sexta-feira, 25 de abril de 2025

Asas da Poesia * 11 *


Trova de
ARTHUR THOMAZ 
Campinas/ SP

Nessa vida, hoje, eu vou indo
buscando um rumo na sorte.
pois sinto que estou seguindo
uma bússola sem norte.
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Soneto de
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA 
Ponta Grossa/ PR

Uma aurora chamada saudade

Telhado tosco, chaminé de barro
e um céu de aurora em tons de carmesim...
Esse é o cenário em que, tristonho, esbarro
quando a saudade vem tanger em mim!

Sobre a mesinha um maltratado jarro
guardava aromas vindos do jardim.
Ao pé do rancho, bois em frente ao carro
cujo destino era seguir sem fim...

E nessa aurora, no fervor da prece,
um nobre vulto agradecia a messe,
certo que Deus estava em cada grão...

Ah... Quem me dera ver mais uma vez,
de mãos calosas e morena tez,
meu velho pai... curvado em oração!
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Trova de
ELISABETE DO AMARAL AGUIAR
Mangualde/Portugal

Batem três horas na torre, 
é já tempo de dormir... 
mas a noite corre, corre, 
e eu fico a vê-la fugir…
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Soneto de
PLÁCIDO FERREIRA DO AMARAL JÚNIOR 
Caicó/ RN

Seu nome

Sua chegada foi na minha vida
A luz da aurora no nascer do dia,
Iluminando o lar, e ao ser um guia,
Sanar de vez, a minha dor sofrida.

Pôs no meu ser a sua fé contida
E do seu nome fez também poesia
Ao me dizer o mesmo com magia,
Fazendo eu crer em ter a paz florida.

É minha sorte tê-la aqui comigo
Em todo instante em que pra mim, se vem,
E ao confirmar seu nome em toda hora.

Pois no seu nome eu tenho o meu abrigo
E nele vejo a cor que a mim convém
Por ter alguém que tem o nome. Aurora...
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Trova de
OLIVALDO JÚNIOR
Mogi-Guaçú/ SP

Coração de agricultor 
tem mil ramas de beleza: 
cada uma tem valor 
porque preza a natureza.
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Soneto de
EDY SOARES 
Vila Velha/ ES

Alvorada

As maritacas abrem cantoria
nos manacás e pés de tangerina,
até que em rebeldia a sururina
avisa que o arrebol já se anuncia.

O monte... O pico envolto na neblina,
a aurora ganha um tom de nostalgia...
De pronto surge em meio à névoa fria,
o sol, como quem rasga uma cortina.

Raios de luz nas frestas da paineira,
chegam lambendo as folhas da roseira
e, aos poucos, seca o orvalho dos canteiros.

O céu abraça o sol que vem surgindo
e ao fim desse espetáculo tão lindo
o dia chega em passos sorrateiros.
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Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

A terra inteira secou!…
E, a dor me fez sofrer tanto,
que quando a chuva voltou,
tinha secado o meu pranto!
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Soneto de
MARIA MADALENA FERREIRA 
Magé / RJ

A acendedora da luz

O sol se foi:... A lua vem chegando:
Cada qual volta à sua moradia
- enquanto um sino - ao longe - vai lembrando
que é hora de rezar a "Ave-Maria":

As luzes vão - aos poucos - se apagando,
e um sono repousante se inicia
- o que nos faz sonhar - de vez em quando... -
que a vida é toda feita de harmonia:

E mal a impaciente passarada
anuncia o final da madrugada,
em sua costumeira algaravia,

um leve tom rodado - no horizonte -
vem revelar - antes que o sol desponte -
que... a AURORA anda a acender a luz do dia!!!
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Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

A lua, de vez em quando
fica um pouco sem brilhar,
para ficar “espiando”
dois pombinhos namorar!
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Soneto de 
FRANCISCO GABRIEL
Natal/ RN

Altar do amanhecer

Quando a noite abandona o firmamento,
nossa Lua da luz se divorcia;
é que a vida precisa de alimento
para fecundação de um novo dia.

No horizonte respira novo vento,
é que a Terra, entonando maestria,
engravida de Deus por um momento,
procriando uma nova poesia.

Surge a aurora pintando mil cantares,
irmanando universo, terra e mares,
na cantata de luz sobre o nascer.

Quando o Sol brilha em todos os lugares,
os cenários da Terra são altares,
aplaudindo outro novo amanhecer.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/ RS, 1932 – 2013, São Paulo/ SP

A grandeza imaginária
que todo vaidoso tem,
é uma estrela solitária
brilhando sobre... ninguém... 
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Hino de
SARAPUÍ/ SP

Sarapuí, Cidade da Paz;
da virtude e do labor,
tens a vida emoldurada na ordem;
no respeito e no humano calor.
Acesa tens a chama da fé,
definindo o teu perfil.
Ao cumprir o teu destino de glória,
avivas o ideal do Brasil.

Assim és Sarapuí,
cortejada pelos tropeiros.
Tornaste povo fecundo e operoso.
Sempre cordial e hospitaleiro.

Tens na flor do algodão,
bela e rica altiva estás.
Verdes prados ondulantes refletem;
seu vasto sentimento de paz.
A interpridez seu filho marcou,
na conquista de um lar feliz,
sua gente exalta e crê na família,
sonhando com o bem do país.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/ SP

Sem ter fortuna aparente,
sob a luz de um lampião
fui bem mais rica e mais gente
naquela casa de chão.
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Soneto de
MESSIAS DA ROCHA 
Juiz de Fora/ MG

Gênesis

Eu sei, amor, que, às vezes, me conduzes
em trevas densas por detrás dos muros,
onde as sombras se vestem com capuzes
e onde os frutos jamais ficam maduros.

Nas tuas mãos percebo, sempre, luzes
mas os dias se tornam mais escuros
e no calvário, em meio a tantas cruzes,
agonizam meus sonhos mais impuros.

Então, concebo um novo firmamento
e, na cruel solidão do pensamento,
forjo auroras nas noites tão vazias

e, por querer da escuridão o inverso,
lanço sonhos nas sombras do universo
e consigo dar vida a novos dias.
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Trova de
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba/SP

As reticências discretas 
do meu sofrer, a chorar, 
mostram mágoas tão secretas 
que eu não ouso revelar…
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Glosa de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/ PR

MOTE:
Da vida não quero a glória
que tanto engana e seduz.
Prefiro não ter história
a renunciar minha cruz.
Filemon Martins
São Paulo/SP

GLOSA:
Da vida não quero a glória,
prefiro a paz do meu ser,
que brilha em singela história,
sem necessidade de ter.

Que tanto engana e seduz,
mas deixa um vazio imenso,
no brilho que a alma reluz,
encontrando um novo senso.

Prefiro não ter história,
se a verdade não é pura,
um caminho em sua trajetória,
que traz firmeza e ternura.

A renunciar minha cruz,
aceito o peso da vida,
pois nela, mesmo em sua luz,
encontro a força querida.
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Trova
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Cresce a cidade… que pena…
crescendo, perde a poesia;
– na rua ninguém me acena,
ninguém mais me diz bom-dia!
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Poema de
RODRIGO ZUARDI VIÑAS
Porto Alegre/RS

Se eu partir antes de ti

Quero que isso aconteça
numa manhã tranquila
e agradável
para que o momento
seja eternizado
pela beleza do dia
e pelos sentimentos
que temos um pelo outro.
Ah, se eu partir antes de ti,
sei que, além de saudades,
manterás, por mim,
muito carinho e admiração.
A amizade que nos une
foi construída
com muito respeito, sinceridade
e companheirismo.
Ah, se eu partir antes de ti,
sei que me guardarás
como uma das tuas boas lembranças.
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Quadra Popular
AUTOR ANÔNIMO

Quero cantar, ser alegre,
Que a tristeza não faz bem;
Inda não via tristeza
Dar de comer a ninguém.
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Soneto de
JOSÉ RIOMAR DE MELO
Caucaia/CE

Meu verso

 Se meu verso te agrada, te conforta,
 Faz lembrar-te emoções que já viveste,
 Com algum deles talvez te comoveste,
 Ativando a esperança quase morta!

 É sinal que choveu na minha horta,
 Na emoção que a mim tu concedeste,
 Ao sentir que no verso que tu leste
 De euforia e de paz teu peito aborta;

 Entretanto se um deles não ressoa,
 Na fiel sintonia e te magoa,
 Na palavra ou na frase te feriu...

 Eu te peço perdão em tom profundo,
 Porque mesmo agradar a todo mundo,
 Jesus Cristo também não conseguiu...
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Trova de
DULCÍDIO DE BARROS M. SOBRINHO
Juiz de Fora/MG

Enquanto a gente descansa 
na metade de um caminho, 
um outro qualquer alcança 
a outra metade sozinho.
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Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Rima e graça
 
MOTE:
Eu sinto o vento que passa
portador de boa nova
enchendo de rima e graça
os quatro versos da trova.
Antônio José Barradas Barroso
(Parede/Portugal)

GLOSA: 
Eu sinto o vento que passa
a beijar , com seu carinho,
todas as flores da praça,
que encontra no seu caminho.
 
Esse vento é benfazejo,
portador de boa nova,
pois traz, a todos um beijo
de maneira sempre inova.
 
Mostra a sua força e raça
numa escala de alegria,
enchendo de rima e graça
a nossa amada poesia.
 
Esse vento  acaricia
e a cada instante  renova,
melhorando  na  poesia
os quatro versos da trova.
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Haicai de
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Couto/RJ

Ao ver no jardim
tua beleza e a da rosa
desejei as duas!
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Poema de
GONÇALVES DIAS
Caxias/MA, 1823 - 1864, Guimarães/MA

Canção do exílio
 
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas tem mais flores,
Nossos bosques tem mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
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Trova de
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes/PR

Da sua casa ao cartório 
apenas um quarteirão...
Dada a preguiça, o casório 
se fez por procuração.
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Endecha de
LUÍS VAZ DE CAMÕES
Coimbra, 1524 – 1580, Lisboa

Endechas à bárbara escrava

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo,
Já não quer' que viva.

Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais formosa.

 Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.

Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

 Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.

Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

 Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.

Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas Bárbara não.

Presença serena,
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda minha pena.

Esta é a cativa
Que me tem cativo
E, pois nela vivo,
É força que viva. 
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Geraldo Pereira (Saudades do Futuro)


Fosse vivo o meu pai e me encontrasse na Internet, com direito a alguns textos dos meus artigos publicados aqui neste espaço de jornal, não hesitaria e diria: “Invenção da mãe do cão!” E é isso mesmo: astúcia da modernidade! Os avanços são tantos e de tal maneira rápidos, que não há forma de atualização, senão a de frequentar a enorme teia virtual diariamente, buscando aqui e ali inovações da criação humana. De minha parte, confesso, tenho saudades do futuro, do que está por vir, do extraordinário desenvolvimento da ciência e da técnica. Quem nasce hoje não há de se admirar, mas quem assistiu a tudo isso, quem escreveu molhando a pena no tinteiro ou quem aprendeu datilografia e gastou horas e mais horas sentado nas bibliotecas, só pode viver numa perplexidade muito grande. É o meu caso!

Ora, quando era menino, ganhei de presente uma pena que tinha o cabo colorido, às custas de cordões encarnados, verdes e azuis. Uma beleza! Sentava-me em antigo e carcomido “bureau” para rabiscar sentimentos emergentes. Não sabia usar as vírgulas e os pontos, pior o ponto-e-vírgula, mas já tinha desejos e vontades, de amar e ser amado, sobretudo, razão dos meus devaneios. Com um imaginário de rara fertilidade, divagava em etéreas distâncias, fantasiando paixões. Depois, ganhei uma caneta Compactor, posta hoje em feiras de antiguidades, como se eu próprio já fosse velho, condenado à condição de fóssil. A seguir, quando entrei no Curso Científico, uma Parker 51, o máximo em termos de elegância masculina. Mas, aos 15 anos recomendou meu pai: “Matricule-se numa escola de datilografia! Você vai precisar! Talvez vá trabalhar no comércio!”. E na rua do Lima, com uma professora muito braba e feia, aprendi os segredos do teclado.

O tempo passou e eu não vi! Um belo dia me falaram do computador, dessa máquina de tantos poderes, explicando que tinha memória, isto é, que poderia guardar textos e outras formas de expressão humana. Até fotos, dizia amigo meu! Quando vi a grande rede virtual, antes mesmo dos avanços atuais da Web, francamente, fiquei encantado. Afinal, podia me sentar diante da telinha e pedir o assunto que desejasse, sem ter que me ater aos alfarrábios das bibliotecas, escolhendo o dia e a hora, livremente. Aí me animei e comprei o meu primeiro computador, que é como o primeiro amor, ninguém esquece. Aprendi a mexer sozinho, o que foi um erro, apaguei programas importantes e fiz deletar arquivos que não deveria, mas me habituei à novidade e não vivo mais sem a máquina e a rede!

Dia desses, porém, tendo enviado um E-mail à Inglaterra, onde reinava amigo meu, Jair de prenome, recebi de volta uma quase desaforada resposta: “Não me escreva mais! Não lhe conheço e não conheço Jair! Não me interessam as suas posições em relação ao sistema de saúde no Brasil!” Assinando a mensagem uma certa Jéssica. Preparei nova correspondência dizendo: “Desculpe! Não lhe escreverei mais! A máquina não se engana, mas o homem erra! O endereçamento não estava correto!” Fiquei surpreso quando vi a resposta da resposta: “Pode continuar a me escrever! Sou advogada e moro em Macau! Tenho 32 anos!” Fiquei entusiasmado, posso dizer. Mandei fotos do Recife e me referi às relações tupiniquins com a gente daquele lugar distante, mas um derradeiro E-mail me deixou paralisado: “Sou casada!”. Nada tinha escrito que pudesse ferir a sua situação marital, mas inibido assim, com afirmativa tão forte, esqueci a penitente. Talvez o marido, tomado pelos virtuais ciúmes, a tenha levado à drástica atitude de interromper essa nascente amizade. Quem sabe?

É difícil fantasiar como seria essa portuguesa largada pras bandas de Macau, se bonita ou feia, se arabizada ou não, mas é lícito pensar que toda mulher é bela, quando o sorriso largo enfeita a face e os olhos brilham irradiando as cores do arco-íris.

É por ai!
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Irmãos Grimm (A bota de couro de búfalo)


Um soldado que nada teme, também não se importa com coisa alguma, certa vez foi dispensado e, como nunca aprendera outro ofício não conseguiu arranjar emprego. Assim saiu a correr o mundo, vivendo da esmola de pessoas bondosas. Levava  nos ombros uma capa velha e nos pés um par de botas de couro de búfalo; era o que lhe havia sobrado. 

Numa ocasião em que estava a vagar pelo campo, sem prestar atenção por onde andava, perdeu-se numa floresta. E viu um homem bem vestido, com um chapéu verde de caçador, sentado num toco de árvore. O soldado cumprimentou-o, sentou-se na relva a seu lado e espichou as pernas.

- Vejo que usas umas botas finas; tão limpas que chegam a reluzir, - disse para o caçador. - Se tivesses de andar pelo mundo como eu, não duraram muito. Olha para as minhas; são de couro de búfalo e já prestaram muito serviço andando por toda espécie de caminhos.

Passando algum tempo, levantou-se e disse;

- Não posso demorar muito, a fome me toca para a frente; mas dize-me uma coisa, amigo "Botalimpa", para onde vais?

- Eu mesmo não sei, - respondeu o outro - estou perdido na floresta.

- É o que me acontece - falou o soldado - e como igual com igual forma um bom par, continuemos juntos à procura do caminho.

O caçador sorriu e partiram juntos, andando sem parar até anoitecer.----

- Não conseguimos sair do mato, – disse o soldado - mas vejo uma luz brilhar lá longe. Acredito que ali conseguiremos algo para comer.

Chegaram a uma casa de pedra; bateram e uma velha lhes abriu a porta.

- Procuramos um abrigo para a noite - disse o soldado - e algo para encher o estômago. O meu está vazio que nem saco furado.

- Aqui não podes ficar, - respondeu a velha - esta é uma casa de bandidos. Farão bem em afastar-se o mais depressa possível, antes que chegue o bando; se os encontram aqui, vocês estão perdidos.

- A coisa não há de ser tão ruim assim, - retrucou o soldado - faz dois dias que não como e me é indiferente se dão cabo de mim aqui ou se morro de fome no mato. Eu vou entrar!

O caçador não queria acompanhá-lo, mas o outro puxou-o pela manga do casaco, dizendo-lhe:

- Vem comigo; não irão matar-nos em seguida.

A velha ficou com pena deles e sugeriu:

- Escondam-se atrás do fogão. Se sobrar comida depois que eles estiverem dormindo eu lhes darei algo.

Mal se haviam escondido, entraram doze bandidos fazendo uma algazarra dos diabos. Sentaram-se à mesa, que já estava posta, e exigiram ruidosamente a comida. A velha trouxe um assado bem grande e os ladrões comeram à vontade. Quando o cheiro bom dos pratos chegou às narinas do soldado, ele disse ao caçador:

- Não aguento mais, vou me sentar à mesa e comer com eles.

- Isto nos custaria a vida. - retrucou o outro, segurando-o pelo braço.

Mas o soldado pôs-se a tossir bem alto, de propósito. Ao ouvirem aquilo, os bandidos largaram facas e garfos, levantaram-se de um salto e descobriram os dois atrás do fogão.

- Vejam só! - gritaram. - Estão aí, hein? Que fazem nesse canto? Que pretendem? São espiões? Esperem um pouco que logo vão aprender a dançar num galho de árvore.

- Calma, calma! - disse o soldado. - Estou com fome. Deem-me algo para comer, depois façam comigo que bem entenderem.

Os bandidos se entreolharam surpresos e o chefe do bando falou:

- Vejo que és corajoso. Bem...terás comida à vontade, mas depois vais morrer..

- Isso veremos! - respondeu o soldado. Sentou-se à mesa e principiou a comer sofregamente. - Irmão Botalimpa, vem comer! - disse ele, de boca cheia, ao caçador. - Hás de estar com tanta fome quanto eu e um assado melhor não encontrarás nem em casa.

O caçador, porém, não quis comer. Os bandidos ficaram olhando, assombrados, para o soldado e comentaram:

- Esse sujeito não fez cerimônia!

Daí a pouco o soldado disse:

- A comida está boa; falta, agora, um bom traguinho.

O chefe, que estava de bom humor, permitiu ainda isso e ordenou à velha:

- Traz uma bebida do porão e que seja das melhores.

O soldado desarrolhou a garrafa e dirigindo-se, com ela, ao caçador, disse:

- Presta atenção, amigo. Irás assistir a uma coisa espetacular. Brindarei à saúde de todo o bando.

Ergueu a garrafa, agitou-a sobre as cabeças dos bandidos e gritou:

- Á saúde de todos vocês, mas ...de boca aberta e mão direita para alto!

Mal havia pronunciado essas palavras, o bando inteiro ficou imobilizado, como se fossem de pedra; tinham as bocas escancaradas e o braço direito erguido. O caçador disse ao soldado:

- Vejo que és cheio de truques! Mas agora vem, vamos sair daqui o quanto antes.

- Pois bem, amigo! Isso seria bater em retirada cedo demais. Vencemos o inimigo e temos de nos ocupar da presa. Estão aí sentados, de boca aberta, e não se poderão mover até que eu permita. Vem, come e bebe.

A velha teve de trazer mais uma das melhores garrafas de vinho e o soldado não se levantou da mesa antes de ter comido por três dias. Finalmente, quando amanheceu, ele disse:

- Agora sim, chegou a hora de partirmos; e para não precisarmos andar muito, a velha nos mostrará o caminho mais próximo para a cidade.

Quando lá chegaram, o soldado foi procurar seus velhos companheiros e lhes contou:

- Encontrei lá fora, no mato, um ninho de pássaros para a forca. Venham comigo. Vamos apanhá-los:

Pôs-se à frente do grupo e disse ao caçador:

- Acompanha-me e verás como esvoaçam quando os pegarmos pelos pés.

Colocou os seus homens ao redor dos bandidos, apanhou a garrafa, tomou um gole e, agitando-a no ar, gritou:

- Vivam todos!

Instantaneamente  recobraram seus movimentos, mas logo foram derrubados ao chão e atados pelas mãos e pés. A seguir, o soldado mandou jogá-los no carro, como se fossem sacos e ordenou:

- Levem-nos diretamente para a prisão.

Enquanto isso, o caçador chamou um dos soldados à parte e lhe deu uma incumbência.

- Irmão Botalimpa, - disse o soldado - vencemos, felizmente, o inimigo e nos alimentamos muito bem. Agora marcharemos atrás do grupo com toda a calma.

Quando se aproximaram da cidade, o soldado viu que um número grande de pessoas vinha a seu encontro, dando gritos de alegria e agitando ramos verdes no ar. Viu, também, que toda a guarda real se aproximava deles.

- Que significa isso? - perguntou admirado.

- Não sabes - respondeu o caçador - que o rei esteve ausente muito tempo? Está voltando hoje e por isso todos vem a seu encontro.

- Mas onde está o rei? - indagou o soldado. - Não o vejo .

- Aqui. - respondeu o caçador. - Eu sou o rei e mandei anunciar minha chegada.

Abriu o casaco e embaixo apareceram suas vestes reais. O soldado assustou-se; caiu de joelhos e pediu perdão por tê-lo tratado, em sua ignorância, como a um igual e, ainda, por lhe ter dado um apelido. O rei, porém, estendeu-lhe a mão e disse:

- És um bravo soldado e me salvaste a vida. Não passarás necessidade novamente, pois cuidarei de ti. E se algum dia quiseres comer um bom assado, tão bom quanto aquele da casa dos bandidos, vem à cozinha do palácio. Mas, se quiseres fazer um brinde, terás de me consultar primeiro.
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Folcloristas e escritores de contos infantis, Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, no Grão-ducado de Hesse, na Alemanha. Receberam formação religiosa na Igreja Calvinista Reformada. Das nove crianças da família só seis chegaram à idade adulta. Os Irmãos Grimm passaram a infância na aldeia de Steinau, onde o pai era funcionário de justiça e Administração do conde de Hessen. Em 1796, com a morte repentina do pai, a família passou por dificuldades financeiras. Em 1798, Jacob e Wilhelm, os filhos mais velhos, foram levados para a casa de uma tia materna na cidade de Hassel, onde foram matriculados numa escola. Depois de concluído o ensino médio, os irmãos ingressaram na Universidade de Marburg. Estudiosos e interessados nas pesquisas de manuscritos e documentos históricos, receberam o apoio de um professor, que colocou sua biblioteca particular à disposição dos irmãos, onde tiveram acesso às obras do Romantismo e às cantigas de amor medievais. Depois de formados, os Irmãos Grimm se fixaram em Kassel e ambos ocuparam o cargo de bibliotecário. Em 1807, com o avanço do exército francês pelos territórios alemães, a cidade de Kassel passou a ser governada por Jérome Bonaparte, irmão mais novo de Napoleão, que a tornou capital do reino recém-instalado, Reino da Vestfália. Essa situação despertou o espírito nacionalista do romantismo alemão. A busca das raízes populares da germanidade estava em voga. Os irmãos reivindicaram a origem alemã para histórias conhecidas também em outros países europeus – como Chapeuzinho Vermelho, registrada pelo francês Charles Perrault bem antes do século XVII. No final de 1812, os irmãos apresentaram 86 contos coletados da tradição oral da região alemã do Hesse em um volume intitulado “Kinder-und Hausmärchen”, Contos de Fadas para o Lar e as Crianças. Em 1815 lançaram o segundo volume, Lendas Alemãs, no qual reuniram mais de setenta contos. Em 1840 os irmãos mudaram-se para Berlim onde iniciaram seu trabalho mais ambicioso: Dicionário Alemão. A obra, cujo primeiro fascículo apareceu em 1852, mas não pode ser terminada por eles. Faleceram em Berlim Wilhelm em 1859 e Jacob em 1863.

Fontes:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Carol Canabarro (Dicas de organização pessoal para escrita)


A organização pessoal para escrita é uma etapa fundamental no processo de desenvolvimento de um texto ou de um livro. As ideias não "caem" da cabeça do escritor direto para o papel, é preciso encontrar (ou criar) o caminho para transformar uma ideia em algo concreto.

Replicar estratégias que funcionam para outros autores pode ser um bom primeiro passo, mas cuidado: uma mãe-solo, com dois empregos provavelmente não conseguirá copiar a mesma rotina do Stephen King. É preciso se conhecer, estabelecer seu ponto de partida e aonde deseja chegar para encontrar, não só o seu caminho, mas a velocidade da marcha.

Para quem se encontra perdido, listamos seis dicas que podem te auxiliar a encontrar seu passo.

1. Quanto tempo você tem para escrever?

Identifique quanto tempo você tem para se dedicar à escrita. Seja honesto. Não se trata de estabelecer quantas horas por dia você gostaria ou quantas acha que seria o ideal escrever, mas quantas de fato você tem. Evite comparações. São trinta minutos diários? Uma hora a cada dois dias? Só consegue escrever aos finais de semana? Aceite seu tempo disponível e o respeite.

Evite distrações, nesse período a escrita é sua prioridade. Converse com as pessoas do seu convívio e estabeleça limites. Se precisar, tranque a porta do quarto. Quando necessário, faça pausas. Como na música, a ausência de som também faz parte da letra/canção.

2. Crie seu santuário

Tenha um local para escrever, de preferência, longe das distrações cotidianas. Pode ser no escritório, na mesa da cozinha ou em um caderno que pula da sua mochila enquanto você está no caminho para faculdade.

Transforme o espaço para escrita no seu santuário. Deixe caneta, papel, rabiscos e lembretes a mão. Quanto mais mergulhado no ambiente de trabalho, menores as chances do mundo à sua volta te raptar. Ser multitarefas pode ser assertivo em outros ambientes, não aqui.

3. Exercite a escrita

No mundo ideal, você gostaria de ter um escritório com vista para o mar, na prática, você só tem o bloco de notas do celular. Use-o. O possível feito é melhor do que o perfeito inexistente. Concentre suas anotações em um único local, quando você perceber terá mais material do que imaginava.

Tenha em mente que a escrita é exercício, um parágrafo não tão bom hoje, depois de maturado, pode vir a ser o trecho mais importante do seu livro. Seja paciente-ativo, confie no processo.

4. Estabeleça rituais

Depois de ter determinado o tempo, o local e a periodicidade, é hora de criar rituais para o antes, o durante e o depois da escrita. Entre no "espírito escritor", coloque café na sua caneca de estimação, silencie o celular, bote para tocar suas músicas preferidas, inspire-se lendo. Identifique os métodos que te fazem produzir mais. A maioria dos escritores começa a jornada de trabalho revisando textos do dia anterior, para só depois escrever algo novo. Talvez funcione para você.

Ao final do "expediente", viva. O mundo e as interações são as melhores matérias-primas para enriquecer suas histórias. Lembre-se: escritores são, também, grandes observadores do cotidiano.

5. Comprometa-se com o mundo

Estabeleça objetivos concretos, coloque prazos, inscreva-se em concursos e, o mais importante, divulgue-os para pessoas que você aprecia. O ser humano tende a ser mais responsável quando se compromete com terceiros do que consigo, não é à toa que malhar com uma amiga gera mais resultados do que ir à academia sozinho. Use a (possível) vergonha de não publicar seu livro até o final do ano, como prometido aos seus leitores, como catalisador das suas ações.

Ter metas é como soltar um rottweiler faminto no seu caminho. Se você tem medo de cachorro, abra vantagem e comece a trabalhar bem antes do prazo. Agora, se você gosta de aventura, a madrugada anterior a entrega do texto provavelmente será agitada.

6. Avalie-se constantemente

Você escaneou toda sua rotina, criou um espaço bacana para escrever, acendeu seus incensos, se comprometeu com a editora, mas algo, simplesmente, não funcionou. O conto, que era para ser entregue dia dez, está emperrado entre as suas orelhas. Aceite a derrota momentânea. Pesquise como outros escritores trabalham, use-os como inspiração e evite as pedras onde eles tropeçaram.

Revise sua rotina, identifique o que deu certo e onde a coisa degringolou. Avalie, reavalie, teste e, claro, não desista. Mantenha o foco no objetivo final, recalcule a rota sempre que necessário e melhore-se ao longo do processo.

O que serve para você pode parecer caótico para outros. Não há certo ou errado.

Lembre-se: escrever é um ato de solitude, momento de se sentir confortável na sua presença. Criar uma rotina traz segurança e, com ela a confiança e liberdade de ser você mesmo, um escritor único.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Aparecido Raimundo de Souza (Tango Revirado)


ERA UM DIA comum, desses em que o sol se esconde tímido atrás das nuvens. Eu estava em meu carro, um Air Cross prateado, indo buscar uma tia chata na rodoviária. Me via envolvido em meio de um trânsito infernal, quando tudo aconteceu. Engraçado que não houve luzes brilhantes. Nem anjos de branco tocando Roberto Carlos em harpas paraguaias. Do nada, soltei um suspiro suave, como se a própria vida, através deste gesto, se despedisse de mim. Lembro-me que, em passo seguinte, flutuei. Fui arrebatado como se meu corpo quisesse fugir evaporando de alguma forma daquele trânsito nervoso.  Flagrei-me subindo lentamente para o vértice da avenida, igualmente para acima das árvores e dos prédios. 

Num dado momento, olhei para baixo e vi o asfalto se afastando, ficando cada vez menor. Os carros, (alguns parados) outros continuando a sua dança, agora um pouco mais apressada, em meio ao tráfego caótico. O engraçado. A medida em que me aproximava de alguma culminância, sei lá onde, tudo abaixo de mim, se apartava. Cada um dos veículos ia ficando menor, as pessoas atravessando a rua em busca do seu próprio destino viraram pontinhos minúsculos. Em mim, não havia dor, nem ranger de dentes, nem fraqueza ou tremeliques. Apenas uma sensação tênue de liberdade plena. O espaço se agigantando, como se eu, finalmente, galgasse a imensidão escapando, sei lá por qual motivo, das amarras terrenas. 

Um pouco mais encontrei outros como eu. Almas perdidas, figuras vagando de um lado e de outro, sem rumo. Algumas criaturas sorriam, outras olhavam para todos os lados, como se procurassem uma resposta plausível para algo inexplicável. Crianças de várias idades choravam, outras brincavam. Todas, porém, entrelaçadas no mesmo plano, sem tirar nem pôr, compartilhávamos as mesmas dúvidas e incertezas: afinal, uma pergunta pesada, bailava sobre as cabeças e mentes, inclusive na minha: onde eu estava? Que lugar era aquele? O que viria depois? O que seria, raios me partam, o depois? Entrementes, num mágico silêncio, surgiu uma casa antiga. Na verdade, um casarão. 

Haviam várias portas e janelas fechadas. Uma delas, num dado momento, se abriu barulhenta, como se rangesse algum osso descalcificado em suas dobradiças. Além dela, surgiu uma luz. Uma claridade baça, meio descorada e ressequida O bastante para vislumbrar o que parecia ser um corredor comprido. Na verdade, isto mesmo, um corredor dilatado. Alguém sussurrou ao meu lado, que aquele acesso parecia ser a passagem para o além, com destino ao nunca mais. Para o nunca mais?  Hesitei. A bem da verdade, não estava pronto, nem preparado psicologicamente para cruzar a bendita, fosse para o além, ou para outro lugar qualquer. A vida, a minha vida, ainda pulsava nas veias. 

Alvoroçava lembranças, encrespava momentos vividos, pelo menos até poucos minutos atrás. Os abraços, os beijos, os momentos de risos e lágrimas dos “meus mais chegados,” pareciam, da mesma forma, e no mesmo grau revolucionarem todo meu interior e o faziam, num devaneio determinante e contundente, todavia, envencilhado numa leveza de espírito que até aquele momento eu nunca havia sentido. Veio-me, à cachola, um pensamento abestalhado. Quase desnorteado, ou melhor dito, idiota. Eu me via diante de um ingresso mal iluminado que levava a um corredor em direção ao “sei lá onde”.  Do mesmo modo, como poderia deixar tudo o que havia vivido por aqui, neste plano, à mercê do nada? 

Emparelhado a mim, um velhinho que lembrava meu avô João Raimundo, se aproximou. Seus olhos cansados, apesar de enfadados e descontentes, brilhavam enigmáticos. Resplandeciam com a sabedoria de quando eu o vira pela derradeira vez, isto coisa de mais de doze anos. Nesse embalo, me chegou aos ouvidos a sua voz meiga e adocicada. Foi um momento único que me inundou por dentro, quase num sopro a me destituir do som além do sagrado ato de respirar:  “A morte, meu garoto, enfatizou ele, não é o fim. É apenas uma mudança de estado. O estado de “Agora” e o estado do “Depois.” Você continuará aqui, e, em seguida, viajará para onde foi direcionado a seguir caminho.”

Fez uma pausa pequena e continuou: “Existirá, todavia, de uma forma ou outra, a sua massa corpórea em outra dimensão. E, quem sabe, talvez, o seu “eu” aparvalhado, por lá ou durante a viagem, faça com que a sua consciência pesada encontre respostas para as indagações que se formam em seus pensamentos embaralhados””. O longevo, do nada, sumiu. Escafedeu como se levado por um vendaval de magnitude branda na escala de um Richter qualquer, (não o Charles F Richter, inventor do aparelho que mede as ondas liberadas por um sismo). Esse Richter poderia ser um vulto abajoujado (abobado) e esquizofrênico, ou quem sabe até uma espécie de sombra na confusão dos meus abalos sísmicos interiores. 

Voltei-me, de novo para a porta.  Estava lá. Me encarando. Olhei para ela. Pareceu-me maior. Belisquei-me com força, para saber se ainda havia vida em meu “atormentamento” de alma em frangalhos. A meu lado, os que por ali me rodeavam, viraram pó. Ninguém permaneceu. Eu, aluado e leso, sozinho e desamparado, não flutuava mais, aliás, não via mais nada, além da droga da porta sisuda do corredor e da luz. 

– Cadê todo mundo? – gritei e ninguém respondeu. Concentrei-me, mais uma vez, nessa admissão. Ela, de fato, não parecia tão assustadora, pelo menos nesta espiada. Talvez fosse apenas uma via de passagem para um outro começo. Assim, com um suspiro maroto, tomei coragem. 

Segui adiante e atravessei. Mantive a cabeça erguida.  Afastei o medo. Despedi-me do receio. “Fiquem todos em paz” – disse aos meus botões.  Dito assim, ao acaso, não sei bem quem seriam, mas não importava, se aqueles ou aquelas que fosse me ouvir, ficassem, ou não, com saudade... que diferença isto faria?  Precisava dizer algo, ou melhor, carecia. E disse. A morte, ou sei lá o que me trouxera até aqui. Seria apenas um capítulo a ser vencido em minha jornada. Talvez topasse, de novo, com o idoso com cara de “meu avô”. Ou não. A nossa jornada, seja ela boa ou ruim, nos lembra da preciosidade da vida em toda a sua formosura e da importância de cada momento que vivemos.  Assim, sem eira nem beira, digo de peito aberto aos que ficam, que vivam intensamente abraçando ao mistério. 

Ao mesmo tempo, felicitando a beleza ínfima e imensurável de tudo aquilo que nos envolveu numa camada inesgotável, que nos assediou ao “Tudo,” e ao mesmo tempo, neste final de passos incertos, certamente nos enterrará ao separado do “Nada.” Ergui a cabeça e segui em direção à luz. Capturei passos adiante, um barulho de motor conhecido. Parecia ser o do meu avião, um Bombardier Learjet 45, jatinho bimotor todo escuro como o breu, a fuselagem e as asas negras. Fazia-me recordar, sempre que o via, um corvo gigante. A aeronave parecia estar pronta para alçar voo, em algum lugar no fim do passadiço esperando apenas que eu embarcasse. Escutei os motores das turbinas mais próximos. 

Realmente, em ponto de bala, me deparei, pressuroso, com meu brinquedinho de estimação. Como viera parar ali? Cadê os meus dois pilotos? Quem o trouxera do Campo de Marte? Fora do tal corredor, capturei as luzes azuis da pista por onde ele correria até o instante de fazer o 360, acelerar e decolar. Eu iria, de fato voar? Percebi, em mim mesmo, um sorriso de paz benfazeja, como se me tivesse estampado, corpo inteiro, num espelho inexistente surgido de última hora. Foi o tempo de entrar, apertar o cinto, e, no derradeiro seguinte, murmurar baixinho somente para meu coração escutar: 

– Adeus, matéria que vulgarmente cognominei de VIDA. 

No milésimo de segundo após dizer estas palavras, sai literalmente de dentro de mim e mergulhei na imensidão.  
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing