sábado, 2 de agosto de 2025

Asas da Poesia * 62 *


Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Tem muito mais graça a vida
quando a gente tem com quem
repartir bem repartida
a graça que a vida tem.
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Poema de 
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Pombinha meiga
''Mostra-me o teu rosto,
faze-me ouvir a tua voz." (Ct. 2.14)

Pombinha meiga de cor rosada,
Vem aquecer-me com teu calor!
Apaixonado estou, minha amada,
Por este cheiro que tens da flor.

Pombinha meiga de rósea cor,
Cristais dos olhos - cristais do mar,
Ó suave néctar - sublime amor,
Leva-me às nuvens para eu sonhar.

Pombinha meiga, tão cor-de-rosa,
De lábios dóceis, de viva cor;
Assim contemplo-te, ó carinhosa
Ternura amena cheia de amor!

Pombinha meiga de cor rosada,
Cândida lágrima cristalina,
Sonha comigo, musa esperada,
Sonha somente, rósea menina.
= = = = = = = = =  

Trova de
LUCÍLIA A. T. DECARLI
Bandeirantes/PR

Brotou cheia de confiança,
mas no tempo, que passou,
a minha verde esperança
pouco a pouco... desbotou.
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Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

Manhã

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
= = = = = = = = =  

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Eu, na vida, sou barqueiro
dos meus sonhos sem destino:
sonho bom é o passageiro,
sonho mau é o clandestino.
= = = = = = 

Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Minha majestade

Não deixes meu olhar dormir no teu,
Eu corro o doce risco de sonhar
A história linda e triste de um plebeu
Que foi pela rainha se encantar.

Não deixes meu o olhar se apaixonar.
O calabouço escuro de uma dor
É o final feliz de um sonhador
Que um dia descobriu o que é amar.

A ponte levadiça se fechou
E dentro do Castelo, eu percebi
Que em cada verde bosque onde vivi,
Não vi que a liberdade se escondeu.

Amei o teu olhar no meu olhar...
Narcisos é que amam refletir
Seus rostos, mas se o espelho lhes mentir,
Vaidosos, eles tentam se matar.

Se esse teu rei souber dos meus anseios
De amar sua rainha... hás de convir,
A sua espada em mim, há de brandir
E exterminar meus trôpegos enleios.

Mas mesmo assim, teu servo passional
Há de sonhar... Quem há de me impedir?
Que eu morra, vendo o teu olhar sorrir,
...assim, te tornarei mais imortal.

Se sou um camponês, que volte e voe...
Pois quem nasceu no bosque é passarinho
E quando o céu azul é o caminho,
Que eu busque em cada bosque que me abençoe.
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Trova de
LUIZ MONTEZI EVANGELISTA
Santos Dumont/MG

O porco acordou suando,
pois teve um sonho confuso:
- Sonhou que estava morando
com a porca... de um parafuso!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Chuva na praia

Se o céu trocar a chuva pelo sol
vai agradar e muito a todos nós
que estamos do arrebol ao arrebol
curtindo a praia à moda de arigós!

Garoa bem cerrada, igual lençol
encobre tudo, mais do que os torós
e faz com que seu manto de aerosol
nos deixe até com jeito de bocós!

Queremos ter um dia ensolarado
com a paisagem linda e o azul do céu,
curtindo o verde mar encapelado!

São Pedro tenha dó do interiorano;
chuva na praia é duro e bem cruel
para um sonho de sol e pouco pano!
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Trova de
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Lar vazio... o "nada" em tudo...
a vida sem mais porquê...
- E na sala, o piano mudo,
como fala de você!...
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Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Versos de Orgulho

O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém!

Porque o meu Reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos céus,
E os ouros e os clarões são todos meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em flor,
A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos meus braços:
Via Láctea fechando o Infinito!...
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Se além da sentida morte,
o sentimento vigora,
feliz dos restos mortais
que sobre eles se chora.
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Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

A madrugada jaz fria
no concreto da cidade
e teu corpo incendiado
aquece os lençóis vazios.
A flor grita, em euforia
nos canteiros agitados;
muda, sente calafrios,
chamas da maturidade.
= = = = = = 

Trova de 
JOSÉ VALDEZ DE CASTRO MOURA
Pindamonhangaba/SP

É machão! Que fortaleza!
Engrossa a voz e se zanga...
Mas, nos surtos de fraqueza,
fala fino e solta a franga !
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Oração ao despertar
 
Abrindo os olhos, Senhor,
para um dia a mais viver,
vejo a Luz de Vosso amor
abençoando meu ser.
 
Ponho-me assim na frequência
das Graças que do Alto vêm,
pronto a exercer a clemência,
buscando fazer o bem.
 
Que a fé me tire o desânimo,
o rancor, a impaciência;
deixe o coração magnânimo,
facho de amor por essência.
 
Pai, que durante este dia
eu tenha a oportunidade
de sustentar a harmonia
e de fazer caridade.
 
Nesta jornada, que eu veja
a todos como um irmão,
numa atração benfazeja
a promover compreensão.
= = = = = =

Trova de
DODORA GALINARI
Belo Horizonte/MG

Mais que migalha de um pão,
vai o faminto buscar
alguém que lhe dê a mão
que lhe permita... sonhar!
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Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

Caminhos do coração

Quando tudo acaba no coração da gente,
Ficamos em meio a um deserto,
Sem direção, tudo é vazio,
A alma treme exposta ao incerto.

Na ânsia louca de preencher o espaço,
A alma aflita pede socorro,
O corpo balança cai em qualquer braço,
Assim começa tudo de novo,

A falsa esperança mostrou o caminho,
Em seus braços findou-se o medo,
Enganou-se de novo com falsos carinhos.

Seguiu os passos para linda miragem,
Pisou as flores, morreu nos espinhos,
E o amor começa no mesmo caminho.

De novo o deserto,
De novo o incerto,
De novo os espinhos…
= = = = = = = = =  

Trova de
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Com fé no poder divino,
traço meus rumos assim:
jamais permito ao destino
fazer escolhas por mim!
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21)

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
= = = = = = = = = 

Trova de
LUIZ CARLOS ABRITTA 
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG

Eu te amo tanto, mas tanto,
que já pus num pedestal
toda glória desse encanto,
que se tornou imortal!
= = = = = = = = =  

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

Loucura verde

Nas longas noites em que eu me enveneno,
cigarro a espiralar sobre cigarro,
traz-me a saudade o teu perfil bizarro,
que eu não sei mais se é louro ou se é moreno.

Não é bem um perfil, mas um pequeno
alvoroço de névoas, um desgarro
de linhas onde, surpreendido, esbarro
com o teu olhar a me sorrir, sereno...

Depois teu vulto se dilui aos poucos,
mas teus olhos heris, como os dos loucos,
ficam parados, mortos, ante os meus.

— Verdes, curvos cristais, por onde eu vejo
monstros verdes passando num cortejo,
sob um sol verde como os olhos teus.
= = = = = = 

Trova de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Presidente Alves/SP, 1947 – 2025, Bauru/SP

Não há sorriso que emplaque
na comédia desta vida,
se na ironia da claque,
toda verdade é escondida!...
= = = = = = = = =  

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Caminhada

A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.

Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.

E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.

Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!
= = = = = = = = =  

Trova de
CONCEIÇÃO PARREIRAS ABRITTA 
Crucilândia/MG, 1934 - 2015, Belo Horizonte/MG

Ouço ainda a ressonância
das cantigas que cantei
nas tardes da minha infância
no jardim que eu tanto amei.
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Desejos

Queria ser 
o seu “tudo” na vida...
o caminho a percorrer,
os perigos a enfrentar,
o amanhã por nascer,
o sorriso 
do seu olhar.

Queria 
ser o seu 
agora;
o seu melhor 
momento 
de felicidade
e encantamento...

Queria, 
ser também,
a sua, 
esperança.
A sua alegria,
a sua ilusão, 
e fantasia.

Queria, 
finalmente,
estar em seu coração...
ser seu momento
de reflexão
na calma tarde 
refletida lá fora.
= = = = = = 

Trova de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP

Renúncia é uma ponte estreita,
onde das extremidades,
pode-se ouvir sempre à espreita,
chorando duas saudades...
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Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Desencanto
(Primeiro sonho de amor, 1944)

Personagens esparsos… pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham… o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

– Errei! Tinha as mãos de amores cheias…
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
“ sem nunca ter começo, teve fim”. (*)
= = 
(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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Trova de
HELENA DE BARROS BARBOSA MOREIRA
Bauru/SP

Outono, linda estação,
onde todos, neste mundo,
sentem a enorme emoção
de um renovar mais profundo!
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Cantiga Infantil de Roda
SAMBA LELÊ 

   Samba Lelê tá doente
Tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
É de uma boa lambada

Samba, samba, samba, ô Lelê
Samba, samba, samba, ô Lalá
Samba, samba, samba, ô Lelê
Pisa na barra da saia, ô Lalá
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Abrigo de todo o mundo,
tens, quarto, testemunhado
exaltação do feliz
e queixas do desgraçado.
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Poema de 
ANTÓNIO BOTTO
Concavada/Abrantes/Portugal (1897 – 1959) Rio de Janeiro/RJ

Tenho a certeza 
De que entre nós tudo acabou. 
- Não há bem que sempre dure, 
E o meu, bem pouco durou. 
Não levantes os teus braços 
Para de novo cingir 
A minha carne de seda; 
- Vou deixar-te, vou partir! 
E se um dia te lembrares 
Dos meus olhos cor de bronze 
E do meu corpo franzino, 
Acalma 
A tua sensualidade 
Bebendo vinho e cantando 
Os versos que te mandei 
naquela tarde cinzenta! 
Adeus! 
Quem fica sofre, bem sei; 
Mas sofre mais quem se ausenta!
= = = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Ousar não é ser valente
ao buscar gloria e poder.
Ousadia é quando a gente
humaniza o nosso ser!
= = = = = =

Carina Bratt (Por tantos caminhos percorridos, um me levou à vida que não vivi)

‘É sempre assim: quando você não está aqui, simplesmente eu me perco de mim...’
Aparecido Raimundo de Souza
EXISTE UM CANTO de terra que o mundo lá fora não conhece, um pedacinho de paraíso que mora inteiro dentro de mim. Fica ali, depois da porteira de madeira torta, onde o vento dança com os galhos da jabuticabeira e os passarinhos fazem reunião todas as manhãs. Esse pedacinho de chão se chama Shangri-Lá (nome dado por Apa*, tirado do livro ‘Horizonte Perdido,’ de James Hilton). Esse pequeno Éden não tem nome nos mapas, mas em compensação tem cheiro forte de café coado na hora e o som mavioso das risadas do caseiro (senhor Valdemar, da esposa dele, dona Diná e da filha adolescente, de 13 anos, a Liliane) e logicamente do Apa. Por falar no Apa, eu o flagro sentado na varanda espaçosa escrevendo as suas crônicas que misturam galinhas, porcos e vacas, cobras, cachorros e uma boa pitada de assombrações.

Esse chão tem calo, tem vida plena. Nele, meus pés sem meias e sapatos distanciados das ruas e avenidas da cidade grande aprenderam o peso da enxada e a leveza de correr descalça atrás das borboletas. Aqui, cada pedrinha que piso me conhece pelo nome. É onde meus sonhos germinaram sob o sol escaldante e floresceram com as chuvas teimosas. Mesmo quando vou embora, e me pego na Borges de Medeiros, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas, tendo como pano de fundo o Cristo Redentor, por testemunha, levo terra entre os dedos e nas solas dos pés. E nos dias em que o mundo parece grande demais, lembro do silêncio harmonioso do terreiro ao entardecer, quando tudo se acalma, e o céu vira um mar a se perder no meu horizonte de sonhos imorredouros. Shangri-Lá é como se fosse o meu pedacinho de chão. Está esquecido na sua pequenez, em meio do nada, mas em compensação é vasto em lembranças. 

É raiz, é abraço, é casa simples de salas e quartos espaçosos, de mesa farta, de boa comida, de esperança de dias melhores e recordações que não envelhecem. É onde meu nome ecoa com carinho e onde o Apa, com olhos de quem viu a vida inteira, ainda me chama melodicamente de ‘Doce Carina’ como se fosse bênção. Por aqui há um tempo em que o chão não é só terra: é memória. O meu, ‘eu’ se perde escondido, entre morros e silêncios, ao tempo em que se ergue como lembrança viva — feito álbum sem fotografia, onde cada cheiro, cada som, cada cor carrega uma história que pulsa e faz tremer o âmago da alma. E é aqui no terreiro enorme de chão batido, de terra virgem, que o seu Valdemar me ensina sem dar aula. Suas mãos calejadas dizem tudo. 

Não falam de mundo, falam de raízes. ‘A gente nasce pra pertencer’, ele diz, olhando longe, como quem conversa com o tempo. Hoje entendo: mais que um lugar, esse meu pedacinho de chão é ideia — é onde aprendi que existir é ocupar espaço com amor e simplicidade. Aqui, tudo tem alma. Até o fogão à lenha onde a senhora dona Diná mais a filha Liliane preparam o almoço parece respirar junto com a casa. E eu, me sinto menina, me ponho a correr atrás das galinhas e dos pintinhos, como se fosse uma peleja contra o tempo, sem saber que o tempo é o único que nunca perde. Estar aqui com o Apa foi descobrir que algumas distâncias não se medem em quilômetros, mas em saudade. Quando estou fora, seja na Lagoa, de frente para o Cristo, ou em Vila Velha, de frente para o mar, euzinha volto sempre em pensamento. 

Nesse regresso sinto o barulho das águas que descem e cortam a mata fechada. Sinto o cheiro do feijão e do arroz feito na hora, das batatinhas fritas ou da carne assada aquecida no fogo brando, e as gargalhadas que são feitas de som —, nessas horas em que me pilho distanciada, se tornam resplandecidas de eternidade. A gente por aqui aprende que há coisas que nunca se esquece… não porque quer lembrar, mas porque elas decidem morar para sempre dentro da gente, num lugarzinho secreto dentro do coração. Shangri-Lá ou melhor, meu pedacinho de chão é o lugar onde aprendi que a vida não cabe em manual. Descobri que há mais sabedoria num olhar demorado para o horizonte do que nos mais de três mil livros que tenho em minha biblioteca. Concluí que o chão não é só onde se pisa — é onde igualmente a gente volta, mesmo quando se está alguns quilômetros de distância.  

O longe se torna perto e o perto nesses momentos mágicos, renova, revigora, vivifica, engrandece a alma e põem o corpo inteiro em estado de pura levitação. Quando o Apa me leva junto, o meu todo se transforma. O meu âmago tem som de viola e cheiro de pão de forno. Essa localidade fica nas divisas do Espírito Santo, na bucólica e pequena Pequiá, com Minas Gerais, onde o sol madruga com a gente e o tempo corre devagarzinho, como quem não quer atrapalhar a conversa do terreiro. É pedaço de mundo onde o ‘bom dia’ vem com abraço e onde a gente ainda se senta no chão para prosear, com café preto ou com leite e pedaços de bolo de chocolate ou de fubá. O Apa — esse homem de fala mansa e olhos sabidos — costuma dizer que ‘terra boa é aquela que a gente não precisa explicar, só sentir.’ Nessas horas retorno à minha infância em Curitiba. 

Eu menina, mas na mesma sintonia, e o que por aquelas paragens vivi, por certo ficou plantado em mim igual muda de laranja —, a coisa cresceu sem que eu percebesse. Nesse cantinho de chão, imaginem vocês, as galinhas sabem o nome da gente, e o firmamento parece mais perto. É lá que o vento faz confidência com as árvores e a chuva cai com aquele barulhinho que embala lembranças adormecidas. Quando não estou lá, ou melhor dito, quando vou, mesmo que só em pensamento, parece que meu coração muda o passo — anda mais lento, bate mais firme. Tudo por lá tem um quê de eternidade: o cheiro de mato depois da chuva, o eco das risadas do casal de caseiros e da filha, as histórias inventadas da Dona Diná. E o seu Valdemar, sentado debaixo do abacateiro, diz para mim, ‘Cê sabe, Carina, que esse chão não é só terra... é onde as nossas alma descansa.’ E olhem... esse velho senhor de tantos janeiros sabe muito das coisas.

Shangri-Lá, todo ele, é feito de um silêncio que consola, de saudade que canta, de raiz que nunca arreda. Pode o mundo girar ligeiro como for — é lá, distanciado a poucos passos da BR 262 que eu deixo de ser eu, para ser gente. Por lá, não tem elevadores, senhas para abrir portas de apartamento, telefone celular para perturbar. Do mesmo modo, não existem cercas altas, nem relógio de pulso apressado. É caminho de barro vermelho, marcado por patas de cavalos e pegadas de quem vive com o tempo no modo certo: o do sol e do céu. Por aqui, tudo respira junto: as galinhas e os pintinhos que ciscam com agilidade, o velho senhor Valdemar e dona Diná que andam por toda a propriedade, um ao lado do outro, (cada um em seu cavalo) trotando devagar, acenando para os vizinhos com um chapéu surrado, e os ‘causos’ que se contam debaixo do pé de manga, sempre com alguém rindo antes de terminar.

O Apa diz que ‘ninguém precisa ser grande para ser feliz... só tem que caber bem dentro do próprio silêncio.’ E ele cabe. Se amolda na rede, se harmoniza na prosa, se infiltra no cheiro de terra molhada que vem depois da chuva — aguaceiro que lava o mundo e deixa tudo com gosto de recomeço. Nesse ‘pedacinho de tudo dentro do nada em lugar nenhum,’ a simplicidade é luxo. A gente sai de sainha curta, as pernas de fora, ora plantando feijão, ora colhendo verduras, enquanto espera o milho cozinhar e colhe uma fatia de amizade no varal da vizinha (a meio quilômetro da casa principal do Apa). O rádio antigo toca alto na varanda, um sertanejo ‘porreta’, enquanto Dona Diná mais a filha Liliane ajeitam os lençóis recém lavados no varal e conta que o galo Pafúncio fugiu ‘de novo’, em direção a rodovia 262, como se isso fosse notícia importante de jornal. Por aqui tem geladeira, fogão a gás, máquina de lavar, aparelhos de ar condicionado, vários televisores, rede de internet, wi-fi e também se encontram galhos do mais puro afeto espalhados por toda a extensão do terreiro. 

E mesmo quem chega em visita (vindo de Vitória, no Espírito Santo ou retornando de Minas Gerais) e depois vai embora, carrega lembranças do lugar nos olhos: se encanta com os cavalos soltos na pastagem, se apaixona pelo cheiro de esterco fresco, ou morre de rir das conversas quando atravessando a cerca de arame, por vezes, por puro descuido, acabam rasgando a camisa e a calça e o tempo... ah, o tempo sempre quieto, tranquilo e sereno, como deve ser. Por aqui não é só paisagem — é modo de viver. É gente que não quer ser estrela, nem faz questão de aparecer, tampouco ser o tal, somente acender a luz da cozinha para quem chega. É por essas bandas que todos me chamam de ‘a secretária perfeita, a metade faltosa do senhor seu Aparecido’ e fazem isso com um orgulho que vale mais do que meu diploma pendurado sobre o piano da minha sala. Estar aqui, em resumo, é ser chão que não pisa, mas sustenta. Por aqui, com o Apa (e às vezes com a neta dele, a Ellen), é me amoldar no próprio silêncio que diz tanto como explica tão pouco. Por essas bandas, no meio do nada, é reconhecer e eu acolho e percebo que há uma paz harmoniosa em ser inteira, em ser eu mesma, sem precisar me explicar a quem quer que seja. 
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(*) Apa – Forma como trato o Aparecido, desde quando passei a ser a sua secretária particular.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Trabalha como secretária particular e assessora de imprensa do jornalista Aparecido Raimundo de Souza, em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (Um Parque de Diversões não muito divertido)

Era uma tarde ensolarada quando Jorge decidiu levar seus dois filhos, Lucas e Ana, ao parque de diversões. Ele havia prometido isso há semanas, mas, para ser sincero, não estava tão animado quanto eles.

Lucas: — Papai, vamos no trem fantasma primeiro?

Ana: — Não! Eu quero ir na roda-gigante!

Jorge: — (pensando) Roda-gigante… tudo bem. Vamos começar por lá.

Ao chegarem, as crianças ficaram deslumbradas com as luzes e os sons do parque.

Ana: — Olha, papai! A roda-gigante é enorme!

Lucas: — E as montanhas-russas! Vamos nelas depois?

Jorge: — (sorrindo nervosamente) Primeiro a roda-gigante, então. Isso é… tranquilo.

Depois de uma longa fila, eles finalmente subiram na roda-gigante. Enquanto subiam, Lucas estava radiante, mas Jorge começou a suar frio.

Lucas: — Olha, papai! Estamos lá em cima!

Jorge: — (engolindo em seco) Sim, muito alto… Lindo, não é?

Quando chegaram ao topo, Lucas estava extasiado, mas Jorge olhava para baixo, imaginando o que aconteceria se ele caísse.

Lucas: — Papai, olha a vista!

Ana: — (pulando de alegria) É incrível!

Jorge: — (murmurando) Incrível… sim… muito bom…

Assim que desceram, Lucas estava pulando de alegria, enquanto Jorge respirava aliviado, pensando “Nunca mais quero ir na roda-gigante!”

Ana: — Vamos no algodão-doce!

Jorge: — (suspirando) Algodão-doce é bom. Vamos lá!

Na barraca de doces, Jorge pediu um algodão-doce gigante e dois sorvetes.

Vendedor: — Isso vai te custar caro!

Jorge: — Caro?  Porque? É só açúcar!

Vendedor: — Exatamente! E açúcar custa caro!

Enquanto pagava, Lucas e Ana estavam distraídos com um palhaço que fazia malabarismos.

Lucas: — Papai, eu quero aprender a fazer isso!

Jorge: — Primeiro, você precisa de um pouco de prática… e coragem!

Com as guloseimas em mãos, foram para a área de jogos. Jorge decidiu tentar a sorte em um jogo de arremesso de argolas.

Jorge: — Vou ganhar um prêmio para vocês!

Ele arremessou as argolas, mas errou todas.

Ana: — Papai, você não sabe jogar!

Lucas: — Deixa eu tentar!

Lucas pegou as argolas e, com toda a sua força, lançou uma. Acertou em cheio, mas não foi na garrafa, foi na cara do homem da barraca.

Lucas: — O que foi isso? Eu só queria ganhar um urso!

Homem da barraca: — E eu tenho cara de urso?

Jorge: — Desculpe, senhor. Vamos tentar mais uma vez, mas tenta não acertar este senhor… quem sabe?

Após várias tentativas, conseguiram ganhar um pequeno peixinho de pelúcia.

Ana: — Que lindo! Vamos dar um nome a ele!

Lucas: — Que tal “Nemo”?

Ana: — Não, “Peixinho Alegre”!

Lucas: — “Peixinho Alegre” é ótimo! Agora, que tal uma volta na montanha-russa?

Os olhos de Jorge se arregalaram.

Jorge: (pensando) Montanha-russa… será que eu consigo?

Lucas: — Papai, vem com a gente!

Relutante, ele decidiu acompanhar os filhos. Ao subir na montanha-russa, seu coração estava batendo mais rápido do que o trem.

Ana: — Isso vai ser incrível!

Lucas: — Vamos gritar juntos!

Quando o trem começou a descer, Jorge gritou mais alto do que todos, enquanto Lucas e Ana riam.

Jorge: (gritando) Isso é uma loucura!

Ao final do passeio, Lucas e Ana estavam gritando de alegria, mas seu pai estava mais pálido que um avental de médico.

Lucas: — Papai, você gostou?

Jorge: — (ofegante) Gostei… um pouco… talvez… nunca mais!

Ana: — Vamos de novo!

Jorge: — (com um sorriso forçado) Sério????

Lucas: — Que tal outra roda-gigante?

Após mais algumas voltas na roda-gigante, finalmente era hora de ir para casa. As crianças estavam exaustas, mas cheias de alegria.

Jorge: — E então, o que vocês acharam do dia?

Lucas: — Foi o melhor dia de todos!

Ana: — Podemos voltar no próximo fim de semana?

Jorge: — (sorrindo) Claro! Desde que a gente evite a montanha-russa…

Os três riram juntos enquanto caminhavam para o carro, já planejando novas aventuras, e Jorge pensava que, apesar do medo, o sorriso dos filhos valia cada grito e cada centavo gasto.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, Ubiratã/PR, Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Fontes: 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Rachel de Queiroz (O Amistoso)

Os visitantes ou adversários, convidados para aquela partida amistosa do chamado esporte bretão, chegaram festivamente num caminhão ornado de arcos e guirlandas. Sim, no começo tudo são flores. Flores e palmas, discursos, garrafas de cerveja, e os cartolas, que se distinguem dos demais presentes pelos bonitos ternos domingueiros, gravatas, chapéus de seda, como convém a legítimos paredros.

Não havendo no campo instalações de vestiário, os craques descem do carro já devidamente uniformizados — camisa de azul-turquesa, meias e chuteiras, sim, chuteiras regulamentares, que isso é jogo de fato e não pelada de moleques. Deficiências, se as há, é no campo propriamente dito, que seria ótimo se não sofresse de uma depressão bem no seu centro geométrico, exatamente onde se costuma riscar aquele grande círculo de giz. E como essa praça de esportes se situa numa baixada, sempre que chove apresenta o aspecto de um prato fundo cheio de água — e quando não é água é lama.

Naquele dia, felizmente, era apenas lama, e pouca. E sob os aplausos da assistência, tanto mais animada porque gratuita (ainda é um problema a resolver, esse da assistência em campo aberto, sem possibilidades de bilheteria). Juiz, jogadores, cartolas, reúnem-se um pouco de lado, pois que os paredros (dirigentes, líderes) estão de sapatos novos e aquela supracitada lama os assusta um pouco; faz-se o jogo, os visitantes pegam o lado sul que é o melhor, o presidente dos locais dá graciosamente o primeiro chute. Começou a partida!

1.° TEMPO

Xaveco, mulato, brevilíneo de canelas arqueadas, revela imediatamente a sua classe de grande artilheiro: tem fôlego, tem velocidade, tem cada tiro direito ou canhoto — tanto faz — que arranca aplausos frenéticos da torcida. Outra grande figura em campo é o goleiro dos visitantes. E o jogo vai indo muito bem, bola para lá e para cá, passe, cabeçada, chute a gol, gol — não, gol não, passou por cima da trave. O couro vai para Bira, Bira perde para um galalau amarelo dos “estrangeiros”, o galalau perde para Zico, Zico passa para Lucas, que perde para o capitão dos visitantes, um louro de gorro de meia. Aí Xaveco interfere na raça, toma a bola, o louro tranca, Xaveco dá-lhe uma carga, o louro acha ruim, revida, o juiz apita, os dois se agarram e por trás chega Bira, que é gordo e violento, e larga um pontapé no terço inferior da coluna vertebral do louro. Fecha-se o tempo, o juiz apita, a assistência pula a cerca e invade o campo, o pau começa a comer, mormente nas costas dos forasteiros, o juiz retira-se e se encosta à cerca, aguardando aparentemente que os ânimos serenem. Quem interfere são os paredros, austeros e educados, com as suas gravatas ao vento, chamam asperamente os craques à ordem, expulsam a assistência, interpelam o juiz, que relutantemente volta ao seu posto; aos poucos os craques se acomodam, o juiz apita, os paredros recolhem-se. O jogo recomeça.

Mas parece que o incidente estimulou os visitantes, que dão para jogar milhões. São uns húngaros. O time local perde terreno, o galalau passa a marcar Xaveco, que não dá mais uma dentro. E o diabo do louro tornou-se proprietário do balão, marca um gol de saída, depois o seu “secretário”, um crioulinho ligeiro que é uma faísca, marca o segundo tento; e aí Xaveco, desesperado (talvez dentro da área penal), atira uma canelada terrível no galalau, derruba-o, avança no crioulo, larga-lhe o salto da chuteira por cima do dedão, o crioulo grita, o louro acode, Xaveco já completamente louco lhe dá um tapa na cara, o juiz apita, uns gritam falta outros gritam pênalti, e um engraçado diz que foi só mãos, já que Xaveco apenas meteu a mão na lata do loureba.

O juiz continua apitando, parece que vai mesmo marcar o pênalti. E um torcedor local puxa o revólver, dizendo que aquele pênalti só se for passando por cima de algum cadáver. O juiz nessa altura se declara cheio com a partida e larga o apito ali mesmo. Um paredro fala que ele será expulso do quadro de árbitros e o juiz dá troco, que quadro de árbitros uma ova. Mas um dos bandeirinhas voluntários logo se apossa do apito, passa a dirigir o pessoal com surpreendente autoridade e, quando se vê, o jogo começa outra vez. Vai macio, vai de valsa, é um minueto, até que consultados os cronômetros verifica-se que acabou o primeiro tempo, passando-se ao recesso para em seguida dar início ao

2 ° TEMPO

que não houve, segundo passo a expor. Pois não vê que no Distrito havia uma queixa contra Bira — queixa dada por certa donzela que deixara de o ser por artes do craque. Bira escondera-se e só agora aparecia em público, atendendo a apelos da torcida, por tratar-se de amistoso importantíssimo. Mas a polícia, que não tem bandeira, aproveitara a ocasião e, antes que o réu pirasse, dava-lhe voz de “esteje preso”.

A assistência, entretanto, que de nada sabia, cuidou que a prisão se prendia à queixa dos visitantes por causa do pontapé de há pouco. E vendo Bira ser arrastado campo a fora, irrompeu num sururu dos diabos, vaiando as visitas com buus e nomes feios; as quais visitas, que tomavam Coca-Cola encostadas à cerca, vendo-se atingidas não só pelos doestos (provocações) como por pedaços de pau e tijolo, revidaram com as garrafas de refrigerante. O tempo fechou outra vez. Os polícias largaram o preso e se meteram no conflito. E quando os de fora começavam a apanhar feio, o motorista deles teve uma ideia: encostou o caminhão bem perto e tocou a buzina. A turma entendeu logo (ou quem sabe já era manobra habitual em “amistosos”?) e de um em um foram deslizando da briga e subindo para o carro. O que sei é que, quando os locais deram pela coisa, os inimigos já partiam numa nuvem de poeira, abandonando na pressa um dos seus paredros, malferido, com o sangue escorrendo do nariz e o belo terno roto.

Bira, igualmente, aproveitara a confusão para ir saindo de manso; agachado numa moita, lá em cima do morro, ficou a espiar o tintureiro chegar, encostar e, de um em um, recolher os remanescentes da refrega. E só saiu do esconderijo tarde fechada, quando no campo completamente deserto uma garça vinda do Jequiá sobrevoava o alagado, bicando restos das flores do buquê ofertado pelos visitantes.
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RACHEL DE QUEIROZ foi uma das mais importantes escritoras brasileiras do século XX. Pertencente à geração modernista de 1930, também trabalhou como jornalista e foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1910 e ali viveu até os cinco anos de idade. Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em virtude da terrível seca que assolou o Ceará em 1915. Em 1917, mudou-se para Belém/PA e, em 1919, retornou para o Ceará, onde fixou residência. Iniciou sua carreira jornalística escrevendo para o jornal O Ceará quando tinha apenas 17 anos. Aos 19 anos, começou a escrever, em segredo, o romance que a tornaria conhecida como escritora: O Quinze. Com a publicação do livro, em 1930, a autora tornou-se nacionalmente conhecida e ganhou o prêmio da Fundação Graça Aranha. Em 1964, integrou o Conselho Federal de Cultura e o Diretório Nacional da Arena, partido político de sustentação do regime militar. Além do prêmio da Fundação Graça Aranha, a escritora também ganhou diversos outros prêmios, como o Prêmio Jabuti de Literatura Infantil, em 1970, e o Prêmio Camões, a maior honraria dada a escritores de língua portuguesa, em 1993. Rachel de Queiroz faleceu em 2003, no Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade. 
No começo de sua carreira, nos romances O Quinze (1930) e João Miguel (1932), a autora alinha-se a escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, em uma escrita voltada para o regionalismo, denunciando a seca nordestina, a miséria, a desigualdade e indiferença dos poderosos diante da penúria do povo. Em 1937, escreveu Caminho de pedra, romance notadamente com inclinações políticas de esquerda, escrito enquanto a autora estava presa durante a ditatura de Vargas. No romance As três Marias (1939), a autora apresenta um estilo mais intimista, com uma narração voltada para o psicológico das personagens, tematizando a adolescência feminina. Além dos romances, a autora também escreveu peças de teatro, livros infantojuvenis e, principalmente, dedicou boa parte da vida escrevendo crônicas para jornais. Em 1992, Rachel de Queiroz publicou seu último romance, Memorial de Maria Moura, livro que conta a saga de uma cangaceira nordestina. Dois anos depois da publicação, a obra foi adaptada para uma série de televisão.

Fontes:
O Melhor da Crônica Brasileira. RJ: José Olympio, 2000.

José Francisco Cagliari (O Desabafo de um Lápis Preto)

– Olá, meu nome é John Faber; sou filho de dona Madeira e do senhor Grafite. O nome estrangeiro não é mania de grandeza não. Aliás, grandeza é o que eu não tenho. Além de ser magrinho, eu sou daquele tipo que ao nascer começa a ficar pequeno, ao invés de crescer.

Sou negro, mas não sofro com problemas de preconceito racial ou, pelo menos, não sofria até pouco tempo.

Meu avô sempre me contava suas histórias. Ele nascera e já começara a trabalhar num escritório. Lá ele fazia de tudo: escrevia cartas, fazia anotações, desenhos, contas. O que não fazia era assinar cheques; não tinha autoridade para isso. O pior, segundo ele, era trabalhar tanto e, quase sempre, a senhorita borracha desfazer tudo. Meu pobre avô se cansou e morreu. Depois de muitos “desapontamentos”, não aguentou e sucumbiu vítima de uma gilete. Ele, que sempre esteve com os papéis, acabou embrulhado no lixo. A senhorita borracha também faleceu, vítima do “desgaste” e do stress.

Eu, como sou novo ainda, não tenho emprego, mas creio que as coisas ainda vão piorar. Meu pai foi despedido. É que o chefe contratou uma lapiseira, e agora nós somos considerados obsoletos. Minha mãe está perdendo o lugar para o plástico. Minha irmã, a caneta, está passando muito mal. A tinta acabou e não há ninguém para doar para ela. Assim, a nossa geração está sendo “apagada” do mapa. E pensar que se não fossem meus ancestrais, Castro Alves não seria ninguém. É, a vida está dura. Bem que meu avô dizia: “ser um lápis é um risco”.

Fontes:
I Concurso Literário/ Associação Paulista do Ministério Público. 1.ed. São Paulo: Edições APMP, 2010. p.49
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Lino Mendes (Baú de Memórias) A Serração da Velha

Trata-se de uma tradição muito antiga, datada possivelmente do século XVII e que se festejava  na noite de quarta-feira da terceira semana da “Quaresma”.

Era, como se deduz uma festa pagã, hoje quase desaparecida no nosso país, festejava-se de maneira diferente de terra para terra, tendo como ponto comum, o “testamento”.

Mas, o que simbolizava  a “Serração da Velha”?

Dizem uns que com a mesma se pretende” celebrar o renascimento da Natureza e a expulsão dos demônios do inferno”, enquanto outros referem tratar-se de “um rito de expulsão da morte,” ou mesmo de “ um ritual de passagem mercado pelo desejo simbólico de renovação”.

Terras havia onde as “serradas” eram as velhas que acabavam de ser “avós” ou solteironas que ainda” queriam casar”. Na maioria as pessoas de idade  nem apareciam à janela e quando o faziam era para lhes dar troco, atirando-lhes com um balde água e não poucas vezes urina. Mas também havia quem lhes abrisse a porta, lhes oferecia qualquer coisa, evitando assim a “serração”. Claro que o boneco que simbolizava a velha era queimado no final.

Talvez possamos definir a “Serração da Velha”— nalguns lados também chamada de “ Serra da Velha” e “Serra das Velhas”—“como  o enterro do  Inverno e o início da Primavera”, que marca um interregno lúdico no calendário religioso.

E em Montargil, como era?

Não temos muitos elementos, diremos mesmo que temos poucos. Que me  lembre, não havia “boneca”, recordo-me vagamente, de uma “serração”, feita   há uns cinquenta /sessenta anos. A garotada fazia barulho, com matracas ou batendo em tábuas, ao mesmo tempo que diziam os seguintes versos:

Serre-se a velha “Barrinha”
lá do outro lado da ribeira,
Onde está a comer perna de burro
Pensando que é farinheira.

Mas o Freitas. Mais velho uns anitos, diz-nos que batiam em latas fingindo que iam a serrar, e lembra-se ainda de duas quadras:

Serre-se a Angélica do Zé Mestre
que ela está a roer num pau;
deixou tudo aos Bexigas
não deixou nada aos carapaus.

 Serre-se a velha Maria Luísa,
serre-se e torne-se a serrar,
porque ela tem ossos tão duros,
que nem a serra quer entrar.

Como se pode ver pela segunda quadra, a “serração” incidia algumas vezes em casos da vida real. Mas o que mais uma vez é evidente, certo que desconhecendo os costumes das terras vizinhas, é a enorme diferença em relação a outras terras.

Não há boneca que no final seria queimada, o que aqui acontecia durante a queima dos “compadres”  e das “comadres”; não havia testamento, o que por aqui se verificava no final do “Enterro do Entrudo”. E por falar em testamento, e quando não se fazia o “enterro”, o senhor “António Júlio” também aparecia no Outeiro apregoando as “ deixas” que de maneira satírica” contemplavam algumas figuras da terra.
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Lino Mendes é folclorista de Montargil/ Portugal. Administrativo responsável durante vários anos da Segurança Social em Montargil. Vereador do Município de Ponte de Sor. Diretor da rádio  em Montargil. Músico executante nas Bandas de Montargil e Abrantes. Delegado Distrital da Associação Portuguesa de Teatro de Amadores. Colaborador de dezenas de jornais e colaborador de diversas rádios, tendo sido cronista de Rádio Renascença (Évora). Colaborador do jornal Folclore.  Conselheiro Técnico Regional para Alentejo da Federação do Folclore Português e da Associação de Folcloristas  do Alto Alentejo. Realizou a investigação etnocultural da freguesia de Montargil. Diploma e Medalha Grau Ouro— como reconhecimento pela dedicação e fidelidade ao Folclore Português – 2009. Medalha da Câmara Municipal de Ponte de Sor. Medalha da Casa Portuguesa de TROYS – França. Prémio Excelência  do jornalismo por Serviços prestados ao jornal SOL PORTUGUÊS Toronto Canadá – 2010;2011;2012;2013 e 2014. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor. 06.04.2013
Dados Biográficos = Edições Vieira da Silva 
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Helena Parente Cunha (O Pai)

Aquele cansaço de existir, aquela gosma impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo um gesto a se estender no ar, ela parada na porta, nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo, há quanto tempo a última alegria? o último sorriso? cansaço, esforço inútil de respirar, gosma grudando o ar e a parca luz do quarto fechado, cada um na sua bolha fofa e fria, frágil fio por partir num sopro.

O pai parado na porta entre o quarto e agora. Por que você chegou tarde? Onde já se viu moça de família na rua a estas horas? Você sabe que horas são? Há anos são dez horas da noite, nunca mais amanheceu. Quem é aquele vagabundo que estava com você na saída da escola? A manhã inteira esfregando a saia de flanela azul pregueada no banco, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, no universo nada se perde, tudo se transforma. Tudo se transforma em quê? Quem é aquele sacana que estava com você na saída da escola? A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola. Diante da turma, que vontade de mandar todos os alunos para aquele lugar, que horror, de que adianta ensinar o teorema de Pitágoras? As meninas esfregando nos bancos as calças blue jeans, o que é cateto? Já pensou, o quadrado do cateto?

O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado que lhe deu carona? São dez horas da noite no universo inteiro e tudo se transforma em triângulos exatos. Quem é aquele… Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até quando você vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe, pai, papaizinho, eu rasguei meu vestido brincando no quintal, desculpe.

O pai parado na porta, entre a boneca e a tarde. Quem é aquele menino que estava correndo na rua atrás de você? Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro? Você não sabe que menina não sobe em muro? Desculpe, papai, eu só queria ver o que havia do outro lado. Do outro lado do muro havia o havia. As meninas se encontravam com os meninos atrás do muro. Mas papai, eu quero tanto ir ao aniversário de Teresinha, não tem nada demais, eu já estudei, já fiz todos os deveres, estou cansada. Cansaço gosmento na cabeça, nos olhos inchados.

O pai parado na porta, entre o barulho dos ônibus e o tapa. Quem é aquele rapaz que estava conversando com você na esquina? Não tem nada de quinze anos nem nada, sua mãe nunca conversou comigo sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.

O pai parado na porta, entre o caixão que saía e o retrato da mãe vestida de noiva, o retrato pendurado na parede. De agora em diante, minha filha, você tem que tomar conta de seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha. Namorar? Quem é aquele miserável que quer desgraçar a sua vida? Você não tem pena de seu pai? Você sabe que horas são? Onde já se viu escola terminar a esta hora? Que reunião que nada. A escola, sempre a escola. Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá mudar? Esta soma será eternamente mesma num universo onde nada se perde e tudo se transforma? Nada se perde, nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas tudo se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no baile de formatura. Professora, sim, senhora, parabéns. A parentada toda despejou-se do interior, aqueles parentes tabaréus, as mulheres com o rosto todo caiado de pó de arroz, os homens com as cabeças engorduradas de brilhantina, todos atarantados junto dela, que vergonha, as tias e as primas enfiadas nos vestidos de tafetá chamalotado, cheios de franzidos, sem saberem se seguravam as bolsas ou os chapéus de palha enfeitados de flores as mais indefectíveis, ah que vergonha, os ternos desajeitados de casimira listrada dos tios e dos primos amarrados às gravatas de cores desgovernadas, sim senhora, parabéns, professora, a primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade, pena que a mãe não esteja mais na terra pra ver, coitada.

Em todo o correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se transforma, irredutível na sua exatidão geométrica, os alunos se transformam, os alunos esfregando os bancos, as calças cáqui de brim, os blue jeans, você é menino ou menina?

O pai paradíssimo na porta, entre um ano e outro ano. Quem é aquele sujeito que estava com você no ponto de ônibus? Ah! é uma amiga, este mundo está perdido e você ainda reclama porque eu me preocupo com você. Hoje nós vamos ao cinema juntos. Hoje nós vamos ao aniversário de sua tia. Por que você quer sair sozinha? Filha ingrata, eu faço tudo para lhe distrair e você fica aí toda emburrada. Domingo que vem nós vamos passar o dia em Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não quer ir por quê? Você tem que espairecer.

O pai parado na porta, entre um anúncio e um comprimido. Ainda bem que você chegou cedo, vamos ver a novela das oito na televisão. É boa esta novela, eu gosto muito de novela, você precisa ver novela, distrai muito. Sim, papai, de agora em diante, eu vou ver todas as novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem das onze? Não, é bom que não tenha porque a gente dorme cedo, você tem que acordar cedo para ir à aula. Por que você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê? Bobagem, minha filha, você já estudou muito, trabalha muito, já não é criança, de noite precisa descansar. Sim, o cansaço, tanto cansaço, torpor guardando os membros e os pés no chão, não quero sair não, papai, vamos ver televisão.

O pai parado na porta, entre a bengala e o catarro. Quem é aquele velho sem-vergonha que saiu com você da escola? Será possível que você não sabe o que os outros vão pensar? Mas papai.

O pai parado na porta, atravessado entre a hora de sair e a hora de nunca mais. Papai?

Cansaço. Cansaço de existir. Ela parada na porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um grude se enfiando pelos poros, alguém tocou a campainha? Ninguém entra ninguém sai, o teorema de Pitágoras demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. O quadrado do sim é igual à soma dos quadrados de todos os nãos incendiados na medula. Cansaço de viver e não viver. Nada se perde nada se ganha. O universo inteiro transformado num atoleiro bolorento de esquecimentos do que nunca aconteceu em nenhum dia, em nenhuma hora, atrás do muro da escola, onde houve um menino e uma menina.
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Helena Gomes Parente Cunha nasceu em Salvador, 1930 e faleceu em 2023 . Formou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia em 1952. Dois anos depois, foi para Perúgia, para estudar língua, literatura e cultura italiana na Università Italiana Per Stranieri. Em 1956 começou a trabalhar como tradutora. Mudou-se em 1958 para o Rio de Janeiro, onde fez o mestrado na UFRJ. Prosseguiu a carreira acadêmica com o doutorado na UFSC e o pós-doutorado na UFRJ. Foi professora do curso de Letras da UFRJ até aposentar-se, em 1997, continuando a atuar como professora emérita ar do Departamento de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura) da mesma universidade, atuando na linha de pesquisa “Literatura comparada e imaginários culturais". Alguns livros publicados: 1968 - Corpo no Cerco (Poesia); 1980 - Maramar (Poesia); 1995 - O Outro Lado do Dia: Poemas de uma Viagem ao Japão (Poesia); 2005 - Cantos e Cantares (Poesia); 1980 - Os Provisórios (Conto); 1985 - Cem Mentiras de Verdade (Conto); 1996 - A Casa e as Casas (Conto); 1982 - Mulher no Espelho (Romance); 1989 - As Doze Cores do Vermelho (Romance); 2002 - Claras Manhãs de Barra Clara (Romance); 2003 - Marcelo e Seus Amigos Invisíveis (Infantil).

Fontes:
CUNHA, Helena Parente. Os provisórios. RJ: Antares, 1990
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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Guirlanda de Versos * 39 *

 

Renato Frata (Final de semana)

É sexta-feira, passa das cinco, minha vista se turva diante de um sol que tremelica enquanto pende a se esconder. Então, comparo-o com meu estado de resistência e vejo que sua aparência como a minha, é de cansaço.

Hora de arriar as velas, depor as tralhas e sossegar, afinal, nem o sol é de ferro. Ambos passamos o dia trabalhando.

Ele vagueando à potência máxima de iluminação e eu, por ter me atido às coisas da profissão e da família, em busca do necessário. A bem da verdade, admiro-o pela compostura séria, ereta, resistente, persistente, renhida com que tenta vencer todo o expediente sem demonstrar a indisposição do cansaço que sinto num fim de tarde, especialmente numa sexta.

Disfarça-se bem. Eu, já não consigo.

Porém, ao se enfiar no horizonte, noto que sua figura escurecida deixa a entender que o tremor da luz, ao se despedir, cobra-o de certa forma pelo esforço dispendido, o que torna, também, ao que parece, seu caminhar mais lento. Tal como o meu que a essa hora age como se eu tivesse acumulado gotinhas de chumbo nos pés, uma porção delas no arcar das costas e outras pela dificuldade de as venezianas dos olhos reterem o ardor emanado.

Olhos em brasa sem estar de fogo. Pode? A tela do computador fala que sim.

Olhando-o, porém, com esse enlevo pela visão displicentemente dirigida ao céu, noto que procura abrigo para se aninhar, e o faz sem pressa de indicar exatamente onde se encolherá, mas sabidamente num colo de montanha acinzentada, perdida pelo horizonte. E dali, como que em posição fetal, submergirá envolvido pelo vermelho enegrecido, a lhe servir de manto.

Magistralmente, nesse exato instante, a noite, a seu modo, assume o lugar espalhando raios lunares, e resplandece a paz que da lua brota.

 céu da sexta ganha um brilho especial porque ela, lua, na sua magnificência elementar, simplesmente clareia sem nos perguntar se estamos cansados ou não e, como tivesse mãos mágicas, põe em nossos pés vitalidade, nas costas o conforto, e congraçamento nos olhos a nos fazer de novo descansados para mais uma jornada, essa de lazer; afinal, sexta não é para se ficar em casa.

Não é sempre que aproveitamos a oportunidade de bisbilhotar o céu nesses tempos loucos em que o relógio obriga a que olhemos sem enxergar, sem distinguir contornos, saliências, reentrâncias e nuanças. Nesse caso, com ou sem lua, hibernamos, e não damos conta de que perdemos horas preciosas da vida que segue... sem que ocasiões retornem.

Perder a sexta é perder a semana.

A pressa que damos à vida, agindo como se disputássemos um lugar junto ao próprio sol procurando mais sombra, tira-nos a certeza de que teremos o sábado e o domingo para guardarmos nossa armadura, banhá-la, lustrá-la e deixá-la pronta até a próxima segunda quando poderemos, de novo, seguir o astro nas suas andanças livres, soltas e belas e fazer dos dias da semana a espera pela próxima sexta.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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