domingo, 5 de novembro de 2023

Sílvio Romero (A moura torta)

(Folclore do Pernambuco)

Uma vez havia um pai que tinha três filhos, e, não tendo outra coisa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando eles quiseram sair de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recomendado que não abrissem as frutas senão em lugar onde houvesse água. 

O mais velho dos moços quando foi ver  o que dava a sua sina, estando ainda perto da casa, não se conteve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita dizendo: “Dai-me água, ou dai-me leite.” 

O rapaz não achava nem uma coisa nem outra, a moça caiu para trás e morreu.

O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu também a sua melancia, e saiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu água ou leite, e o rapaz não achando nem uma coisa nem outra, ela caiu para traz e morreu.

Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma fonte. No abri-la pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: “Quero água ou leite.” 

O moço foi à fonte, trouxe água e ela bebeu a se fartar. Mas a moça estava nua, e então o rapaz disse a ela que subisse num pé de árvore que havia ali perto da fonte, enquanto ele ia buscar a roupa para ela. A moça subiu e se escondeu nas ramagens. 

Veio uma moura torta buscar água, e, vendo na água o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu e pôs-se a dizer:

“Que desaforo! Pois eu, sendo uma moça tão bonita, andar carregando água!... ”

Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa sem água e nem pote, levou um repelão muito forte, e a senhora mandou-a buscar água outra vez; mas na fonte fez o mesmo, e quebrou o outro pote. Terceira vez fez o mesmo, e a moça não se podendo conter deu uma gargalhada.

A moura torta, espantada, olhou para cima e disse: “Ah! E você, minha netinha!... Deixe eu lhe catar um piolho.” 

E foi logo trepando pela árvore arriba, e foi catar a cabeça da moça. Fincou-lhe um alfinete, e a moça virou numa pombinha e voou! A moura torta então ficou no lugar dela. 

O moço, quando chegou, achou aquela mudança tamanha e estranhou; mas a moura torta lhe disse: “O que quer? Foi o sol que me queimou!... Você custou tanto a vir me buscar!”

Partiram para o palácio, aonde se casou. A pombinha então costumava voar por perto do palácio, e se punha no jardim a dizer: “Jardineiro, jardineiro, como vai o rei, meu senhor, com a sua moura torta?” E fugia. 

Até que o jardineiro contou ao rei, que, meio desconfiado, mandou armar um laço de diamante para prendê-la, mas a pombinha não caiu. Mandou armar um de ouro, e nada; um de prata, e nada; afinal um de visco, e ela caiu. 

Foram levá-la que muito a apreciou. Passados tempos, a moura torta fingiu-se pejada e pôs matos abaixo para comer a pombinha. No dia em que deviam botá-la na panela, o rei, com pena, se pôs a catá-la, e encontrou-lhe aquele carocinho na cabecinha, e pensando ser uma pulga, foi puxando e saiu o alfinete e pulou lá aquela moça linda como os amores.

O rei conheceu a sua bela princesa. Casaram-se, e a moura torta morreu amarrada nos rabos de dois burros bravos, lascada pelo meio.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Daniel Maurício (Origamis de Palavras) – 2

A lanterna enferrujada
Se reinventa.
Criou asas...
Vida brotando
Brilho nos olhos
Luz que se espalha
Quando o pássaro canta.
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A lua e o amor
Jamais hão de ser
"Assunto amanhecido"
Pois à beira do caminho
Sempre há de ter
Um coração disponível.
= = = = = = = = = 

Aninhada
entre as molduras de sol,
aos poucos
a cidade inquieta
vai diminuindo o ritmo.
Nos tons sonolentos
e saudosos da quase noite,
meu peito pulsa ao teu,
desfazendo o cansaço
numa deliciosa taça de vinho.
= = = = = = = = = 

Ante a ausência do sol
Eu girassol,
Me aqueço com teus carinhos.
= = = = = = = = = 

Ao juntar das mãos
O pavio da fé se acende
E o que era cinza
Torna-se verde
Brota a esperança
Ao tocar dos joelhos
No chão.
= = = = = = = = =

À tarde
Desacelera o meu peito
Que de tão satisfeito
Receptivo se abre
Em contemplação.
As nuvens ganham asas
Com brilhos emprestados
Encerram o cortejo do sol.
No ar
Espalha-se o hálito do Criador...
A alma respira tão calma.
Sorvo o momento que me basta,
Enquanto o vento suave
Balança a cortina da noite
Despertando o ballet
Dos pássaros no céu.
= = = = = = = = = 

Ausência...
Baila um perfume
Ao vento.
Quando a saudade bate,
Eu apanho.
= = = = = = = = =

Cansadas de voos incertos
Desmancham-se as nuvens
Como penugens
Ao bater de asas de passarinho.
Caem sem paraquedas
Mas bem de mansinho
Feito flocos de neve
Que de tão leves
Me fazem um carinho
Pousando em meu colarinho.
Saudade distante
Procurando um ninho
No meu olhar
Volta a ter cor.
= = = = = = = = = 

Com primor
A primavera pinta a sua alma
Na fachada.
E no perfume das cores
Embriago meu olhar.
= = = = = = = = = 

Nos teus beijos
Busco luares escondidos
No céu da tua boca
Ares de hortelã.
= = = = = = = = = 

Plantei sonhos
em teu peito
e em paz espero
pelo florescer.
= = = = = = = = = 

Quebrando o silêncio
da tempestade
que só doía em mim,
a lua soprou as nuvens
num sorriso
que parecia não ter fim.
= = = = = = = = = 

 Sem pressa de partir,
A tarde confunde
Seus caminhos com os da noite.
Luz e sombra
A capa do tempo
Fica borrada de vinho.
Da alma do artista
Escorre a aquarela
Tingindo o céu de mansinho.
Ante a sinfonia de cores,
A Torre acostumada
A ser farol noturno
Se cala contemplativa
Em profundo mergulho.
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Fonte: Daniel Maurício. Origamis de Palavras. São Carlos/SP: Pedro e João Editores, 2021. Enviado pelo poeta.

Graciela Pucci (Náufrago e Beira-mar)

Ela estava lá, perdida em pensamentos e ausente. Seus olhos navegavam à deriva em um mar que só ela conhecia. A fumaça do cigarro, esquecido entre os dedos, subiu até seu rosto e a fez piscar.

Ela era seu próprio universo.

Parei para olhá-la do outro lado do vidro, sorri para ela, ela sorriu de volta.

Novamente se retraiu.

Entrei no bar, aproximei-me de sua mesa e a cumprimentei. Com um gesto quase imperceptível, convidou-me a sentar. Fixou seu olhar em mim e disse:

-Obrigada por ter vindo, estou te esperando há muito tempo, precisava falar com você.

O mar pelo qual ela navegava tornou-se agitado, agarrou-se à minha orla e derramou a torrente, dizendo:

-Tudo está aqui, dentro de mim, em um lugar escondido ao qual não posso acessar para desenraizá-lo. É fertilizado com o tempo e dá frutos, que por sua vez criam sementes. Estas se reproduzem e crescem. Estou cheia de lembranças que quero esquecer, mas minha alma está desolada, é um buraco infinito de nostalgia e melancolia, um deserto indefeso, produto de uma mentira, que é minha única verdade desde então. Mas hoje, quando vejo você na minha frente, começo a acreditar que existem outras verdades que devo encontrar.

Com um brilho especial nos olhos, moveu sua cadeira, levantou-se e com passo firme e determinado dirigiu-se para a saída.

Eu nunca soube o nome dela, nem ela o meu.

Fomos náufrago e beira-mar.

Eu volto a esse bar com frequência, ela não está lá. Talvez ao retornar ao mar de seus sentimentos ela tenha encontrado seu caminho.

Eu ainda estou procurando o meu…
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Graciela Pucci é criadora da Revista Literarte. 

Eduardo Affonso (Traição)

– Tem certeza que o local é seguro?

– Claro que tenho.

– Discreto?

– Discretíssimo.

– Ninguém vai ver a gente entrar nem sair?

– Não, não vai.

– Tem que ser no sigilo.

– Será.

– Não tem câmera de segurança na rua?

– Não, não tem.

– Pode ser lá, então.

(Meia hora depois)

– Fecha bem as cortinas. Vai que alguém…

– Pronto. Fechei.

– Já fez varredura pra ver se não tem cam ou microfone escondido no teto, na tevê, na jacuze?

– Não leva a mal, mas você está parecendo paranoica…

– Fez ou não fez a varredura?

– Fiz.

– Desliga o celular, então.

– O quê? Você acha que eu… ?

– Eu sou uma pessoa conhecida, Paulo Roberto. Se isso vaza, minha vida está arruinada, minha carreira acabou.

– Ok, desliguei o celular.

– Tira a bateria.

– Tirar a bateria?

– Recebi um zap outro dia dizendo que o celular, mesmo desligado, continua ouvindo tudo, rastreando tudo.

– Olha, isso está ficando muito estranho. Melhor a gente deixar pra lá…

– Não, não. Eu quero muito. Eu preciso tanto! E sei que você não vai sair contando pra todo mundo, espalhando pros seus amigos.

– Pode confiar em mim.

– Posso mesmo? Olha como eu estou tremendo… Ai, meu Deus, meu marido jamais imaginou que eu fosse capaz disso, meus filhos nem sonham, e meus amigos… o que meus amigos iriam dizer?

– Não temos a tarde toda, Ana Lúcia. Vai, você é uma mulher adulta, independente. Tira essa culpa dos ombros, solta essas amarras. Liberte-se desses dogmas que te oprimem, dessa pressão da sociedade. Não tenha medo do que vão pensar. Diz pra mim, vai. Quero ouvir da sua boca…

– Trancou a porta?

– Tranquei.

– Deu duas voltas na chave?

– Dei.

– Apaga a luz.

A luz é apagada.

Na penumbra, Ana Lúcia respira profundamente. Semicerra os olhos. Passa a língua pelos lábios. Engole em seco. Do fundo da garganta, com a voz entrecortada, quase um sussurro, ela confessa:

– Paulo Roberto, eu apoio a Regina Duarte.

Estante de Livros (“As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles)


As Meninas" é um romance da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973. A história se passa durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, e acompanha a vida de três amigas que dividem um quarto em uma pensão em São Paulo.

No livro, três narradoras se alternam, produzindo a polifonia de vozes: Lorena, Lião e Ana Clara. São estudantes universitárias que moram em uma pensão.

A narrativa é conduzida por Lorena, uma jovem introspectiva e solitária, que se refugia em seus próprios pensamentos para escapar da realidade opressiva que a cerca. Ela divide o quarto com a alegre e extrovertida Ana Clara, e com a misteriosa e rebelde Lia.

As três amigas são completamente diferentes entre si, mas encontram conforto e companhia na convivência. Juntas, elas criam um universo próprio, repleto de fantasia e imaginação, que as ajuda a suportar a dura realidade do mundo lá fora.

As três amigas também se envolvem em diversas aventuras, que envolvem desde a descoberta de um mistério na casa em que moram até uma viagem de férias que se revela uma grande decepção. Em meio a tudo isso, elas encontram na amizade e na cumplicidade uma forma de se apoiar e de enfrentar as dificuldades.

Por fim, as protagonistas são confrontadas com escolhas que definirão seus futuros. Lorena precisa decidir se seguirá o caminho que sua família espera dela ou se buscará sua própria independência, enquanto Lia e Ana Clara precisam enfrentar suas próprias limitações e medos para encontrar uma forma de se libertar das amarras que as prendem.

No final, cada uma das três protagonistas enfrenta um desfecho diferente.

Lorena, a estudante de direito introspectiva e sonhadora, decide abandonar seus estudos e sua vida convencional para viver uma experiência de liberdade e aventura. Ela foge de casa e se junta a um grupo de hippies, buscando novas formas de viver e de se relacionar com o mundo.

Lia, a jovem rebelde e misteriosa, enfrenta um final trágico. Ela é assassinada pelo amante mais velho e casado, em um crime que deixa as outras personagens chocadas e abaladas.

Já Ana Clara, a estudante extrovertida e alegre, encontra uma nova forma de viver a vida. Ela deixa a pensão e se muda para o apartamento de um amigo, onde passa a trabalhar em uma galeria de arte e a viver novas experiências. Ela encontra uma forma de superar sua tristeza e de se reinventar, abrindo-se para novos horizontes e possibilidades.

O final do livro oferece uma visão complexa e emocionante da juventude brasileira dos anos 70, mostrando como cada uma das protagonistas enfrenta desafios e escolhas que definirão seu futuro. A obra é marcada por uma sensibilidade poética e por uma reflexão profunda sobre a vida e a liberdade em um contexto de opressão e de luta por direitos.

As Meninas é um romance marcante da literatura brasileira, que oferece uma visão sensível e poética sobre a juventude e a resistência em tempos difíceis. A obra é considerada uma das principais contribuições de Lygia Fagundes Telles para a literatura brasileira.

ANÁLISE DO LIVRO

AÇÃO

A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.

Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.

PERSONAGENS

Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.

Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.

Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.

No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.

Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.

Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.

Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.

Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.

Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.

Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

TEMPO

Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.

Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.

Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.

ESPAÇO

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.

FOCO NARRATIVO

O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.

Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.

O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

Fontes: 
– Análise: Algo sobre. 
– Resumo: site Resumo de Livros. 
- Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing

sábado, 4 de novembro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 35

 

Mensagem na Garrafa – 24 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Hélder Proença
Bissau/Guiné Bissau (1956 – 2009)

NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes.

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nômade e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens.

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a «Deus Pai todo poderoso
criador dos céus e da terra».

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa.

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte.

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!

Nilto Maciel (A perseguição)

Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma prostituta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de ideia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.

Tenho pensado, e pensei na ocasião, mil besteiras, absurdos. Um ente sobrenatural, um ser qualquer, um robô, minha sombra.

De qualquer forma, continuei de mãos enfiadas nos bolsos. Talvez até pelo simples desejo de aquecê-las, resguardá-las do frio.

Andava sem jeito, como se tivesse presos os braços, amarrados por cordas, empurrado para o abismo. Mas quem me prendia e conduzia para a morte? Lembro-me de ter retirado dos bolsos as mãos, que, crescidas, inchadas, volumosas, custaram a saltar fora. E balançando os braços, pesados, quase paralisados, numa vontade imensa de voar, fugir, correr. Tentei apressar o passo. O chão parecia grudar-se aos meus pés. O som de nossas pisadas ressoava na calçada, como se a calçássemos com força, em marcha de tropas vitoriosas. Quantos já me seguiam? Olhei para trás. O homem continuava à mesma distância de mim, lento, preguiçoso, rastejante. Acalmei-me e julguei-o apenas um coitado, um idiota acostumado a caminhar sozinho dentro da noite. E se fosse um vampiro? Saltaria, devorador, ao meu pescoço. Passei a mão trêmula pela nuca. Senti calafrios. Apressei o passo mais ainda. Ia quase correndo. Atrás de mim, passos cadenciados de quem corre. Meu coração batia sem sossego. Cansado, parei. E deixei de ouvir também as pisadas do estranho. Voltei-me e ele me deu as costas. Enchi-me de coragem e fui em sua direção. Agora eu o perseguia. E ele fez-se perseguido. De novo parei. Se continuasse, nunca chegaria a minha casa. E ele deixou também de andar. Vi, por suas costas, que se parecia comigo: os mesmos ombros caídos, a mesma cabeleira despenteada. Por que não dirigir-lhe a palavra, perguntar-lhe o que queria, quem era, por que me seguia, por que me imitava em tudo? Não o fiz, voltei-me e tomei meu caminho, devagar, desiludido.

Mais adiante, já resolvido a esclarecer o mistério, reduzi a marcha e, sem me voltar, gritei: “Que quer você?” Minha voz ecoou: “Que quer você?” Não sei, talvez ele, o estranho, me arremedasse, zombasse de mim, para me amedrontar. Com febre, eu tremia e não sabia mais em que pensava. Cuidei, me vi diante de casa. Olhei para trás. O homem havia parado a uns vinte passos de mim. Abri o portão, percorri, sonâmbulo, o jardim, abri a porta e pulei para a sala. Tirei a camisa ensopada em suor e corri ao quarto. Caí na cama como um bêbado. Não vi, não senti, não pensei mais nada. Devo ter dormido profundamente.

De manhã, mal o sol despontava, abri a porta, percorri o jardim e cheguei ao portão. Na calçada, encharcado numa poça d’água, jazia um homem. E nem sei se se tratava do mesmo que me havia seguido.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao entardecer) – 4

A asa branca do teu lenço
no momento da partida,
selou o amargo consenso
que foi nossa despedida.
= = = = = = = = = 

Achando tudo enfadonho,
te elevas a tais alturas,
que passas pelo teu sonho
sem saber o que procuras.
= = = = = = = = = 

A lua beija a montanha
e debruça sobre a mata
seu clarão que tudo banha
em mistério cor de prata.
= = = = = = = = = 

A malefício eu dizia
que tinha o corpo fechado;
e fui tombar... (que ironia!)
ao mel do teu mau-olhado!
= = = = = = = = = 

À montanha tenebrosa
chego, enfim, e que surpresa!
É a mera sombra tortuosa
de minha própria incerteza.
= = = = = = = = = 

A rosa estava com frio...
O sol ficou com peninha,
mandou seu raio sadio
para aquecer a rainha.
= = = = = = = = = 

Beijando a macia alfombra
toda de orvalho molhada,
um raio de sol, na sombra,
diz adeus à madrugada.
= = = = = = = = = 

Cabo da Boa Esperança,
para sempre representas
o arrojo e a firme confiança
do luso, ao Mar das Tormentas.
= = = = = = = = = 

Cheguei tarde para a festa.
De véu, grinalda e um sorriso,
ela é a imagem que me resta
de um pretenso paraíso.
= = = = = = = = = 

De minha vida vazia
sinto que a voz se desgarra,
e assume a monotonia
da cantiga da cigarra.
= = = = = = = = = 

Em nosso mútuo abandono,
desfazemos um reinado:
És rainha já sem trono,
e eu, pobre rei desterrado!
= = = = = = = = = 

Juraste que não me amavas,
eu também, cedendo à ira.
E o amor, por águas tão bravas,
naufragou na vil mentira.
= = = = = = = = = 

Juro odiar-te, e a cada frase
a que ponho mais vigor,
da mentira envolta em gaze,
salta a emoção deste amor.
= = = = = = = = = 

Mais um gole de cachaça
e a tragédia aconteceu:
traçando a própria desgraça,
brigou, matou... e morreu.
= = = = = = = = = 

Minha ilusão exigente
que ambicionava um império,
hoje só busca, indigente,
um lugar no cemitério.
= = = = = = = = = 

Na tua calma aparente
vislumbro um certo rancor,
pois tentas, inutilmente,
desprezar o meu amor.
= = = = = = = = = 

Nuvem que ao vento te inspiras,
compondo painéis tão belos,
que os rasgues depois em tiras,
mas poupe os meus castelos.
= = = = = = = = =

Qual a Fênix renascida
das cinzas de um coração,
o amor dá o sopro de vida
ao fantasma da ilusão.
= = = = = = = = = 

Quais pétalas que arrancamos
a uma pobre margarida,
são as horas que atiramos,
inúteis, ao léu da vida.
= = = = = = = = = 

Que ao vento o barco me leve,
nada mais tenho que conte...
Somente a fé me descreve
um novo e belo horizonte.
= = = = = = = = = 

Se para "além da montanha"
nossa vida é só sorriso,
por que reação tamanha
a ir viver no paraíso?
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Ser bom, sem jamais no entanto,
qualquer retorno exigir,
é a pedra angular do encanto
e da razão de existir.
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Soluçava a margarida;
o sol quis saber por quê...
e ela, tremendo, encolhida:
"É saudade de você!"
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Sorvo a taça de amargura,
imune à dor que me invade,
mas não resisto à tortura
a que me impõe a saudade.
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Teu olhar meigo e risonho
para mim é uma promessa
de que das cinzas de um sonho,
de novo tudo começa.
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Vento de outono, passando,
varrendo as folhas do chão,
vai a velhice arrastando
os sonhos do coração.
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Fonte: Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013. Enviado pela trovadora.

Machado de Assis (O melhor remédio)

O que se vai ler passa-se num bonde. D. CLARA está sentada; vê D. AMÉLIA que procura um lugar; e oferece-lhe um ao pé de si.

D. CLA. Suba aqui, Amélia. Como passa?  

D. AMÉ. Como hei de passar?

D. CLA. Doente?

D. AMÉ. (suspirando) Antes fosse doente!

D. CLA. (com discrição) Que aconteceu?

D. AMÉ. Coisas minhas! Você é bem feliz, Clara. Digo muita vez comigo que você é bem feliz. Realmente, eu não sei para que vim ao mundo.

D. CLA. Feliz, eu? (Olhando melancolicamente para as borlas do leque) Feliz! feliz! feliz!

D. AMÉ. Não tente a Deus, Clara. Pois você quer comparar-se a mim nesse particular? Sabe por que é que saí hoje?

D. CLA. E eu por que é que saí?

D. AMÉ. Saí, porque já não posso com esta vida: um dia morro de desespero. Olhe, digo-lhe tudo: saí até com ideias... Não, não digo. Mas imagine, imagine.

D. CLA. Fúnebres?

D. AMÉ. Fúnebres. Sou nervosa, e tenho momentos em que me sinto capaz de dar um tiro em mim ou atirar-me de um segundo andar. Imagine você que o senhor meu marido teve ideia... Olhe que isto é muito particular.

D. CLA. Pelo amor de Deus!

D. AMÉ. Teve ideia de ir este ano para Minas; até aqui vai bem. Eu gosto de Minas. Estivemos lá dois meses, logo depois que casamos. Comecei a arranjar tudo; disse a todas as pessoas que ia para Minas..

D. CLA. Lembro-me que me disse.

D. AMÉ. Disse. Mamãe achou esquisito, e pediu-me que não fosse, dizendo que, para ela visitar-nos de quando em quando, era-lhe mais fácil se estivéssemos em Petrópolis. E era verdade; mas ainda assim não falei logo ao Conrado. Só quando ela teimou muito é que eu contei ao Conrado o que mamãe me tinha dito. Ele não respondeu; ouviu, levantou os ombros, e saiu. Mamãe teimava; afinal declarou-me que ia ela mesma falar a meu marido; pedi-lhe que não, ela porém respondeu-me que não era um bicho de sete cabeças. Petrópolis ou Minas, tudo era passar o verão fora, com a diferença que, para ela, Petrópolis ficava mais perto. E não era assim mesmo?

D. CLA. Sem dúvida.

D. AMÉ. Pois ouça. Mamãe falou-lhe; foi ele mesmo quem me disse, entrando em casa, no sábado, muito sombrio e aborrecido. Perguntei-lhe o que é que tinha; respondeu-me com mau modo; afinal disse-me que mamãe lhe fora pedir para não ir a Minas. “Foi você quem se agarrou com ela!” — “Eu, Conrado? Mamãe mesma é que me anda falando nisto, e eu até lhe disse que não lhe pedia nada.” Não houve explicação que valesse; ele declarou que não iríamos em caso nenhum a Petrópolis. “Para mim é o mesmo, disse eu; estou pronta até a não ir a parte nenhuma.” Sabe o que é que ele me respondeu?

D. CLA. Que foi?

D. AMÉ. “Isto queria você!” Veja só!

D. CLA. Mas... não entendo.

D. AMÉ. Eu disse a mamãe que não pedisse mais nada; não valia a pena, era perder tempo e zangar o Conrado. Mamãe concordou comigo; mas, daí a dois dias, tornou a falar na mudança; e afinal ontem o Conrado entrou em casa com os olhos cheios de raiva. Não me disse nada, por mais que lhe rogasse. Hoje de manhã, depois do almoço, declarou-me que mamãe tinha ido procurá-lo ao escritório e lhe pediria pela terceira vez para não ir a Minas, mas, a Petrópolis; que ele afinal consentira em dividir o tempo, um mês em Minas e outro em Petrópolis. E depois pegou-me no pulso, e disse-me que tomasse cuidado; que ele bem sabia por que é que eu queria ir para Petrópolis, que era para andar de olhadelas com... Nem lhe quero dizer o nome, um sujeito de quem não faço caso... Diga-me se não é para ficar maluca.

D. CLA. Não acho.

D. AMÉ. Não acha?

D. CLA. Não: é um episódio sem valor. Maluca havia de ficar se desse o que se deu hoje comigo.

D. AMÉ. Que foi?

D. CLA. Vai ver. Conhece o Albernaz?

D. AMÉ. O do olho de vidro?

D. CLA. Justamente. Damo-nos com a família dele, a mulher, que é uma boa senhora, e as filhas que são muito galantes...

D. AMÉ. Muito galantes.

D. CLA. Há mês e meio fez anos uma delas, e nós fomos lá jantar. Comprei um presente no Farani, um broche muito bonito; e na mesma ocasião comprei outro para mim. Mandei fazer um vestido, e fiz umas compras mais. Isto foi há mês e meio. Oito dias depois deu-se a reunião do Baltasar. Já tinha o vestido encomendado, e não precisava mais nada; mas, passando pela Rua do Ouvidor, vi outro broche muito bonito e tive vontade de comprá-lo. Não comprei, e fui andando. No dia seguinte torno a passar, vejo o broche, fui andando, mas na volta... Realmente, era muito bonito; e com o meu vestido ia muito bem. Comprei-o. O Lucas viu-me com ele, no dia da reunião, mas você sabe como ele é, não repara em nada; pensou que era antigo. Não reparou mesmo no primeiro, o do jantar do Albernaz. Vai então hoje de manhã, estando para sair, recebeu a conta. Você não imagina o que houve; ficou como uma cobra.

D. AMÉ. Por causa dos dois broches?

D. CLA. Por causa dos dois broches, dos vestidos que faço, das rendas que compro, que sou uma gastadeira, que só gosto de andar na rua, fazendo contas, o diabo. Você não imagina o que ouvi. Chorei, chorei, como nunca chorei em minha vida. Se tivesse ânimo, matava-me hoje mesmo. Pois então... E concordo, concordo que não era preciso outro broche mas isto faz-se, Amélia?

D. AMÉ. Realmente...

D. CLA. Eu até sou econômica. Você, que se dá comigo há tantos anos, sabe se não vivo com economia. Um barulho por causa de nada, uns miseráveis broches...

D. AMÉ. Há de ser sempre assim. (Chegando à Rua do Ouvidor.) Você desce ou sobe?

D. CLA. Eu subo, vou à Glace Elegante; depois desço. Vou ver uma gravura muito bonita, inglesa...

D. AMÉ. Já vi; muito bonita. Vamos juntas.

D. CLA. Há hoje muita gente na Rua do Ouvidor.

D. AMÉ. Olha a Costinha... Ela não fala com você?

D. CLA. Estamos assim um pouco...

D. AMÉ. E... e depois...

D. CLA. Sim... mas... luvas brancas.

D. AMÉ. ..................?

D. CLA. ...................!

AMBAS (sorrindo) Uma coisa muito engraçada; vou contar-lhe...

Fonte: Publicado originalmente em A Estação, 31/3/1884. Disponível em Domínio Público