quarta-feira, 23 de abril de 2025

Zitkala-Ša (O sapo e o menino)


As aves aquáticas sobrevoavam os lagos pantanosos. Era agora a época de caça. Homens indígenas, com arcos e flechas, vadeavam o arroz selvagem até a cintura. Perto dali, em suas tendas, as esposas assavam pato selvagem e faziam travesseiros de plumas.

Na maior tenda, estava sentada uma jovem mãe enrolando espinhos vermelhos de porco-espinho nas longas franjas de uma almofada de pele de veado. Ao lado dela, jazia um bebê de olhos pretos, arrulhando e rindo. Estendendo a mão e chutando para cima com suas pequenas mãos e pés, ele brincava com as cordas penduradas de seu pesado chapéu de contas, vazio, pendurado em um mastro da barraca acima dele.

Por fim, a mãe deixou de lado suas penas vermelhas e fios brancos. O bebê adormeceu profundamente. Apoiando-se em uma mão e sussurrando suavemente uma pequena canção de ninar, ela jogou uma capa leve sobre o bebê. Estava quase hora do retorno do marido.

Lembrando que não havia palitos de salgueiro para o fogo, ela rapidamente cingiu o cobertor bem na cintura e com um machado de cabo curto escorregou pelo cinto, ela correu em direção à ravina arborizada. Ela era forte e brandia o machado com a mesma habilidade de qualquer homem. Seu vestido largo de pele de gamo era feito para tamanha liberdade. Logo carregando facilmente um pacote longo de salgueiros nas costas, com um laço de corda sobre os dois ombros, ela veio caminhando para casa.

Perto da entrada, ela se abaixou, deslocando imediatamente o feixe para a direita e com as duas mãos levantando o laço sobre a cabeça. Tendo assim derrubado a madeira no chão, ela desapareceu pela tenda. Num momento ela saiu correndo novamente, chorando: "Meu filho! Meu filho pequeno se foi!" Seus olhos perspicazes varreram o leste e o oeste e ao redor. Não havia nenhum sinal da criança.

Correndo com os punhos cerrados até as tendas mais próximas, ela chamou: "Alguém viu meu bebê? Ele se foi! Meu filhinho se foi!"

"Hinnu! Hinnu!" exclamaram as mulheres, levantando-se e correndo fora de suas cabanas.

"Não vimos seu filho! O que aconteceu?" interrogaram as mulheres.

Com grandes lágrimas nos olhos a mãe contou sua história.

"Nós procuraremos com você", disseram a ela quando ela começou a andar.

Elas encontraram os maridos que retornavam, que se viraram e se juntaram para caçar a criança desaparecida. Ao longo da margem dos lagos, entre os juncos crescidos, pareciam em vão. Ele não estava em lugar nenhum. Depois de muitos dias e noites a busca foi abandonada. Foi triste, de fato, ouvir a mãe chorando em voz alta por seu filho pequeno.

Estava crescendo o final do outono. Os pássaros voavam alto em direção ao sul. As tendas ao redor dos lagos desapareceram, exceto uma tenda solitária.

Até que a neve do inverno cobrisse o solo e o gelo cobrisse os lagos, a voz da mulher lamentando foi ouvida daquele tenda solitária. De longe também se ouvia o som da voz do pai cantando uma canção triste.

Assim, dez verões e tantos invernos surgiram e desapareceram desde o estranho desaparecimento da criança. Todo outono com os caçadores vieram os infelizes pais do bebê perdido para procurá-lo novamente.

Perto da última parte da décima temporada, quando, uma por uma, as tendas foram dobradas e as famílias foram embora da região do lago, a mãe caminhou novamente ao longo da margem do lago chorando. 

Uma noite, do outro lado do lago de onde a mulher chorando estava, um par de olhos negros brilhantes espiou ela através dos juncos altos e do arroz selvagem. O garotinho selvagem parou de brincar entre a grama alta. Seus cabelos longos e soltos, que caíam sobre suas costas e ombros castanhos, estavam descuidadamente jogados para longe de seu rosto redondo. Ele usava um pano de lombo de grama doce tecida. Agachado até o chão pantanoso, ele ouviu a voz de lamento. À medida que a voz ficava rouca e apenas soluçava surgiu a figura esbelta da mulher, os olhos do menino selvagem ficaram turvos e úmidos.

Por fim, quando o gemido cessou, ele se levantou e correu como uma ninfa com dedos rápidos e estendidos. Ele correu para uma pequena cabana de juncos e gramíneas.

"Mãe! Mãe! Diga-me que voz ouvi e que me agradou os ouvidos, mas fez meus olhos ficarem molhados!" disse ele, sem fôlego.

"Han, meu filho", grunhiu um sapo grande e feio. "Foi a voz de um choro de mulher que ouviste. Meu filho, não diga que gosta. Não me diga que isso trouxe lágrimas aos seus olhos. Nunca me ouviste chorar. Eu posso agradar seu ouvido e partir seu coração. Ouve!" respondeu o grande sapo velho.

Saindo, ela parou na entrada. Era velha e muito inchada. Ela criou uma grande família de sapos pequenos, mas nenhum deles despertou seu amor, nem nunca a entristeceu. Ela tinha ouvido a voz humana chorosa, ficou maravilhada com a garganta que produziu o som estranho. Agora, em seu grande desejo de manter o menino roubado por algum tempo, por mais tempo, ela se aventurou a chorar como a mulher Dakota faz. Em uma rude, grosseira voz que ela falou:

"Hin-hin, pele de corça! Hin-hin, Arminho, Arminho! Hin-hin, cobertor vermelho, com borda branca!"

Sem saber que as sílabas do grito de um Dakota são nomes de amados que já se foram, a feia mãe sapo procurou agradar a orelha do menino com os nomes de artigos valiosos. Tendo gritado com uma voz torturante nomes extravagantes, o velho sapo revirava os olhos sem lágrimas grande satisfação. Voltando para sua casa, ela perguntou:

"Meu filho, minha voz trouxe lágrimas aos seus olhos? Minhas palavras trouxeram alegria aos seus ouvidos? Você não gosta mais do meu lamento?"

"Não não!" fez beicinho no menino com alguma impaciência. "Eu quero ouvir a voz de mulher! Diga-me, mãe, por que a voz humana me emociona!"

A mãe sapo disse dentro do peito: "A criança humana ouviu e viu a mãe verdadeira dele. Não posso mantê-lo por mais tempo, temo. Oh, não, não posso doar a bela criatura que ensinei a me chamar de 'mãe' esses muitos invernos."

"Mãe", foi na voz da criança, "diga-me uma coisa. Diz-me porque é que o meus irmãos e irmãs mais novos são diferentes de mim."

O sapo grande e feio, olhando para seus filhos rechonchudos, disse: "O mais velho é sempre melhor."

Esta resposta acalmou o menino por um tempo. A velha mãe sapo observou de perto seu filho humano roubado. Quando por acaso ele começou sozinho, ela expulsou um de seus próprios filhos atrás dele, dizendo: "Não venha de volta sem seu irmão mais velho."

Assim, o menino selvagem com o cabelo longo e solto senta-se todos os dias em uma ilha pantanosa, escondido entre os juncos altos. Mas ele não está sozinho. Sempre aos pés dele salta um irmão sapinho. Um dia um caçador indígena, vadeando nas águas profundas espiou o rapaz. Ele tinha ouvido falar do bebê roubado há muito tempo.

"Este é ele!" murmurou o caçador para si mesmo enquanto corria para sua tenda. "Eu vi entre os juncos altos um menino de cabelos pretos brincando!" gritou ele para as pessoas.

Imediatamente o infeliz pai e a mãe gritaram: "'É ele, nosso garoto!"

Rapidamente, ele os conduziu ao lago. Espiando através do arroz selvagem, apontou com o dedo trêmulo para o menino que brincava desprevenido.

"'É ele! É ele!" gritou a mãe, pois ela o conhecia.

Em silêncio, o caçador ficou de lado, enquanto o pai e a mãe felizes acariciavam seu bebê, que já estava alto.
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. Disponível em Domínio Público. (tradução do inglês para o português por Jfeldman)
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José Feldman (Um Homem e sua Luz)

Era uma vez, em uma cidade tranquila, um homem chamado Leônidas. Desde jovem, tinha uma grande paixão por aprender. Ele adorava ler e estudar, sonhando em um dia se formar em uma grande universidade. No entanto, a vida não foi fácil para ele. Quando chegou a hora de entrar na faculdade, as dificuldades financeiras o obrigaram a abandonar seus estudos, deixando-o desolado.

Apesar das frustrações, nunca deixou de apoiar sua amiga Clara, por quem nutria um amor silencioso. Clara era brilhante e ambiciosa, e ele sempre a incentivou em seus estudos, ajudando-a a se preparar para exames e oferecendo palavras de encorajamento. Ela se formou, e mesmo depois, continuou seus estudos, chegando ao pós-doutorado.

Um dia, Clara, já uma acadêmica respeitada, ia para um encontro com seus amigos formados. Com entusiasmo, Leônidas falou que ele poderia ir junto.

Clara, sem perceber a dor que estava causando, disse: "Leo, eu não posso te levar. Meus amigos são todos formados, e você... bem, você não tem uma faculdade. Não seria apropriado."

Aquelas palavras feriram-no profundamente. Ele se sentiu pequeno e desolado. "Eu sempre a apoiei", pensou ele, "e agora sou desvalorizado por não ter um diploma." A sensação de impotência tomou conta dele, e ele se afastou, angustiado.

Em sua casa, se sentou em uma velha cadeira, cercado por livros que sempre foram seus companheiros. Ele se dedicou a estudar por conta própria, criou até um blog, mas a angústia e a frustração o acompanhavam. Mesmo com todo o conhecimento que adquiria, a desvalorização de Clara o deixava triste e solitário.

Os dias se transformaram em semanas, e ele se isolou ainda mais. A única companhia que lhe restava era sua fiel cachorra, Bela. A cadela o seguia por toda parte, sempre lhe dando amor e apoio incondicional. Ele se sentia grato por isso, mas a solidão o consumia.

Clara, por sua vez, continuou sua vida acadêmica, cercada por amigos formados. Nunca conseguiu aceitar o fato de que Leônidas não tinha um diploma, e isso criou um abismo entre eles. Ele, mesmo com suas conquistas pessoais, viveu angustiado, sentindo-se invisível e desvalorizado.

A cada dia, ele se sentava com Bela, lendo em voz alta, como se estivesse ensinando sua melhor amiga. A cadela ouvia atentamente, como se entendesse cada palavra. Ele percebeu que, mesmo sem reconhecimento, a paixão pelo aprendizado ainda ardia dentro dele.

Com o passar do tempo, decidiu que, mesmo sozinho, continuaria a buscar o conhecimento e a compartilhar o que aprendeu com Bela. Ele percebeu que a verdadeira valorização vinha de dentro, e que, embora Clara não reconhecesse seu valor, ele ainda tinha a capacidade de se erguer e encontrar alegria nas pequenas coisas.

Moral da História
A desvalorização e a angústia podem nos isolar, mas o verdadeiro valor do conhecimento não depende da aprovação dos outros. Mesmo em solidão, cultivar a paixão pelo aprendizado e o amor verdadeiro, como a de uma amiga leal, mesmo que seja uma cadela, pode nos trazer paz e satisfação.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Poeta, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com uma escritora, poetisa, tradutora e professora da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, e depois em Maringá/PR desde 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Brasileira de Letras, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria e Voo da Gralha Azul. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Com a pulga atrás da orelha”


Essa expressão estar, ficar ou andar “com a pulga atrás da orelha” significa ter suspeitas de que alguém está aprontando alguma coisa contra você, que movido pelo “desconfiômetro”, se mostra cabreiro e desconfiado. 

Desde a mais remota antiguidade, o ser humano sempre foi e ainda tem sido vítima da pulga, pois antes não se conhecia nenhum veneno capaz de exterminar essa praga do ambiente doméstico, que se intrujava em todos os cantos, brechas e escaninhos das residências, hospitais, quartéis, escolas, repartições, empresas, cinemas e muitos outros espaços.

As pulgas estão entre os insetos que mais causam problemas ao ser humano e também aos animais. O nome vem do grego Siphon - sifão, e apteros - sem asas, pois as pulgas, embora desprovidas de asas, pulam cerca de 300 vezes a sua própria altura, o que as torna campeãs de salto, justificado sonho de qualquer atleta olímpico. 

No mundo todo podem ser encontradas mais de três mil espécies de pulgas e a cota brasileira nesse monumental acervo é de mais de 50 espécies, das quais quase 40 são encontradas no Estado de São Paulo. Extremamente prejudiciais à saúde, até meados do século XX a pulga era, sem qualquer dúvida, um problema muito grave, responsável por transmissão de doenças, aninhando-se em colchões, almofadas, armários e até nos cabelos das pessoas. 

Sua incômoda presença inspirou mundo afora as famosas “feiras da pulga” ou “mercado de pulgas”, muito comuns na Europa e EEUU, comércios de rua ou de espaços confinados, de caráter sazonal, onde se vendem produtos usados como roupas, livros, utensílios domésticos, brinquedos e móveis antigos que pelo bom estado em que se encontram, ainda podem ser negociados. Surgidas nos arredores de Paris na década de 1880, em seus primórdios as peças de vestuário comercializadas vinham infestadas de pulgas, daí a denominação que popularmente a consagrou mundo afora.

Se nas roupas já incomodam, imagine o desconforto de uma pessoa com um bicho desses atrás da orelha. O gesto de coçar a orelha quando estamos desconfiados, a modo quando nela está alojado o incomodatício bichinho, pode ser uma das explicações para esta corriqueira expressão.

Na Espanha, se diz “tener la mosca detrás de la oreja”. Em Portugal, "estar com a pulga atrás da orelha" demonstra que alguém tem suspeita em relação a algo ou a outrem, que lhe deixa intranquilo. Lá como aqui, é comum alguém dizer: "fiquei com a pulga atrás da orelha depois de ouvir a conversa".

Na literatura brasileira, a expressão aparece em vários livros, os mais conhecidos o de Christiane Gribel e o de Ana Elisa Ribeiro. No primeiro, a autora explica de forma divertida, as muitas falas engraçadas que os adultos usam, dentre elas, "estar com a pulga atrás da orelha".  O segundo conta a história de um menino curioso, que adora perguntar tudo para todo mundo. 

Na música popular, a dupla Tenório & Praense incluíu em seu vasto repertório a música “Com a pulga atrás da orelha”, cuja letra é tão irreverente como a de outra composição deles, denominada “Fui chifrado na internet”... 

José Cornélio dos Santos, em seu livro “Lembranças de um Obidense” (edição do autor, 1994, pág. 26) narra com bom humor a sua atribulada trajetória de menino pobre do interior até se tornar um vitorioso empresário em Belém, descrevendo assim essa sensação de desconforto emocional: “Durante pouco mais de um ano, os nossos negócios cresceram e os invejosos não se conformavam com o nosso sucesso, até que um dia o dono do prédio onde tínhamos a mercearia, resolveu pedir o mesmo, alegando que precisava do imóvel para uso próprio. Notamos que havia “algo no ar” e o nosso negócio começou a estremecer e tirar o nosso ritmo”. Ele não disse explicitamente, mas deixou subentendido que a desconfiança fez com que a pulga desse sinal de vida, atrás da orelha do saudoso escritor.

Realmente, essa angústia é recorrente quando existe “algo no ar” que nos aflige. E há situações em que esse sentimento expectante se torna comum em humanos e animais. Por exemplo, quando o pastor alemão da policia, olhos atentos, faro apurado e “com a pulga coçando atrás da orelha”, passa a esquadrinhar as malas na esteira de bagagem dos aeroportos. Quando isso acontece, esse bichinho incômodo também se instala atrás da orelha de certos passageiros, principalmente daqueles que, dando uma de espertos, resolvem arrostar o perigo de transportar às escondidas, coisas que a lei não permite…
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Enviado pelo autor
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segunda-feira, 21 de abril de 2025

Asas da Poesia * 9 *


Poema de
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçu/ SP

O amor que espero

Espero o amor que não vai chegar.
O amor que, parado à própria porta,
só enxerga mesmo seu próprio umbigo.

E, enquanto ele não me enxerga,
meu próprio amor, astuto, cega
estes meus olhos,
já meio cegos de nascença. Crença.

Dispo-me de tantas nuvens, 
mas o amor que já chegou
não me responde o que pergunto,
muda sempre para outro assunto,
como se o amor não fosse
importante, nem bastante
para se dizer que… sim.
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Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

A Cuca

Na noite enluarada um sussurro a soar,
a Cuca, a bruxa de olhos de fogo,
com seu manto escuro vem te atormentar,
dos sonhos das crianças é o eterno jogo.

Sonhos se desfazem sob seu olhar frio,
e o medo se espalha como sombra a dançar,
levando os inocentes ao mais profundo vazio,
na teia da noite, ela vem se enredar.

Mas sob a maldade há um lamento a ecoar,
histórias esquecidas de um amor a vagar,
que, mesmo em pesadelos busca a liberdade,

e assim, a Cuca tem sua dualidade,
guardando em seu ser um profundo pesar,
entre sonhos perdidos ela vai se ocultar.
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Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Sutil olhar

A nova era agora tão veloz
atinge os ares lassos de metais;
a quântica figura não é mais
o mito que atordoa a todos nós.

Os olhos deslumbrados por fanais
que buscam horizontes, antes sós,
percebem muito além de nossa voz
as vibrações sutis de mil sinais.

Desperta criatura limitada!
Aguça a tua aura dos sentidos;
o mundo ao teu redor é quase nada!

A nova era agora tem ouvidos;
o espírito retarda evolução
se olhar de uma segunda dimensão!!
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Poema de
YVES NAMUR
Namur/Bélgica

Figuras do muito obscuro (I)

Evita pois
Olhar no seio do visível

 E
Antes vê as coisas que não vês
E tudo isso que não ouves.

 Pois é aí,
Ao centro de “Nenhures”,
Que sempre o coração vai ter

 E
O passo do inesperado.

Porquê obstinarmo-nos a chamar ainda
Aquele que o não pode ser

E
Nunca há de poder regressar?

 Se não fosse para aumentar o vazio
E a nossa necessidade de ser na imensidão?
(Tradução: Fernando Eduardo Carita)
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Quadra  Popular

Vou tirar o teu retrato,
no tampo da minha viola,
o dia que não te ver,
teu retrato me consola.
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Poema de
JOSÉ FANHA
Lisboa/Portugal

Grito

De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.
De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor elétrica
do mais desvairado
coração.
De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.
De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.
De ti que domaste
o cavalo e os neutrões 
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.
De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.
De ti que levaste
a volúpia da ambição
a trepar ereta
contra as leis do firmamento.
De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansasse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluído lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.
De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Ah! Se eu morresse, querida,
sentindo os carinhos teus,
teria, na morte, a vida
que em vida pedi a Deus!
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Poema de
CZESLAW MILOSZ 
Seteniai/Lituânia, 1911 – 2004, Cracóvia/Polônia

Tão Pouco

Disse tão pouco
Dias curtos.

Dias Curtos,
Noites curtas.
Anos curtos.

Disse tão pouco,
Não tive tempo.

O meu coração cansou-se
Do êxtase,
Do desespero,
Do zelo,
Da esperança.
A boca do Leviatã
Engolia-me.

Deitava-me nu junto ao mar
Nas ilhas desertas.

Arrastava-me para o pélago
A baleia branca do mundo.

E agora não sei
O que foi verdade.      
(tradução: Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
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Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A musa chega e me inspira,
num delírio encantador...
Afina as cordas da lira
e enche o meu mundo de amor!
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Soneto de 
ANTÔNIO OLIVEIRA PENA
Volta Redonda/RJ

O caminho

Dize a palavra que te encerre o sonho,
aquela que resuma o teu desejo;
evita aquela de pesar medonho,
aquela de lamento malfazejo.

Dize a palavra que te encerre o sonho
com a mesma intensidade do teu beijo!
Evita o murmurar insano, e põe o
teu pensamento a trabalhar, que vejo

que aquilo que dizemos é que é ouvido,
ainda que o façamos em segredo...
— Não há palavra sem repercussão!...

Na estrada em que o homem vai, tão comovido,
seja de sua pátria, ou do degredo,
antes, por ela, andou seu coração!
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

O Tempo 

Aprendi que sou
dilúvio ou talvez 
brisa, a calmaria

quente, em uma noite fria.
Entendi que a vida usufrui
tudo que o instinto irradia.
Sou um ângulo forte, uma
luz que grita, na fotografia.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Ter razão

“Ninguém por ter razão já foi ao céu”!
Eu não duvido disso, pois de fato
Nada vale fazer louco escarcéu,
Se barulho não é prova do que é exato!

Quem teima pode ir é ao beleléu...
É um Infeliz com orgulho caricato,
Que o faz tão só ser dono de um troféu
De convencido, tolo e até insensato!

Impor nossa razão só por vaidade
E a qualquer preço, hora e até lugar
Talvez seja a maior boçalidade!

Importa é ter amor! Não, ter razão!
Vale a pena esta regra ponderar:
O amar faz muito bem ao coração!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Como foi, como não foi, 
conte dois que eu conto um... 
Num belo inglês, diz o boi, 
olhando a Lua: moon... moooon...
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Poema de
ULLA HAHN
Brachthausen/Alemanha

Pré- Escrita

 Esta Saudade
de te chamar pelo nome
Este receio
de te chamar pelo nome

 Esta saudade
de manter a palavra
Este receio
de apenas manter a palavra

 Esta saudade de uma vida
que não dê em poema
Este receio de um poema
que antecipe a vida.
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Trova de
MILTON SEBASTIÃO SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Se um pai se entrega à bebida,
ao filho desencaminha.
O mau exemplo é na vida
pior do que erva daninha.
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Soneto de 
HEGEL PONTES
Juiz de Fora/MG (1932 – 2012)

Devaneio

É noite de natal, estou sozinho
E escuto ela chegando passo a passo;
Entra no quarto e agora, de mansinho,
Afaga minha fonte e meu cansaço.

Ela fala das flores do caminho,
E ainda sem notar meu embaraço,
Fala de velhos sonhos, de carinho,
De um beijo antigo, de um antigo abraço.

E por falar comigo desse jeito,
Vai removendo amargas cicatrizes
E arrancando lembranças do meu peito.

Eu ouço e peço: “Cala-te saudade,
Não se deve dizer aos infelizes
Que algum dia existiu felicidade”.
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Hino de 
SÃO JOÃO DE MERITI/RJ

Desejando a lei conceber o progresso
De ver o Sol renascendo maior,
Fez ir ao berço da mãe gentil
São João transformado em cidade.
Do passado é memória na história presente
Para tecer um futuro melhor.
Continuamente, nosso dever
É guiá-lo crescendo e avante.

São João de Meriti é o nome da terra que louvamos!
O povo meritiense com áureos lauréis honramos!
Se tiver que partir eu irei onde a vida decidir!
Mas em meu coração levarei a bandeira de Meriti!

Sobre o chão dos "Tamoios" virou "Freguesias",
Nas sesmarias de "Iguaçu",
A produzir finas iguarias
Levadas nas águas do rio.
Tal labor construiu sobre tua presença
Templos à pura e exata razão
Enaltecendo a doce emoção
De quem ama, trabalha e pensa.

Que teu céu guarde o voo da sã liberdade
E que teu solo a permita correr.
Fartas virtudes possam chover
Sobre nossa querida cidade,
Pois ao imaginar não haver mais saída,
Quando a luz do final se apagar,
Quero chorar do amor que te sinto
Ao ver teu brasão acendendo.
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Quadra Humorística de
IDEL BECKER
Porto Casares/ Argentina, 1910 – 1994, São Paulo/SP

Tenho tosse no cabelo,
dor de dentes no cachaço,
sinto canseira nas unhas,
não vejo nada de um braço.
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP, 1866 – 1924

Corrida de amor

Quando partiste, em pranto, descorada
A face, o lábio trêmulo... confesso:
Arrebatou-me um verdadeiro acesso
De raivosa paixão desatinada.

Ia-se nos teus olhos, minha amada,
A luz dos meus; e então, como um possesso,
Quis arrojar-me atrás do trem expresso
E seguir-te correndo pela estrada...

"Nem há dificuldade que não vença
Tão forte amor!" pensei. Ah! como pensa
Errado o vão querer das almas ternas!

Com denodo, atirei-me sobre a linha...
Mas, ao fim de uns três passos, vi que tinha
Para tão grande amor, bem curtas pernas...
= = = = = =

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Se o homem abaixasse a fronte
com fé, respeito, humildade,
seria a Terra uma ponte
entre Deus e a humanidade.
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Recordando Velhas Canções
ACALANTO 
Elomar Figueira Melo 
(Vitória da Conquista/BA)

Certa vez ouvi contar
 Que muito longe daqui
 Bem pra lá do São Francisco, ainda pra lá...
 Em um castelo encantado,
 Morava um triste rei
 E uma linda princesinha,
 Sempre a sonhar...

Ela sempre demorava
 Na janela do castelo
 Todo dia à tardezinha, a sonhar...
 Bem pra lá do seu castelo,
 Muito além, ainda mais belo,
 Havia outro reinado,
 De um outro rei.

Certo dia a princesinha,
 Que vivia a sonhar
 Saiu andando sozinha,
 Ao luar...

E o castelo encantado
 Foi ficando inda pra lá
 Caminhando e caminhando,
 Sem encontrar.

Contam que essa princesinha
 Não parou de caminhar,
 E o rei endoideceu,
 E na janela do castelo morreu,
 Vendo coisas ao luar.
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José Feldman (Fábula da Águia e do Lobo)


Era uma vez, em uma vasta floresta, uma águia majestosa que voava alto nos céus. Seu voo elegante e sua plumagem brilhante a tornavam a rainha do céu. Todos os animais a admiravam por sua beleza e graça. A águia, com seus olhos afiados, caçava com destreza e se orgulhava de ser a mais poderosa das aves.

Em uma parte mais baixa da floresta, habitava um lobo astuto. Ele era forte e veloz, mas sempre olhava para cima, invejando a liberdade e a beleza da águia. O lobo frequentemente se queixava para os outros animais: "Por que a águia tem que ser tão especial? Por que ela pode voar enquanto eu fico preso ao chão?"

Os animais tentavam acalmá-lo, mas a inveja do lobo só crescia. Um dia, ele decidiu que não poderia suportar mais essa situação. “Se eu não posso voar como a águia, talvez eu possa fazer algo para que ela caia e me admire”, pensou o lobo.

E assim, começou a planejar. Ele se aproximou de uma árvore alta, onde a águia costumava pousar. O lobo começou a espalhar rumores entre os outros animais, dizendo que a águia era arrogante e que seu voo a tornava distante e desinteressada. "Por que devemos admirar alguém que se acha superior?" ele dizia.

Os animais, influenciados pelas palavras do lobo, começaram a olhar para a águia com desconfiança. A águia, percebendo a mudança na atitude dos outros, se sentiu triste, mas decidiu continuar vivendo sua vida, confiando em seu valor.

O lobo, satisfeito com o que havia feito, pensou que agora seria o momento perfeito para agir. Ele se escondeu sob a árvore e esperou a águia pousar. Quando a águia desceu para descansar, o lobo saltou em direção a ela, com a intenção de atacá-la.

Mas a águia, com sua visão aguçada, percebeu a movimentação e, antes que o lobo pudesse chegar perto, alçou voo novamente, pairando no ar e olhando para baixo. "Por que você me inveja, lobo?" perguntou a águia. "Eu não sou seu inimigo."

O lobo, frustrado, gritou: "Você não entende! Você possui tudo! A beleza, o poder, a liberdade! Eu só queria ser como você!"

A águia, com compaixão, respondeu: "Cada um tem suas próprias qualidades. Eu sou feita para voar, mas você é forte e ágil no chão. Em vez de me invejar, por que não usa suas habilidades para se destacar?"

O lobo ficou em silêncio, refletindo sobre as palavras da águia. Ele percebeu que sua inveja o havia cegado para suas próprias qualidades. A águia, com seu olhar gentil, continuou: "A inveja só traz tristeza. Se você usar sua força para ajudar os outros, encontrará respeito e amizade."

Finalmente, o lobo entendeu. Ele se desculpou com a águia e decidiu usar sua agilidade para proteger os animais menores da floresta. Com o tempo, ganhou respeito e se tornou um guardião da floresta, admirado por sua bravura e lealdade.

Moral da História

A inveja cega e corrói, mas reconhecer e valorizar nossas próprias qualidades traz verdadeira felicidade e respeito.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Eduardo Martínez (Santana, o sem noção)


Era mais uma diligência, entre tantas realizadas nos últimos quase 20 anos trabalhando na polícia. Santana, ao entrar na viatura, tentou empurrar o banco para trás na ânsia de acomodar a barriga proeminente. A colega, sentada ao lado, obrigava-o a encolher a pança, mesmo porque Santana ainda guardava certa vaidade, já que mal havia suplantado a barreira dos 50. Os cabelos, cada vez mais ralos, eram jogados para o lado. Que deprimente, como se ninguém  tivesse e notado a calvície reluzente. Ah, Santana, por que teimas em ser tão patético?
 
Lá ia o nosso quase estimado herói, apesar de possuir um distante perfil daqueles que costumam ser retratados no cinema. Santana não era um Clint Eastwood ou um Bruce Willis. Era evidente que ele estava fora de forma! Aliás, alguns professores de matemática poderiam até contestar tal afirmação, já que o redondo, ou melhor, a esfera também é detentora de uma forma. E tem até fórmula para que o seu volume seja calculado com precisão, apesar de que até o próprio Santana, certamente, não quisesse saber o resultado. "Já fui magro!", ele sempre dizia a mesma coisa para todos.

O caminho foi longo, pelo menos para o Santana, que não conseguia respirar direito tentando encolher a barriga. Todavia, a viatura acabou estacionando em frente à casa 28, cuja pintura há tempos se encontrava desgastada. Seria amarela ou branca? Talvez verde. Seja como for, esse era um detalhe que não precisava ser levado em conta. 

A colega prontamente desceu do veículo, enquanto Santana disse que iria fumar um cigarro antes. Ela nem deu bola e já foi conversar com a senhora de vestido florido, apesar de chorosa, à porta. Que alívio o Santana sentiu! 

Ele nem queria fumar, mas o hábito o fez colocar a mão no bolso e sacar um cigarro amarrotado. Ao mesmo tempo, por causa do tempo tentando esconder a pança, houve uma aglomeração de gases intestinais, que foram expelidos compassadamente. Infelizmente, para o Santana, soou-se certo estrondo, que fez a colega se virar para ele. Que vergonha, Santana!!! Ele até ficou temeroso em acender o seu cigarro, que já estava no canto da boca. Afinal, aquilo poderia se tornar um caso para o Corpo de Bombeiros.

Depois de dar umas abanadas com as mãos, o Santana criou coragem e acendeu o tal cigarro, que já apresentava certa umidade por causa do longo contato com os lábios. Deu uma copiosa tragada, olhou ao redor alguns curiosos. Empertigou o corpo, o que lhe causou certo desconforto na lombar. "Já fui atleta!", ele insistia em falar para os que ainda suportavam sua ladainha. 

O velho policial tentou puxar pela memória, mas não se lembrava da razão pela qual estava lá. Ainda assim, preferiu entrar na residência a fim de dar apoio à colega. Virou-se e foi em direção à porta.

Mal entrou na sala, avistou uma enorme televisão ligada, enquanto um velho, sentado no amplo sofá carcomido, parecia cochilar. A colega e a senhora conversavam na cozinha. 

O Santana, apaixonado desde criança por futebol, começou a prestar atenção na partida que era televisionada. Internacional e Santos pareciam travar uma batalha sem muito glamour. Não havia Pelé, não havia Falcão. Mas a paixão pelo esporte bretão fez com que o Santana perdesse qualquer timidez e, então, acabou por se acomodar ao lado do velho, no exato momento em que adentravam na sala a colega e a senhora. 

Sem se fazer de rogado, o Santana deu um leve tapa na batata da perna do velho e perguntou: "E aí, quanto está o jogo?". A colega e a senhora, que há pouco se descobriu viúva, olharam abismadas para a cena. O Santana acabara de tombar o defunto sobre seu colo.
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing