quinta-feira, 17 de outubro de 2024

José Feldman (A Arte da Filinha: Uma Comédia da Vida Cotidiana)

Ah, as filas! Essas longas serpentes de impaciência que se estendem como uma obra de arte moderna, sempre nos convidando a uma reflexão profunda sobre a condição humana. Se você pensa que a vida é feita de momentos gloriosos, experimente passar um dia inteiro na fila de um supermercado. Aí sim você vai entender o verdadeiro significado de “esperar”.

O supermercado, esse templo da alimentação onde, em teoria, você vai apenas comprar um pão e um litro de leite. Mas, ao entrar, você se depara com um labirinto de prateleiras e, claro, a fila do caixa. Você observa a cena: uma senhora, que parece ter saído de um filme de ação, está examinando cada item no seu carrinho como se fosse uma missão secreta. E ali está você, atrás dela, questionando suas escolhas: “Por que alguém precisaria de 17 pacotes de bolacha de água e sal?”

Enquanto isso, a jovem à sua frente está tentando pagar com um cartão que claramente já passou pela guerra. O caixa, que é um ser humano como você, tenta, com todas as suas forças, persuadir a máquina a aceitar aquele pedaço de plástico. E você, que estava apenas querendo um pão, agora se encontra em um drama digno de Shakespeare.

Saindo do supermercado, você pensa: “Pelo menos no banco as filas são mais organizadas.” Ah, ingênuo! A fila do banco é como um jogo de xadrez. Você se posiciona cuidadosamente, mas logo percebe que está cercado. À sua esquerda, um homem que parece ter uma consulta de emergência com o gerente, e à sua direita, uma mãe tentando explicar a importância da conta bancária para sua filha de cinco anos. “Não, querida, você não pode comprar um unicórnio com moedinhas.” O diálogo se arrasta, e você, que só queria sacar dinheiro, começa a imaginar a vida em uma ilha deserta.

E, claro, quando finalmente chega sua vez, o caixa está fora do ar. “Desculpe, o sistema está lento hoje.” Ah, o sistema! Essa entidade mística que nunca parece funcionar quando você mais precisa. Agora você se pergunta se é mais fácil sacar dinheiro de um caixa eletrônico ou se deve arriscar mais uma fila.

Ah, os caixas eletrônicos, essas máquinas que prometem a liberdade financeira, mas que muitas vezes se tornam um verdadeiro campo de batalha. Você se aproxima do caixa, triunfante, e aperta os botões como se estivesse jogando um videogame. Mas, claro, a máquina não reconhece seu cartão. “Cartão não identificado.” Que mistério! Você olha ao redor, esperando que alguém aponte a solução mágica, mas todos estão tão absortos em seus próprios dramas que você se sente como um personagem secundário em um filme sem roteiro.

E quando finalmente consegue fazer a transação, você se depara com a tela que pergunta: “Deseja realizar outra transação?” Você hesita, pensando: “Desejo, sim, mas não desejo ficar aqui mais um segundo.”

Depois do drama do banco e do caixa eletrônico, você decide que é hora de ir para casa. Mas, claro, o destino reserva mais uma fila para você: a do estacionamento. Você roda em círculos, como um hamster em uma roda, à procura de uma vaga. E quando finalmente encontra uma, tem que lidar com a arte de estacionar. O carro da frente parece ter sido estacionado por um artista surrealista, e você se pergunta se realmente precisa de uma licença de piloto para isso.

Uma vez estacionado, você se dirige à saída, apenas para se deparar com uma fila de pessoas tentando pagar seus tickets. O caixa, que parece ter saído de um filme de terror, tenta processar os pagamentos, mas a máquina de cartão está mais lenta que um caracol em um dia preguiçoso.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você volta para casa exausto, mas também um pouco mais feliz. Porque, no fundo, as filas são um microcosmo da vida. Elas nos ensinam paciência, resiliência e, claro, a arte de fazer amigos. Você pode até sair de uma fila com um novo conhecido, alguém que também estava preso no labirinto do supermercado ou tentando desvendar os mistérios do caixa eletrônico.

Portanto, da próxima vez que você se encontrar em uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera. É uma oportunidade de rir, refletir e, quem sabe, fazer uma nova amizade. Afinal, o verdadeiro tesouro da vida pode muito bem estar escondido entre os carrinhos de compras e as máquinas de cartão. 

E se não estiver, pelo menos você terá uma boa história para contar!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Domitilla Borges Beltrame (Araxá/MG, 1932 – 2025, São Paulo/SP)



Flavius Avianus (O asno em pele de leão)

Certa feita, um asno achou uma pele de leão. Cuidou, pois, de cobrir-se, como podia, com a pele, embora esta pouco lhe conviesse. E, como se viu vestido com a roupa de leão honrado, exibindo uma valentia muito superior à que lhe legara a Natureza, aterrorizava todos os outros animais.

Com desmedida presunção, pisoteava o pasto que partilhava com as ovelhas e os cordeiros e, com semelhante empáfia, apavorava dóceis animais silvestres, como os cervos e as lebres nas matas.

Todavia, quando assim pomposamente desfilava no bosque, deparou-se com o seu dono — o aldeão de quem se havia desgarrado — e que, por acaso, passava por aquelas matas. 

Achando-o assim vestido com uma pele de leão, o aldeão agarrou-o pelas longas orelhas — que haviam ficado descobertas — e, dando-lhe cruéis vergastadas, arrojou-lhe fora a vestimenta enganosa.

— Aos que não te conhecem, tu provocas, facilmente, pavor e espanto; mas aos que sabem quem verdadeiramente és, já não podes apavorar: sempre foste e serás o que és: um asno. E enverga, apenas, as roupas que o teu pai natural te legou: não cobices as honras alheias — que não te pertencem — para que não sejas menosprezado quando delas fores desnudado! A quem pensavas indevidamente honrar?

Fontes: Flavius Avianus. Fábulas. século V. versão em português de Paulo Soriano, a partir de tradução anônima espanhola de 1489.
Imagem obtida em https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=bXMpzUTbs-M

Recordando Velhas Canções (Duas contas)

(samba-canção, 1955)


Compositor: Garoto

Teus olhos
São duas contas pequeninas
Qual duas pedras preciosas
Que brilham mais que o luar

São eles
Guias do meu caminho escuro
Cheio de desilusão
E dor

Quisera que eles soubessem
O que representam pra mim
Fazendo que eu prossiga feliz
Ai amor
A luz dos teus olhos
 
A Luz dos Olhos em 'Duas Contas'
A música 'Duas Contas' é uma bela e poética declaração de amor, onde o artista utiliza metáforas para expressar a importância dos olhos da pessoa amada em sua vida. Os olhos são comparados a 'duas contas pequeninas' e 'pedras preciosas', destacando seu valor e brilho. Essa comparação não só exalta a beleza física dos olhos, mas também sugere que eles possuem um valor inestimável para o eu lírico.

Os olhos da pessoa amada são descritos como guias no 'caminho escuro' do eu lírico, que está cheio de desilusão e dor. Essa metáfora indica que, apesar das dificuldades e tristezas enfrentadas, a presença e o olhar da pessoa amada trazem luz e direção, proporcionando esperança e felicidade. A música, portanto, fala sobre a capacidade do amor de transformar e iluminar a vida, mesmo nos momentos mais sombrios.

Utiliza uma linguagem simples, mas profundamente emotiva, para transmitir a mensagem de 'Duas Contas'. A repetição da ideia de que os olhos da pessoa amada são uma fonte de luz e felicidade reforça a centralidade desse sentimento na vida do eu lírico. A canção é uma celebração do amor e da importância de pequenos gestos e detalhes, como um olhar, que podem ter um impacto profundo e duradouro.
Fonte: https://www.letras.mus.br/toquinho/1206287/

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 61: O fardo


 

José Feldman (Pafúncio e o Velório do Cantor)

 
Era uma manhã nublada quando Pafúncio, o jornalista da revista de fofocas, recebeu uma tarefa que o deixou em estado de choque: cobrir o velório de um famoso cantor pop que havia falecido. O editor da revista, em um momento de pura ousadia, achou que Pafúncio seria a pessoa perfeita para trazer um “toque especial” ao evento.

Com um terno que parecia ter sido herdado de um tio distante e uma gravata de estampas questionáveis, Pafúncio chegou ao local do velório. A atmosfera estava pesada, mas ele, em sua natureza despreocupada, acreditava que poderia trazer alguma leveza ao ambiente.

Assim que entrou na sala, Pafúncio se deparou com uma multidão de fãs chorando e uma série de flores e coroas espalhadas por todo o espaço. Ele se aproximou do caixão, onde o cantor estava descansando em paz, e começou a se preparar para tirar algumas fotos. “Isso vai render uma ótima matéria!” pensou, enquanto ajeitava a câmera.

No entanto, sua primeira trapalhada ocorreu quando, ao tentar ajustar a lente, ele acidentalmente ativou o flash. O estalo foi tão alto que muitos dos presentes se viraram, surpresos. 

“Desculpe, gente! Só capturando a luz do além!” Pafúncio gritou, fazendo alguns fãs rirem nervosamente.

Decidido a fazer uma reportagem que seria lembrada, ele começou a entrevistar os fãs que estavam ali. 

“O que você mais gostava no cantor?” perguntou a uma fã, que, em meio às lágrimas, respondeu: “A voz dele era como um anjo!”

“E como você acha que ele se sentiria se soubesse que você está aqui?” Pafúncio continuou, sem perceber que estava sendo totalmente insensível.

“Ele estaria feliz! Mas, por favor, é um velório…” a fã tentou responder, mas Pafúncio já estava distraído, tentando captar a emoção dela com a câmera.

Em sua busca por boas histórias, Pafúncio se aproximou de um grupo de músicos que estavam lamentando a perda do amigo. 

“Oi, posso perguntar como é ser parte da banda do ‘Cantor que Não Deveria Estar Morto’?” ele disse, sem pensar. 

Os músicos o olharam com uma mistura de indignação e surpresa.

“Ele não está ‘morto’! Ele só está descansando!” um deles gritou, enquanto Pafúncio tentava se explicar. “Eu quis dizer… é uma expressão! Como ‘partir para outra!’” ele balbuciou, mas a situação só piorou.

Pafúncio então decidiu que precisava fazer algo grandioso para a reportagem. Ele se lembrou de que o cantor havia escrito uma famosa balada sobre amor e, em um momento de pura inspiração, decidiu que seria uma boa ideia cantar um trecho da música no velório. Subindo em uma cadeira, ele começou a entoar a canção com toda a sua alma, mas sua voz era tão desafinada que os presentes começaram a olhar para ele com expressões de horror.

“Pafúncio, por favor, desça daí!” gritou um dos organizadores do velório, mas ele estava tão envolvido em sua performance que ignorou os avisos.

Depois de alguns versos desastrosos, ele perdeu o equilíbrio e caiu, derrubando uma mesa cheia de flores. As flores voaram pelo ar, caindo sobre o caixão e as pessoas ao redor. 

“Desculpe! Isso foi um… um tributo floral!” ele gritou, enquanto tentava se levantar, mas as pessoas já estavam em estado de choque.

Para piorar a situação, Pafúncio, tentando se desculpar, pegou um copo d'água para se refrescar e, sem querer, jogou o conteúdo todo na direção do caixão. O líquido escorreu pelo lado e atingiu a roupa do cantor. 

“Isso é um sinal! Ele está se mexendo!” alguém gritou, e as pessoas começaram a entrar em pânico.

Quando a situação parecia mais insustentável, algo realmente surpreendente aconteceu. Com um estalo, o caixão se abriu lentamente e, para espanto de todos, o cantor começou a se levantar. Com um olhar irritado, ele se virou para Pafúncio, que estava paralisado de medo.

“Pafúncio! Por favor, me deixe morrer em paz!” exclamou o cantor, claramente frustrado com toda a confusão. 

Ele olhou para a multidão, que estava em estado de choque, e disse: “Eu só queria um velório tranquilo, e você transformou isso em um show!”

A sala ficou em silêncio absoluto, e Pafúncio, com o rosto vermelho de vergonha, finalmente encontrou sua voz. “Desculpe! Eu só queria ajudar!” ele gaguejou.

O cantor, ainda visivelmente irritado, balançou a cabeça e se deixou cair de volta no caixão. “Você realmente não deveria estar aqui, Pafúncio,” ele disse, enquanto a tampa do caixão se fechava lentamente.

Com a tensão no ar, as pessoas começaram a rir nervosamente, e Pafúncio finalmente percebeu que havia se tornado o centro das atenções, mas não da maneira que esperava. 

“Acho que sou a última pessoa que deveria fazer reportagens sobre eventos tristes,” ele murmurou, enquanto começava a se afastar do caixão.

Saindo do velório, Pafúncio se sentiu aliviado, mas também um pouco triste. “O que será que vou escrever sobre isso?” ele pensou, enquanto se afastava, já pensando na manchete: “O cantor que não queria ser perturbado e o jornalista trapalhão que não sabia quando parar.”

E assim, mais uma vez, Pafúncio provou que, em sua vida cheia de desastres, sempre havia espaço para uma boa história — mesmo que essa história envolvesse um cantor ressuscitando para pedir paz. 

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = Diamantino Ferreira (Campos dos Goytacazes/RJ)



Figueiredo Pimentel (A princesa adivinha)

Luísa era uma princesa, que tinha tudo quanto pode haver de mais formoso. Quem a via, ficava logo perdido de amores.

Pretendentes sem conta, todos os reis da terra, apareceram, pedindo-a em casamento. Luísa recusou-os, declarando que só se casaria com o homem, fosse quem fosse, capaz de fazer uma adivinhação que ela não conseguisse decifrar.

Sabendo disso, um rapaz, conhecido como Zé Tolinho, quis ver se obtinha aquele impossível. Filho de um viúvo que se casara em segundas núpcias, a madrasta maltratava-o. Era um desgraçado, e tanto lhe fazia viver como morrer. 

Saiu de casa, em companhia de uma cachorra chamada Pita, levando um pedaço de pão, que a madrasta lhe dera.

Ia reparando em tudo quanto via pelo caminho.

Sentindo fome, estava para trincar o pão, quando se lembrou que a madrasta podia tê-lo envenenado.

Para experimentar deu-o à cadelinha, que caiu morta no mesmo instante. 

Estava a enterrar o pobre animalzinho, e ia pô-lo no buraco que cavara, mas não teve tempo: uma nuvem de urubus desceu, e alguns, mais ousados, devoraram-na de pronto. Sete mais esfomeados, morreram.

Tolinho caminhou adiante, levando os urubus mortos.

Chegando a uma casa que havia à beira da estrada, três bandidos tomaram-lhe à força os urubus. Havia muitos dias que se achavam foragidos da polícia, e morriam de fome. Atiraram-se aos urubus, julgando que eram galinhas, e morreram envenenados. 

Vendo-os mortos, Tolinho escolheu a melhor espingarda, e prosseguiu na jornada.

Um pouco mais longe avistou um macaco trepado sobre uma árvore. Apontou a espingarda, fez fogo, mas errou o tiro, indo porém matar uma pomba-rola que não vira.

Depenou-a, assou-a, fazendo fogo com a madeira conhecida como santa-cruz, e comeu-a. Sentia sede, e não tendo água, aparou o suor que lhe escorria do rosto, e bebeu-o.

Terminado o frugal jantar, marchou pelo caminho em fora, encontrando um cavalo morto, levado pela correnteza do rio, enquanto os urubus o comiam.

Meia légua mais além, reparou que um burro escavava o chão, até encontrar uma panela com dinheiro, ali enterrada. Apanhou o dinheiro, montou no animal e chegou ao palácio.

Quando Luísa soube que um novo pretendente se apresentava, marcou a hora para a audiência.

No salão principal do régio paço, perante a corte, na presença dos maiores sábios, e mais ilustres literatos, Tolinho compareceu, e propôs o enigma:

Eu saí com massa e Pita:
A massa matou a Pita;
E Pita matou a sete,
Que também a três mataram.
Das três a melhor colhi,
E atirando no que vi,
Fui matar o que não vi...
Foi com a madeira santa,
Que cozinhei e comi;
Bebi água, não do céu;
Um morto vivos levava;
E o que os homens não sabiam,
Sabia um simples jumento...
Decifre, pra seu tormento...

Em vão Luísa tentou adivinhar o enigma.

Não o conseguindo, cumpriu a sua palavra, desposando Tolinho.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Incelença do Amor Retirante)


Compositor: Elomar Figueira Melo 

Vem amiga visitar
A terra, o lugar
Que você abandonou
Inda ouço murmurar
Nunca vou te deixar
Por Deus Nosso Senhor
Pena cumpanheira agora
Que você foi embora

Na vida fulorô
Ouço em toda noite escura
Como eu a tua procura
Um grilo a cantar
Lá no fundo do terreiro
Um grilo violeiro
Inhambado a procurar
Mas já pela madrugada
Ouço o canto da amada
Do grilo cantador
Geme os rebanhos na aurora
Mugindo cadê a senhora
Que nunca mais voltou

Faz um ano em janeiro
Que aqui pousou um tropeiro
O cujo prometeu
De na derradeira lua
Trazer notícia tua
Se vive ou se morreu
Derna aquela madrugada
Tenho os olhos na istrada
E a tropa não voltou
Ao sinhô peço clemença
Num canto de incelença
Do amor que ritirou

A Dor do Amor Perdido em 'Incelença Pro Amor Retirante'
A música 'Incelença Pro Amor Retirante' de Elomar Figueira Melo é uma obra poética que retrata a dor e a saudade de um amor que se foi. A letra é rica em imagens e metáforas que evocam a solidão e a espera interminável por notícias da pessoa amada. Desde o início, o eu lírico convida a amiga a visitar o lugar que ela abandonou, revelando um sentimento de abandono e perda. A promessa de nunca deixar o outro, feita em nome de Deus, contrasta com a realidade da separação, intensificando a dor sentida pelo eu lírico.

A presença de elementos da natureza, como o grilo cantador e os rebanhos que gemem na aurora, serve para ilustrar a solidão e a busca incessante pelo amor perdido. O grilo, que canta na escuridão, simboliza a esperança e a procura constante, enquanto os rebanhos mugindo representam a ausência e a saudade. A música também faz referência a um tropeiro que prometeu trazer notícias da amada, mas que nunca voltou, aumentando a sensação de desespero e incerteza sobre o destino do amor.

Elomar, conhecido por sua habilidade em mesclar elementos da cultura sertaneja com uma linguagem poética sofisticada, utiliza a 'incelença' – um canto fúnebre tradicional do sertão – para expressar a dor do amor retirante. A música é uma lamentação profunda, um pedido de clemência ao Senhor pela ausência da amada. A 'incelença' finaliza a canção, reforçando o tom de tristeza e resignação diante da perda irreparável. A obra de Elomar é um testemunho da riqueza cultural do sertão brasileiro e da universalidade dos sentimentos humanos.
Fonte: https://www.letras.mus.br/elomar/376570/ 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 27

 

Renato Frata (Valor da amizade)

Pedi uma bicicleta ao Papai Noel e ele me deixou no abandono.

Vilipendiou-me a crença da infância ao descobrir, entre soluços, que ele não existia. Mais que isso; descobri que os meus pais usaram o dinheiro da compra para pagarem o aluguel atrasado. O porquê disso, confesso, nunca vou compreender. Ou aceitar.

O aprendizado doeu mais que surra injusta, o que fez com que Papai Noel morresse no meu coração da pior maneira naqueles meus oito anos.

Ficou sendo um ser que jamais devia ter nascido. Ou sido inventado.

Não existe dor maior que a de decepção.

Enquanto eu chorava maldizendo o papelão deles por terem me deixado acreditar que ganharia a bicicleta, meu amigo Marco chegou com sua novinha, para brincarmos.

Ele confiava que eu ganharia uma e, ao saber da história do dinheiro, chorou com meus soluços um choro irmanado de amigos, com a mesma dor e cor de sentimento.

Um choro partilhado na proporção da alegria quando ríamos.

O Marco, que havia pedido ao Papai Noel só um pião de corda com música das naves espaciais do Flash Gordon, ganhara, além dele, também a bicicleta.

Era igualzinha a que eu escolhera, de pneus largos e na cor verde. Monark! Supimpa!

- Se o Papai Noel não existe - indagou encabulado por que não disseram a verdade antes do Natal? Mas — complementou - liga não, a minha dará para nós dois. Veja, ela é grande e tem garupa... Um pouco eu guio, outro pouco você...

- Mas a sua é sua, não é minha - resmunguei na extrema desilusão. - Eu queria uma que fosse minha! Uma que pudesse lavar e enxugar. Encher seus pneus...

- Então vamos fazer assim - retrucou; - Dou a você metade dela e ficamos com partes iguais. Pode escolher, a parte do guidão ou a do selim? Só que minha mãe não pode saber, trato feito?

Olhei para seus olhos azuis molhados de sinceras lágrimas. Abracei-o agradecido sabendo que a bicicleta continuaria dele por inteira, mas, no momento em que mil hienas dilaceravam meu coração de menino, que solução haveria?

O Papai Noel que fosse para o diabo e que lá ficasse na quentura do inferno!

Montamos e saímos pelas ruas a gozar a alegria que a bicicleta oferece e voltei a rir, é claro.

Quem não ri sobre uma bicicleta e do prazer de cortar o vento com a cara?

No fundo, porém, lá no oco da alma, o amargo sabor da mentira continuou a latejar, porque não há doce capaz de amenizá-la.

Sempre haverá, por mais que passem os anos, aquele rastro áspero da decepção.

Talvez o gesto de desprendimento do Marco com a oferta da metade do brinquedo frente à situação de gravidade íntima-financeira que estava a conhecer, terá sido a prova de que uma amizade não tem preço.

Nem mil bicicletas pagariam o que ele fez por espontaneidade, o que me dá a certeza de que não há verdade maior que a amizade, na inteireza que o termo encerra.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Vereda da Poesia = Célio Grunewald (Juiz de Fora/MG, 1923 - 1991)



domingo, 13 de outubro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 58

  

José Feldman (Pafúncio e o Prêmio Nobel de Literatura)

 
Era uma noite de gala em Estocolmo, onde as luzes brilhavam intensamente e a expectativa estava no ar. O Prêmio Nobel de Literatura seria entregue, e Pafúncio Epaminondas, o jornalista da revista “Fuxicos & Fofocas”, foi enviado para cobrir o evento. Ele não tinha a menor ideia do que estava prestes a enfrentar, mas estava determinado a fazer sua cobertura ser a mais memorável de todas.

Vestido com um terno que mais parecia uma colcha de retalhos e uma gravata com estampas de frutas, Pafúncio entrou no elegante salão onde a cerimônia aconteceria. Ele olhou ao redor, admirando o luxo, mas também se sentindo um pouco deslocado. Afinal, ele estava ali para entrevistar os vencedores do Prêmio Nobel, e ele, que mal conseguia escrever uma frase sem errar, estava prestes a se encontrar com os maiores escritores do mundo.

Assim que chegou, Pafúncio se dirigiu a uma mesa onde estavam distribuindo os crachás aos convidados, premiados e jornalistas, recebendo um crachá. Então se deparou com um grupo de jornalistas renomados, todos vestidos impecavelmente. Ele respirou fundo e decidiu que precisava se misturar. 

Ao invés de ser discreto, acabou esbarrando na mesa de um buffet, derrubando uma bandeja cheia de canapés. Os petiscos voaram pelo ar como se fossem confetes, e ele, em um gesto de desespero, tentou agarrar um deles, mas acabou pegando uma taça de champanhe que, por sua vez, foi parar na cabeça de uma senhora idosa que estava perto.

“Desculpe! Aqui está seu novo penteado!” – Pafúncio exclamou, tentando ser engraçado. 

A senhora, com a taça ainda na cabeça, apenas olhou para ele com um olhar de reprovação.

Após esse início desastroso, Pafúncio se lembrou de seu verdadeiro objetivo: entrevistar os vencedores. Ele se dirigiu à área onde os laureados estavam sendo recebidos. O primeiro que encontrou foi um renomado escritor de romances, Odic Poesia, conhecido por suas obras profundas e filosóficas. 

Com um sorriso nervoso, Pafúncio perguntou: “Odic, se você pudesse descrever sua obra em uma fruta, qual seria?”

Odic, um tanto confuso, respondeu: “Uma laranja, porque é cheia de camadas.”

“E também azeda se você não a escolher bem!” – Pafúncio completou, sem saber se deveria rir ou se encolher. 

O escritor olhou para ele, um tanto perplexo, mas acabou sorrindo, aliviado por não ter sido ofendido.

Seguindo em frente, Pafúncio encontrou a ganhadora do Nobel de Literatura, uma mulher chamada Toda Prosa. 

Ele estava tão empolgado que, sem pensar duas vezes, soltou: “Toda, se você tivesse que escolher um animal para descrever seu estilo de escrita, qual seria?”

Toda, tentando manter a compostura, respondeu: “Talvez um pássaro, porque minhas palavras voam livremente.”

Pafúncio, em sua mente, transformou isso em uma manchete: “Toda Prosa diz que sua escrita é como um pássaro! Cuidado com as janelas abertas!” 

A escritora olhou para ele, sem saber se ria ou se se preocupava com a sua sanidade.

A cada nova entrevista, Pafúncio se sentia mais confiante, mesmo que suas perguntas continuassem absurdas. 

Ele encontrou um outro laureado, um autor de contos chamado Miguel Fábula. 

“Miguel, se você pudesse trocar sua pena por qualquer objeto da sua casa, qual seria?” Pafúncio perguntou.

“Uma colher,” Miguel respondeu, intrigado. “Porque eu adoro mexer nas coisas.”

“Então, você é um escritor que adora misturar ideias!” Pafúncio exclamou, anotando tudo. 

Miguel sorriu, mas não conseguiu esconder a confusão.

Após algumas entrevistas, um incidente inesperado ocorreu. Pafúncio, distraído enquanto escrevia suas anotações, tropeçou em uma cadeira e caiu, derrubando uma mesa cheia de flores que caíram como uma avalanche sobre ele. “Parece que estou sendo atacado por um buquê assassino!” ele gritou, enquanto tentava se levantar, coberto de pétalas.

Os jornalistas ao redor não conseguiam conter a risada, e Pafúncio, mais uma vez, se viu no centro das atenções. Ele decidiu aproveitar a situação e começou a improvisar uma performance, falando sobre “as flores da literatura” e como algumas eram mais traiçoeiras que outras.

Quando finalmente chegou a hora de se despedir dos laureados, Pafúncio percebeu que precisava fazer uma pergunta final que realmente deixasse uma marca. Ele se aproximou de Odic e perguntou: “Se a literatura fosse uma dança, qual seria e por quê?”

Odic, agora mais relaxado, respondeu: “Um valsa, porque é uma dança que exige tanto coordenação quanto imaginação.”

“Então, se eu me atrapalhar, posso chamar isso de ‘dança literária’!” Pafúncio completou, rindo de si mesmo.

Com sua cobertura cheia de perguntas malucas, incidentes hilários e uma quantidade inusitada de flores, Pafúncio voltou para a redação. Ele escreveu uma matéria que misturava a seriedade do Prêmio Nobel com seu estilo trapalhão, transformando cada entrevista em um momento de pura comédia.

Ao final, Pafúncio provou que, mesmo sem entender completamente o mundo da literatura, era capaz de trazer um sorriso ao rosto das pessoas. Afinal, a vida é uma grande história, e, como um jornalista de uma revista de fofocas, ele sabia que o mais importante era saber rir das próprias trapalhadas.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024

Silmar Bohrer (Croniquinha) 122


À medida que os anos passam muitas pessoas se aposentam e falam em se recolher com várias, sempre digo, desculpas. E o renunciar significa abandono voluntário, deixar em poder de outros, como no francês " laisser à bandon ". 

Não vamos esquecer que somos todos dependentes e encontramos pessoas que perdem a tramontana* quando ficam sem alguma atividade. Não sabem ou não entendem que a vida é um permanente renovar de afãs. Hora de restaurar ações, resgatar ideias, praticar outros conhecimentos. 

Nos seus pensares a atriz Andrey Hepburn escreveu que " as pessoas, mais do que objetos, precisam ser reparadas, revividas, animadas, chamadas e salvas - jamais jogue alguém fora ". 

Manter a calma - contar os dias como flores, não como sombras.
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* perdem a tramontana = perdem o rumo

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (O ‘x’ do problema)

 (samba, 1936) 
Compositor: Noel Rosa

Nasci no Estácio, fui educada na roda de bamba
E fui diplomada na escola de samba
Sou independente, conforme se vê

Nasci no Estácio, o samba é a corda
Eu sou a caçamba
E não acredito que haja muamba
Que possa fazer eu gostar de você  

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair   do Estácio é que é     
O 'x'    do problema

Você    tem vontade que eu abandone 
O Largo do Estácio
Pra ser a rainha de um grande palácio
E dar um banquete uma vez por semana

Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode crer que palmeira do Mangue
Não vive na areia  de Copacabana

Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá
      E felicidade maior neste mundo não há   
             Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
O 'x' do problema 

Já fui convidada para ser estrela
Do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é     
  O 'x' do problema

A Essência do Estácio: Identidade e Pertencimento em 'O X do Problema'
A música 'O X do Problema', de Noel Rosa, é uma celebração da identidade e do pertencimento ao bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Noel Rosa, um dos maiores compositores da música popular brasileira, utiliza a letra para expressar o orgulho de suas raízes e a importância da cultura do samba em sua vida. A personagem da canção, que se identifica como uma mulher nascida e criada no Estácio, destaca sua formação na roda de bamba e na escola de samba, elementos centrais da cultura local.

A letra também aborda a questão da autenticidade e da resistência às mudanças impostas por pressões externas. A personagem recusa a ideia de abandonar o Estácio para viver em um grande palácio, mesmo que isso signifique uma vida de luxo e glamour. Ela enfatiza que sua essência está profundamente enraizada no Estácio, e que mudar de ambiente seria como tentar fazer uma palmeira do mangue viver na areia de Copacabana. Essa metáfora reforça a ideia de que certas identidades são intransferíveis e que o verdadeiro valor está em ser fiel a si mesmo e às suas origens.

Além disso, a música reflete sobre a felicidade e o sucesso sob uma perspectiva diferente da convencional. Para a personagem, ser diretora da escola de samba do Estácio de Sá é a maior felicidade que ela poderia alcançar, mais do que ser uma estrela de cinema. Isso sublinha a importância da comunidade e da cultura local como fontes de realização pessoal e coletiva. Noel Rosa, com sua habilidade lírica, consegue capturar a essência do Estácio e transmitir uma mensagem poderosa sobre identidade, pertencimento e autenticidade.
Fonte: https://www.letras.mus.br/noel-rosa-musicas/862749/significado.html

sábado, 12 de outubro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Impulso canino)

ARABRUTO ACORDOU eufórico. Estava decidido. Aquele dia iria liberar seu lado cachorro. Desde que Anabela viera trabalhar em seu apartamento, na Belizário Pena, na Ilha do Governador, como secretária do lar, prestando os serviços mais variados, nas quintas e sextas-feiras, Arabruto desembestou, assim do nada, seu lado canino. Pôs na cabeça que dessa sexta-feira não passaria. Assim que a graciosa chegou, como sempre, bem vestida, arrebatada num meio-vestidinho que lhe deixava as pernas bem torneadas à mostra, o desregulado de sua cabeça degringolou de vez. O fato é que todo o conjunto da bela, em sintonia com o pecado carnal, deixava fora de órbita qualquer ser humano que não tivesse um pingo de juízo no cérebro. A musa suscitava uma visão danada para nenhum marmanjo colocar defeito. Arabruto, um desses manés que, desde que a moça aportara em sua casa, vivia engendrando uma maneira de pular em cima dela com a ferocidade devastadora que lhe consumia as entranhas. Seus instintos estavam, realmente, à flor da pele. O presente texto contará tudo como de fato aconteceu, sem tirar nem por.

— É hoje, é hoje que me esbaldo... – teria dito Arabruto pouco antes de partir para o tudo ou nada.  

Como sempre, no horário habitual, a deusa encantada chegou. Antes de se dar em serviço, interfonou da portaria. Arabruto atendeu. Sabia, antecipadamente quem se fazia do outro lado da linha. Se arreganhou em mesuras:

— Minha fofa, nem precisava avisar. Você é parte das boas coisas do meu dia a dia. Tem a chave. Bastava pegar o elevador e se pôr a caminho...

Anabela educadamente deu a resposta:

— Bom dia, seu Arabruto. Sua esposa me ligou e pediu para eu passar aqui na padaria. Falou que a última caixa de leite havia sido aberta. Aproveito e levo uns pães frescos...

— Ótimo, Anabela. Tem dinheiro?

— Quando eu for embora, no final do expediente, o senhor ou dona Isaltina me reembolsam... pode ser?

— Ok. Fechado.

Assim aconteceu. Quando a moça entrou pela única porta existente, ou seja, a da sala, Arabruto a esperava escondido deitado no chão, atrás da geladeira, camuflado de um jeito que ela não o veria, quando ingressasse na peça. Aquela se fazia a primeira vez que o seu chefe agia daquele jeito. Não deu outra. Anabela tomou, pois, em consequência, um susto grandioso. Sua reação, não poderia ser pior. Como nunca antes o desmiolado se escondera, ou brincara de se passar por um cachorro, e pior, latindo, e pegando nas pernas dela, à altura dos joelhos com as mãos à guisa de abocanhada de um totó encarniçado, o desespero da prestadora nota mil se fez pavoroso e inevitável. Anabela, em ato de se precaver, passou a mão no primeiro objeto que encontrou. Uma panela cheia de feijão em cima do fogão. Sem pensar duas vezes, meteu a sua arma de resguardo improvisada em ação e o fez com toda força de suas agilidades, atingindo diretamente os cornos de Arabruto. Em face do intempestivo, a moça deixou cair por terra o saco de pão e a sacola com a caixa de leite que trouxera consigo. 

Por conta dessa brincadeira desastrosa e não programada, e, claro, de estropiado gosto sinistro, Arabruto arranjou uns bons cortes e galos na cabeça, bem ainda nas costa e pernas. Caso passado, susto refeito, o resultado do vexame, atonou:

—  Seu Arabruto, me desculpa. Que baita susto! O que fazia metido aí nos fundilhos da geladeira?

— Esperando você...

— E para quê?

— Você sabe, não é de hoje prometi a mim mesmo lhe daria umas mordidas de brincadeirinha. Olha como você me deixou...

A moça obviamente espiou, mas nada disse a respeito do que presenciava. Aproveitando o ensejo, se defendeu:

— Eu não esperava essa atitude de sua parte. O senhor ficou maluco? Olha como lhe deixei. Meu Deus, vamos para o pronto socorro aqui da Ilha, logo ali na Estrada do Dendê. Está jorrando muito sangue. Rápido, preciso dar conta do serviço ou a sua esposa vai subir nos cascos e me botar de volta para Bonsucesso com passagem só de ida...

Entretanto, não deu tempo. Dona Isaltina, a mulher de Arabruto, por algum motivo incalculado pintou de volta, dez minutos depois, não comparecendo aquela manhã ao seu local de trabalho. Em face disso, deu com a empregada toda melosa, o vestido curto mostrando o que não devia, socorrendo seu marido, os dois acomodados no chão. 
 
Para engrossar o caldo, na justa hora do assomo na cozinha, Anabela tentava estancar o sangue do cocuruto e também dos olhos e queixo do abestalhado, com ele acomodado tipo uma criancinha desprotegida em seu colo de fundo rosa. E o desgraçado sem vergonha se aproveitando da situação, mantinha os braços envoltos em torno do pescoço da prestimosa. Esse flagra deu um baita “BO,” ou melhor, um tumultuado “BU” (Boletim Unificado), na 37ª DP da Ilha do Governador, na estrada do Galeão, uma vez que a empregada, coitada, precisou explicar, toda confusa, à sua patroa, pormenorizadamente os motivos do marido dela, ensanguentado estar literalmente atarracado em seus braços e nuca. Final da tragédia, prevaleceu a mordida de um cachorro vira-lata e seus latidos invisíveis que sequer existiram. Caso passado, início de noite desse mesmo dia, depois dos curativos no hospital, compra de remédios e mentiras sem pé nem cabeça, o casamento de Arabruto e Isaltina culminou em separação. Sumariamente despejado, o desditoso jogou no ralo um relacionamento de quase trinta anos. Sem saída, as tralhas jogadas no elevador de serviço, o doidivana se aquartelou, às pressas, na casa de uma filha casada (rebento advindo da união dele com a sua adorada Isaltina). Quanto a ela, tão logo recuperada do baque, trocou de empregada e continuou tranquilamente em seu cargo. Isaltina exercia a função de assistente de uma empresa de advogados famosos na Avenida Presidente Vargas, quase às barbas da Igreja da Candelária e realizava as suas habilidades, desde quando ainda nem pensava em se unir ao Arabruto.  

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Estante de Livros ("Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola", de Daniel Munduruku)

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma coletânea de contos do autor e educador Daniel Munduruku, que busca apresentar de maneira acessível e envolvente a cultura, as tradições e as vivências dos povos indígenas do Brasil. O livro é dividido em crônicas que misturam humor, crítica social e reflexões profundas sobre a identidade indígena e suas interações com a sociedade contemporânea.

As crônicas abordam diversas situações do cotidiano indígena, destacando a riqueza das tradições orais, a relação com a natureza e as questões enfrentadas pelos povos indígenas, como preconceito, desinformação e a luta pela preservação de suas culturas. Munduruku utiliza uma linguagem simples e direta, apropriada para o público jovem, enquanto insere elementos de crítica e reflexão sobre a realidade dos indígenas no Brasil.

Cada crônica é uma oportunidade para rir e refletir, instigando os leitores a questionar estereótipos e preconceitos. O autor também enfatiza a importância da educação e do respeito à diversidade cultural, propondo que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo um diálogo entre diferentes saberes.

Munduruku explora a identidade indígena de maneira multifacetada, abordando as diferentes etnias e suas particularidades. Ele destaca a riqueza das tradições, costumes e línguas, reafirmando a diversidade cultural dos povos indígenas. A identidade é apresentada como algo dinâmico e em constante construção, desafiando a visão homogênea que muitas vezes é imposta à cultura indígena.

O autor enfatiza a conexão profunda que os indígenas têm com a natureza, apresentando-a como um elemento central de sua cultura e espiritualidade. As crônicas ressaltam a importância da preservação ambiental e a sabedoria indígena em relação ao uso sustentável dos recursos naturais. Munduruku sugere que essa relação deve ser respeitada e aprendida por todos, promovendo uma reflexão sobre a crise ambiental contemporânea.

Uma das principais críticas do livro é à maneira como os indígenas são frequentemente representados na sociedade. Munduruku utiliza o humor para desmantelar estereótipos e preconceitos, mostrando que os indígenas são seres humanos complexos, com suas próprias histórias e desafios. O autor convida os leitores a refletirem sobre suas próprias percepções e a importância de uma abordagem mais respeitosa e informada sobre as culturas indígenas.

O livro propõe que a escola seja um espaço de aprendizado sobre as culturas indígenas, promovendo a diversidade cultural como um valor essencial. Munduruku defende que o conhecimento sobre as tradições e modos de vida indígenas deve ser integrado ao currículo escolar, contribuindo para uma educação mais inclusiva e consciente. O autor acredita que a educação é uma ferramenta fundamental para a transformação social e para o combate ao preconceito.

O uso do humor nas crônicas é uma estratégia eficaz para atrair o interesse dos jovens leitores. Através do riso, o autor cria um ambiente propício para a reflexão, permitindo que temas sérios sejam abordados de maneira leve e acessível. O riso é apresentado como uma forma de resistência e resiliência dos povos indígenas, que enfrentam desafios cotidianos com uma perspectiva otimista.

"Crônicas Indígenas para Rir e Refletir na Escola" é uma obra que vai além da simples narrativa; é um convite à reflexão crítica sobre a cultura indígena e seu lugar na sociedade contemporânea. Daniel Munduruku, através de sua escrita envolvente e humorística, desafia os leitores a se desapegarem de preconceitos e a abraçarem a diversidade cultural. O livro é um recurso valioso para educadores e alunos, promovendo um diálogo necessário sobre a identidade indígena, a relação com a natureza, e a importância da educação na construção de uma sociedade mais justa e respeitosa. 

A obra de Munduruku é um chamado à ação, incentivando a valorização das vozes indígenas e a necessidade de um espaço de aprendizagem que respeite e celebre a diversidade cultural do Brasil.

Fonte: José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Recordando Velhas Canções (Rasguei minha fantasia)


(marcha/carnaval, 1935) 

Compositor: Lamartine Babo

Rasguei a minha fantasia
O meu palhaço
Cheio de laço e balão
Rasguei a minha fantasia
Guardei os guizos no meu coração

Fiz palhaçada
O ano inteiro sem parar
Dei gargalhada
Com tristeza no olhar
A vida é assim...
A vida é assim...
O pranto é livre
Eu vou desabafar

Tentei chorar
Ninguém no choro acreditou
Tentei amar
E o amor não chegou
A vida é assim...
A vida é assim...
Comprei uma fantasia de pierrô

A Melancolia por Trás da Fantasia
A música 'Rasguei a Minha Fantasia', de Lamartine Babo, é uma obra que explora a dualidade entre a alegria aparente e a tristeza interior. A letra começa com o eu lírico declarando que rasgou sua fantasia de palhaço, um símbolo de alegria e diversão. No entanto, ao rasgar essa fantasia, ele revela que guardou os 'guiços' (sinos) no coração, sugerindo que a tristeza e a melancolia ainda estão presentes, mesmo que escondidas.

O segundo verso aprofunda essa dualidade ao descrever como o eu lírico fez palhaçadas o ano inteiro, mas com tristeza no olhar. Essa imagem é poderosa, pois mostra como muitas vezes as pessoas escondem suas verdadeiras emoções atrás de uma máscara de felicidade. A frase 'A vida é assim!' é repetida, enfatizando a resignação do eu lírico diante das dificuldades e desilusões da vida. Ele tenta chorar, mas ninguém acredita em seu choro, e tenta amar, mas o amor não chega. Essas tentativas frustradas reforçam a sensação de isolamento e incompreensão.

Por fim, a música termina com o eu lírico comprando uma nova fantasia de pierrô, outra figura tradicionalmente associada à tristeza e à melancolia. Isso sugere que, apesar de tentar se livrar da fantasia de palhaço, ele ainda está preso em um ciclo de tristeza e desilusão. A escolha do pierrô como nova fantasia é significativa, pois essa figura é conhecida por sua expressão de tristeza e solidão, contrastando com a imagem alegre do palhaço. Assim, 'Rasguei a Minha Fantasia' é uma reflexão profunda sobre a complexidade das emoções humanas e a dificuldade de encontrar verdadeira felicidade e compreensão.
Fonte: https://www.letras.mus.br/lamartine-babo/1877876/significado.html