais exaltados, proferindo insultos e blasfêmias de toda espécie, tentavam maldosamente atropelar e pisar com seus camelos os curiosos parados em grupos no meio da rua.

Temendo que aquele incidente degenerasse num conflito mais sério, deliberei intervir. Aproximei-me do desconhecido, tomei-o pelo braço e disse-lhe:

- Quero levar-vos, meu amigo, até a minha casa! Tenho em meu poder diversos jarros persas e chineses com desenhos admiráveis.

Sem se mostrar surpreendido ou contrariado pelo intempestivo convite, o jovem acompanhou-me sereno, sob o olhar atônito da multidão!

Ficamos sós. Ofereci-lhe, com demonstrações de alta cerimônia, tâmaras e água, mas ele nada aceitou. Quis apenas provar o pão e o sal da hospitalidade.

Teria, afinal, o meu estranho hóspede perdido o uso da razão?

- Onde estão os teus jarros chineses? - perguntou-me, percorrendo insistente, com o olhar, todos os cantos da sala.

- Peço perdão, ó sheik! - respondi -, faltei há pouco à verdade quando vos disse possuir jarros da China e da Pérsia. Queria, apenas, inventar um pretexto para arrancar-vos do meio daqueles exaltados muçulmanos! Bedal matghechoc ôlloh fê-vechoc! (1) Bem vejo que sois estrangeiro e desconheceis, por certo, o gênio arrebatado e violento do povo desta terra. Rara é a semana em que não assistimos, pelas praças e ruas, distúrbios e correrias. Às vezes, por causa de ninharias e frivolidades, homens são assassinados e ricas lojas saqueadas em poucos instantes. Os guardas não dominam os ímpetos sanguinários da população. Se houvesse, há pouco, um conflito com os caravaneiros turcos, a vossa vida estaria em grave perigo!

Riu o desconhecido ao ouvir a minha explicação.

- Uallah! (Por Deus!) - exclamou. - Julgavas, então, que eu fosse um fraco, um demente? É interessante! Vou contar-te a minha história e o motivo que me levou a quebrar um jarro no meio da rua.

Antes, porém, de dar início à prometida narrativa, o jovem maníaco sentou-se sobre uma almofada (que cuidadosamente ajeitara), colocou diante de si, sobre o tapete, dois fragmentos do jarro que ele, pouco antes, estilhaçara em plena rua e pôs-se a observá-los com a atenção de um obstinado.

Pareceu-me que seria mais delicado ou talvez mais cauteloso não perturbar o meu hóspede. Acomodei-me, sem-cerimônia, diante dele, acendi o meu delicioso narguilé e entreguei-me à tarefa de reparar e estudar as estranhas atitudes do lunático quebrador de vasos.

Teria, no máximo, trinta e um ou trinta e dois anos; seus olhos eram azulados; sua barba clara tinha reflexos cor de ouro vivo. Ostentava, com natural elegância, um aparatoso turbante de seda amarela no qual cintilava uma pequena pedra verde-escura.

De repente, a fisionomia do jovem tornou-se radiante, como se surpreendente inspiração o iluminasse. Ergueu o rosto e disse-me risonho:

- Afinal, o sultão perdoou o segundo condenado e este, sem querer, salvou o companheiro!

Aquela frase, para mim, não tinha sentido. Parecia disparate.

- Que sultão é esse, ó jovem? - interpelei-o com exagerada complacência, na certeza de que falava a um infeliz demente.

- Lamentável distração a minha! - exclamou com vivacidade. - Acreditei que fosses capaz de adivinhar os meus pensamentos e seguir o rumo da história que estive, aqui sentado, a arquitetar! Conforme prometi, vou contar-te o enredo de minha vida, e esclarecer os episódios que me forçaram a esfacelar o jarro diante da tenda de um mercador. E tudo compreenderás.

E na linguagem límpida e correta de um homem educado e culto, contou-me o seguinte:

Rafi An-Hari é o meu nome. Meu pai, que era um hábil negociante, fazia de quando em vez uma viagem a Sirendib (antigo nome do Ceilão), aonde ia em busca de especiarias que ele revendia com apreciáveis lucros aos seus agentes de Basra.

Quis, porém, o destino que meu pai viesse a morrer em consequência de um naufrágio, desaparecendo com todas as riquezas e dinheiro que transportava. Ficou a nossa família em completo desamparo. Forçado pelas necessidades da vida a procurar trabalho, empreguei-me como escriba em casa de um sheik muito rico chamado Ibraim Hata. 

Uma noite, conversando casualmente com o meu patrão, disse-lhe que sabia contar várias histórias.

- Se é verdade o que acabas de revelar - ajuntou o sheik -, vou dar-te, em minha casa, o emprego de contador de histórias. Passarás a ganhar o triplo de teu atual ordenado!

Aquela decisão do meu generoso amo causou-me não pequena alegria. Passei a exercer no palácio de Ibraim Hata um cargo invejável: contador de histórias. Todas as noites, invariavelmente, o sheik Ibraim reunia em sua casa vários parentes e amigos; e eu, na presença dos ilustres convidados, contava uma lenda ou uma fábula qualquer. 

Em geral, finda a narrativa, os ouvintes mais entusiasmados felicitavam-me com palavras de estímulo e davam-me ainda peças de ouro. Vivi assim, regaladamente, durante meses semeando na imaginação dos que me ouviam todos os sonhos e fantasias dos contos árabes.

Hoje, finalmente, pela manhã, fui avisado de que haviam chegado do Egito vários amigos do sheik, mercadores ricos e prestigiosos, que seriam incluídos entre os meus numerosos ouvintes para o conto da noite.

Em outra ocasião tal acontecimento seria para mim motivo de júbilo; agora, porém, veio causar-me um grande pavor, deixando-me o coração esmagado por uma angústia sem limites. E a razão é simples: tendo desfiado, sem cessar, até a minha última pérola, o colar das minhas histórias e fábulas, nada mais restava do meu tesouro! 

Como inventar, de momento, um conto interessante e maravilhoso capaz de agradar aos meus nobres e exigentes ouvintes?

Preocupado com a grave responsabilidade que pesava sobre meus ombros, deixei pela manhã o palácio de meu amo e deliberei caminhar ao acaso, pelas ruas da cidade, pois tinha a esperança de encontrar alguém que me pudesse tirar do embaraço em que me achava. Procurei nos cafés os contadores profissionais de maior fama e consultei-os sobre as melhores narrativas que conheciam; apesar da recompensa que eu prometia, não consegui ouvir de nenhum deles história que fosse nova para mim; citavam-me algumas - é verdade - mas todas elas já tinham sido por mim mesmo narradas ao sheik.

O desânimo - acompanhado de uma inquietação perturbadora - já começava a esmagar as fibras restantes de minha energia, quando me veio, não sei por quê, à lembrança, um antigo provérbio hindu: “Um jarro quebrado alguma coisa recorda.” “Quem sabe”, pensei, agarrando-me ainda uma vez à esperança, “quem sabe se um jarro partido não me fará lembrar uma história há muito esquecida no meu passado pela caravana indolente da memória?”

Conta-se (Alá, porém, é mais sábio!) que o famoso poeta Moslini ben el Valid foi, certa vez, vítima de grave atentado. Fizeram cair sobre ele, atirado do alto de um terraço, grande e pesadíssimo jarro. Veio o jarro espatifar-se aos pés do poeta e um dos estilhaços, saltando impelida pela violência do choque, foi ferir de leve o rosto de Moslini. O jarro, fabricado por um oleiro de Medina, trazia em letras douradas, sobre fundo azul, a seguinte inscrição:

“O que se adquiriu pela força só se pode conservar pela doçura.”

O fragmento que feriu Moslini era, precisamente, aquele que continha a palavra “doçura”.

Aconselharam ao poeta que levasse o caso ao conhecimento do juiz. A culpada (fora uma jovem ciumenta a autora do atentado) devia ser punida. Recusou-se, porém, Moslini, a apresentar queixa ou acusação, dizendo: “Não posso pedir castigo ou punição para uma pessoa que me feriu com tanta ‘doçura’.”

Confirmava-se, mais uma vez, o provérbio: “Um vaso quebrado alguma coisa recorda.”

Movido por essa ideia, adquiri um jarro, depois de meticulosa escolha e pondo em execução o plano delineado, limitei-me a reduzi-lo a estilhaços no meio da rua.

- E o processo deu resultado? - perguntei, interessado. - Veio à vossa memória, depois do sacrifício, alguma história interessante, digna de ser contada a um auditório seleto?

A minha ingenuidade fez rir novamente o inteligente Rafi An-Hari.

- Ualá! - exclamou, batendo-me no ombro. - O tal jarro, depois de partido, fez-me recordar um conto, muito original, que poderá divertir os viajantes ilustres e agradar ao bom e generoso sheik Ibraim. E sabes, meu amigo, que história é essa?

- Interessa-me conhecê-la - respondi. - Deve ser muito original.
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Nota
1 É preferível agora não enganar, e dizer-te logo a verdade!

Continua…

Fonte:
Malba Tahan. Mil histórias sem fim.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe (Lançamento do livro Namida Taiko*)


Um livro esperado pela comunidade japonesa no Brasil é "Namida Taiko", dos romancistas Franccis Yoshi Kawa e Helena Douthe.

O livro será lançado em
29 de fevereiro,
a partir das 18 horas,
na NIKKEI de Curitiba,
rua  Padre Júlio Saavedra, 598 – Bairro Uberaba,
Curitiba - PR .

Em entrevista concedida para a Revista Cazemek os autores falam sobre a criação da história do livro:

Durante viagem ao norte do Paraná em junho deste ano, visitamos a Colônia Esperança que fica no município de Arapongas. De início foi difícil imaginar que pudesse surgir uma aventura, um romance, algo mirabolante que pudesse dar sustentação à narrativa, sem ofender ou incomodar os ex moradores e moradores da colônia. Apesar de todos os personagens serem fictícios, sempre há alguém que tenta associar a alguém ou vincular a algo que aconteceu. Helena como sempre, deu uma chacoalhada com suas ideias. Criamos quatro personagens que não fazem parte da colônia, chegam disfarçados de agricultores e se transformam em protagonistas de um enredo cheio de aventura, drama, amor e fantasia.”

“Tudo é muito contido para se manter dentro do comportamento de moradores de uma colônia japonesa. O capítulo mais difícil foi imaginar o que seria a vida nos anos 40.”

Franccis e Helena apresentam uma história recheada de bom humor, drama, amor e dor, onde o taiko deixa de ser apenas um simples instrumento de percussão. Uma trama complexa baseada em honra e disciplina, conta a saga de uma jovem lutando até as últimas consequências para conquistar seu sonho.
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 Sobre os Autores

Franccis Yoshi Kawa é brasileiro, natural de Arapongas, Paraná. Formado em Ciências Contábeis pela UFPR.  Participou da Oficina "Como Escrever Livros", da escritora Isabel Furini. Publica no site Recanto das Letras. É autor do romance “Ajoelhar jamais” - em parceria com Helena Douthe. Cadeira n. 38 da AVIPAF.
 
Helena Douthe é brasileira, natural de Curitibanos, Santa Catarina. Graduada em Administração pela PUC-PR. Sempre teve inclinação para a literatura e a música. Compositora, escritora de poesias e romancista. Helena escreve seus livros em parceria com Franccis Yoshi Kawa. Helena também escreve para o público infantil. Cadeira n. 39 da AVIPAF.
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Glossário do Blog:
* Taiko é a denominação usualmente dada ao instrumento de percussão japonesa que surgiu há mais de 2000 anos e que já serviu a propósitos militares, religiosos, teatrais, musicais e práticos, devido ao seu som vibrante, vigoroso e místico. 

Contudo, Taiko não é, unicamente, a simples tradução para tambor japonês. A palavra carrega um significado mais amplo e profundo, de forma que serve para definir tanto o gênero dos instrumentos japoneses de percussão quanto a prática dessa arte, que não se resume a simplesmente bater tambores, mas sim, a incorporar e expressar sentimentos, além de por em prática valores morais e sociais em busca de um constante aperfeiçoamento do ser.

A Arte do Taiko é a arte do aprimoramento diário, da esmerilhação da alma, e para exercê-la é necessária força física, mental e espiritual, bem como disciplina, rigor, força de vontade, energia, união e harmonia. É uma arte normalmente coletiva que exige a comunhão espiritual daqueles que a buscam. 

Existem diversos tipos de taiko, variando em tamanho, formato, material, método de fabricação, método de afinação, origem e forma de uso.

* Namida: literalmente significa lágrimas.

Fontes:
- Texto do lançamento enviado por Isabel Furini
- Sobre a criação do livro: Revista Cazemek 
- Sobre os autores: site da AVIPAF (Academia Virtual Internacional de Poesia, Artes e Filosofia) 
- Sobre o Taiko no site Ishindaiko 
- Foto do livro: Editora Insight 

Divenei Boselli (1938 - 2020)


1
A cascata em que se espelha
resplandecente beleza,
é o rio que se ajoelha
ante o altar da natureza.
2
Ainda que outras despontem
neste teu céu de hoje em dia,
há de lembrar, sempre, que ontem
eu fui tua estrela guia...
3
A mais ostensiva prova
de fé que a morte produz
não é a cruz sobre a cova,
mas a crença nessa cruz.
4
Amanhece… De repente,
tomando o corpo da Terra,
o sol beija ardentemente
o rosto bruto da serra…
5
A vaga está garantida
para mim, porque, sabendo
que exigem folha corrida,
eu trouxe o jornal, correndo!
6
Chego à porta, enxugo o pranto,
deixo a dor no chão que piso
e, como que por encanto,
mostro o encanto de um sorriso...
7
Chegou cedo o bom marido
e amanheceu sobre a mesa...
- De que teria morrido?
- Ora, “meu”... Foi de surpresa...
8
Choro junto à sepultura
de sonhos mortos repleta,
e a razão, mãos na cintura,
diz: – quem mandou ser Poeta?
9
Coração, pouso de estrada,
repara bem, coração,
que entre os que pedem pousada,
entra o teu próprio ladrão!
10
Da fartura prometida
de carícias e de beijos,
só resta a parca medida
que não mata meus desejos…
11
Descubro ao longo da vida
meus mais íntimos segredos,
quando, qual harpa tangida,
vibro ao toque dos teus dedos...
12
Disfarço a mágoa com jeito
de quem crê no recomeço
e o disfarce é tão perfeito
que nem eu me reconheço…
13
Enquanto eu choro e tu dormes
com teus sonhos traiçoeiros,
cabem distâncias enormes
no vão de dois travesseiros.
14
Essa idade que escondemos,
que, entre risos, desmentimos,
é sempre aquela que temos,
mas, nem sempre, a que sentimos.
15
Eu faço das fronhas, lenços,
nas longas noites sem sono
e os lençóis, braços imensos,
abraçam meu abandono.
16
“Eu tenho a idade mundo!,
grita a Mentira; e a Verdade,
em tom solene e profundo:
“Eu também tenho essa idade!”
17
Fundamentada promessa
de dignidade e decência,
a liberdade começa
no fundo da consciência.
18
Hoje, em que braços deliras,
em que outro ouvido murmuras
as verdadeiras mentiras
que me disseste por juras?...
19
Madame teve um desmaio
no quarto das empregadas,
ouvindo, do papagaio,
tremendas papagaiadas!
20
Meu olhar seco adivinha
e eu evito a despedida
porque as lágrimas que eu tinha
chorei quando eu tinha vida…
21
Meu papagaio sumiu...
E um vizinho, desonesto,
anda dizendo que o viu
no Cartório de Protesto!
22
Meu peito é campo minado
onde o amor, míssil incerto,
procura um tanque blindado
e encontra apenas deserto…
23
Na moldura carcomida
resiste o sorriso antigo,
mas o espelho mostra a vida
e o que a vida fez comigo...
24
Não regressas... Mesmo assim,
a ilusão que eu julguei morta,
morta de pena de mim,
monta guarda à minha porta.
25
No cálice, o teu adeus
transborda o fel pelas beiras
e eu padeço, feito um deus
no Jardim das Oliveiras.
26
No estreito espaço de um quarto,
muitos tiveram guarida,
mas... só contigo eu reparto
o espaço inteiro da vida!...
27
Nos beijos apaixonados
os desejos vão contendo
os versos inacabados
que a Vida vive fazendo.
28
Onde a lei torta vigora
E o povo ao jugo se presta,
O rico só comemora
E o pobre é quem paga a festa.
29
O que aumenta meu tormento
é lembrar que me sorrias
e, ao fazer teu juramento,
mentias bem… Mas, mentias!
30
Partes, levando a metade
da metade que eu já sou,
deixando inteira a saudade
na metade que restou...
31
Partiste e, neste abandono,
na luz que vem da vidraça,
afugentando meu sono,
vem a saudade... e me abraça!
32
Pedi que nenhum de nós
terminasse só e triste;
eu pus minha alma na voz
mas, mesmo assim, não me ouviste...
33
Por direito, a safra é minha,
mas, na colheita, um impasse:
por que essa erva daninha
que eu colho sem que a plantasse?
34
Por respeito e amor à Vida,
que todo o Amor se concentre
em toda Vida contida
no estreito espaço de um ventre!
35
Pranto, riacho de dor
que em mim se faz um açude,
lembrando os versos de amor
que eu quis compor, mas não pude…
36
Quero o abraço ardente, aceso
de alguém que derreta, enfim,
a neve que o teu desprezo
derramou dentro de mim...
37
Saudade, eterno martírio
que ocupa, agora, em meu peito,
os espaços que o delírio
ocupava em nosso leito!...
38
Semana santa em meu peito...
Nas trevas, sem compaixão,
as mágoas rondam meu leito
com jeito de procissão...
39
Sem saber, os violeiros,
cantando em dupla ou sozinhos,
cantam a dor dos pinheiros
que deram vida aos seus pinhos.
40
Sentimos tanta alegria
quando estamos abraçados,
que, para nós, qualquer dia,
é "Dia dos Namorados"!
41
– Seu filho não tem vontade
de trabalhar pra ninguém!
Nega o pai: – Não é verdade.
Tem má vontade... Mas tem!
42
Soubesses medir o peso
que tem a palavra "Não",
saberias que o desprezo
é um convite à traição..
43
Teu corpo, assim, sinuoso,
cheira a convite suspeito;
- o rio mais caudaloso
tem mais mistérios no leito...
44
Teus olhos, luz que ilumina
o tatear dos teus dedos,
são dois faróis de neblina
devassando os meus segredos…
45
Toda a ilusão tem a sorte
da frágil franja alvacenta
da onda que, embora forte,
de espaço a espaço rebenta.
46
Tu, que ao partires, outrora,
não pensavas regressar,
regressas, e é tua, agora,
a hora e vez de chorar...
47
Uma lágrima, sequer,
eu vi no adeus...Nem depois.
Não faz mal...eu sou mulher,
posso chorar por nós dois!
48
Um dia eu parti, pensando
poder, um via, voltar;
sem pensar que 'um dia' é quando
o Deus - destino marcar...
49
Vai trabalhar, vagabundo,
grita a mulher, feito gralha;
e ele rosna lá do fundo” :
– “Vagabundo não trabalha!”…
50
Voltas... E eu acho tão triste
a emoção de disfarçar,
que por mim, já que partiste,
nem precisavas voltar...

Fonte:

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 177


Alcântara Machado (O Monstro de Rodas)


O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.

- Ei, Pepino! Escuta só o frio!

Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aída achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariângela achava também. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora

Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca.

- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora.

Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.

- Leva ela pra dentro!

- Não! Eu não quero! Eu... não... quero!...

Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lágrimas de dó.

- Coitada da Dona Nunzia!

A negra de sandália sem meia principiou a segunda volta do terço.

- Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...

Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.

- ... da nossa morte. Amém. Padre Nosso que estais no Céu...

O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Três. Quatro.

- ... de todo o mal. Amém.

A Aída levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.

Cinco. Seis.

O violão e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada.

Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... - O mulato? - Quem mais há de ser?).

- Quero só ver daqui a pouco a noticia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha.

- Xi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingênuo, rapaz. Não conhece a podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou não é, Seu Zamponi?

Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou mais outro palavrão, cuspiu.

- É isso mesmo, Seu Zamponi, é isso mesmo!

O caixãozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda.

- Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.

A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu.

O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas-de-são-josé. E na calçada os homens caminhavam descobertos.

O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.

- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüenta você ganha. Menos, eu.

Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço.

- Deixa eu carregar agora, Josefina?

- Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, que você tem!

O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada.

Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranjado três votos para as próximas eleições municipais.

- Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe!

Aída voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.

- Que linda que era ela!

- Não vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia...

O pai tinha ido conversar com o advogado.

Fonte:
Alcântara Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda.