domingo, 4 de agosto de 2024

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) A Figueira

Morava na rua da tomba em um casarão acachapado, pintado de amarelo. Ao fundo o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira.

Esta colossal figueira havia estendido grossos braços para todos os lados e copava e fechava de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra era perpétua.

Não só através dela não filtrava um rastilho de sol, como também nem um pingo de chuva passava para baixo.

Não consegui manter uma galinha no quintal: quantas lá punha morriam de frio; e ali mesmo as enterrava, o cachorro, esse, tiritava como se estivesse em plena garoa de agosto, batida de minuano.

Por estas e outras andava eu aborrecido com a figueira. Carregar, isso carregava que era uma temeridade.., mas nos últimos anos, menos, bastante menos.

Por outro lado, era debaixo da figueira que os meus pequenos e os da vizinhança brincavam; aí faziam as suas merendas, principalmente quando havia frutas; e com o andar do tempo a criançada chegou a fazer em volta dela um verdadeiro tapete de sementes diversas, de laranjas, marmelos, pêssegos, uvas, peras, ameixas, de araçás, de butiás, de limas, melões, etc., enfim um calçamento de caroços e pevides.

Naturalmente cada ano as raízes da figueira cresciam e enterravam e afogavam essa caroçama que desaparecia.

Preciso dizer que a casa e o quintal e portanto a árvore pertenceram aos avós da minha sogra, esta aí nasceu e faleceu, com noventa e sete anos; e que há cinquenta e três anos que os ditos bens pertenciam ao meu casal: basta isto para calcular-se a idade da figueira!

Ora muito bem.

Há de haver uns sete anos fez um inverno molhado e frio como nunca passei outro. Todo o mundo lembra-se desse ano. Em casa fomos todos, de ponta a ponta, atacados de tosses e catarreiras tão fortes, que julguei iríamos acabar héticos (magros). Chiados de peito, roncos, assobios, fanhosidades, rouquidões... um barulho que até alarmava os andantes na rua!

O doutor que acudiu, como se tratasse de uma única doença, já receitava os lambedouros em dose para vir em frasco grande, dos de genebra.

Mas, qual! ... Cheguei a desanimar, e certa vez puxei o médico para uma sala dos fundos, para conversar à vontade. Conforme íamos andando, a casa ia ficando às escuras; o doutor estacou:

— Homessa! Estaremos à boca da noite às duas horas da tarde?...

— Não é nada, doutor: é a figueira!

— Que figueira, Romualdo?

— Ali, na escuridão.., não vê?

O doutor teve medo de seguir avante; eu, já se vê, prático velho, nem me abalei.

Mas tanto como rodou nos calcanhares, disse-me com franqueza:

— Romualdo, toda a doença da sua casa está ali; é a umidade, a escuridão, o abafamento que a figueira produz, derrube-a, Romualdo, derrube-a!

— O abafamento... a escuridão... a umidade...

— Sim, homem: meta-lhe o machado!

Compreendi: era tal e qual! Mas como todos estimávamos muito a figueira, resolvi derruba-la, não podá-la muito, sim.

Logo no dia seguinte começou a esgalhação; trabalhou-se uma semana, de fio a pavio, apenas parando para comer, veio carreta de bois para levantar as lenhas da poda.

Foi uma alegria, na casa. Sol, ar livre, por todas as portas e janelas; chio e paredes começaram a orear.

Ninguém mais tomou lambedouro.

Logo na primavera começou a brotação e vieram galhos novos, bonitos porém com um enfolhamento esquisito.

Esquisito, deveras. Folhas compridas e curtas, e largas e estreitas; recortadas umas, lisas outras; lustrosas, foscas; ... uma atrapalhada! ... e até notei alguns pequenos espinhos.

Vi, vi bem: eram espinhos; pequenos, porém espinhos.

Até aí nada de espantar: curioso e tal, mas tem-se visto..

No ano seguinte porém, e nos outros, é que a figueira começou a encher-me de espanto, a mim e a vizinhança e outras pessoas muitas. Sinto não lhes haver tomado os nomes, mas nem tudo lembra: se tenho tido essa precaução, hoje, com tais testemunhas, entupiria a muitos incrédulos malcriados a quem hei referido este caso. Mas quem mal não pensa, mal não cuida...

Pois esse ano a figueira deu figos e... marmelos; no seguinte, pêssegos e ameixas, de repente, só peras; no noutro ano, puramente laranjas, depois, apenas figos; em seguida, uvas.., e assim sucessivamente, melancias, cocos, limas, araçás, etc.., até que em certa temporada deu umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem sumo, e que, bem examinadas, eram quase como penas de aves.., até pelo cheiro ... de galinha, que conservavam...

Matutei muito, mas encontrei a explicação do fenômeno.

Simplíssimo: a figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas as pevides e caroços e sementes que lhe alastravam o chão.., e também o das galinhas mortas que junto às suas raízes foram enterradas... Com a força do sol tudo aquilo grelou dentro da sua seiva. Como a árvore não pôde reagir contra a invasão, antes foi dominada, assim é que começou a dar frutos, na desordem que mencionei.

Em conclusão: a figueira já não sabia o que fazia; estava como uma pessoa muito velha, de miolo mole, que já não regula.

Pobre da minha figueira. Coitada!

Estava caduca!

Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público
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ANÁLISE DO CONTO

A figueira não era apenas uma árvore; era um símbolo de tradição e história. Romualdo cresceu sob seus ramos, e a árvore fazia parte das memórias familiares. As crianças da vizinhança se reuniam ali, criando laços e brincadeiras que se estendiam por gerações.

Embora a sombra da figueira trouxesse um frescor no calor do verão, ela também representava uma prisão. A falta de luz e a umidade criavam um ambiente insalubre. A dualidade da figueira — seu conforto e seu sufoco — refletia a luta de Romualdo entre o passado e o presente.

Quando o médico recomendou derrubar a árvore, Romualdo se viu em um dilema. Era uma decisão difícil, pois a figueira era parte de sua história familiar. No entanto, a saúde da família estava em jogo, e ele optou por priorizar o bem-estar.

Após a poda, a casa renasceu. A luz do sol iluminou os cômodos e trouxe uma nova energia ao lar. As crianças, agora livres da sombra opressiva, criaram novos jogos e histórias sob um céu aberto.

Os frutos inusitados que a figueira começou a dar serviram como uma metáfora para a confusão da vida. A mistura de frutas representava a complexidade das experiências e memórias acumuladas ao longo dos anos. Romualdo percebeu que, assim como a árvore, ele também carregava as influências do passado.

A transformação da figueira trouxe reflexões sobre envelhecimento e mudança. A árvore, antes forte e majestosa, agora estava caduca, simbolizando como o tempo pode afetar até os seres mais robustos. Romualdo aprendeu a aceitar as mudanças e a valorizar as novas possibilidades.

Conclusão
A figueira, mesmo em sua decadência, deixou uma marca indelével na vida de Romualdo. A história da árvore é um lembrete de que, às vezes, é preciso derrubar o que nos prende para permitir um novo crescimento. A vida é um ciclo de perdas e renascimentos, e cada fase traz suas próprias lições.

Recordando Velhas Canções (Acorda, Maria Bonita)


 Compositor: Volta Seca (Antonio dos Santos)

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Se eu soubesse que chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem

Cabelos pretos anelados
Olhos castanhos delicados
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não vê nada

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Se eu soubesse que chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem

Cabelos pretos anelados
Olhos castanhos delicados
Quem não ama a cor morena
Morre cego e não vê nada

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

Acorda, Maria Bonita
Levanta, vai fazer o café
Que o dia já vem raiando
E a polícia já está em pé

E a polícia já está em pé
E a polícia já está em pé
E a polícia já está em pé
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A Alvorada de Maria Bonita nas Marchinhas de Carnaval
A música "Acorda, Maria Bonita" é uma marchinha de carnaval que evoca a figura histórica de Maria Bonita, companheira de Lampião, o famoso cangaceiro do sertão nordestino. A letra da canção, apesar de simples, carrega consigo um contexto cultural rico e uma pitada de romantismo e nostalgia.

A repetição do verso que pede para Maria Bonita acordar e preparar o café enquanto a polícia já está de pé sugere uma rotina matinal apressada, possivelmente em referência à vida no cangaço, onde a vigilância constante era necessária. A menção à polícia pode ser interpretada como uma alusão aos confrontos entre os cangaceiros e as forças da lei. A canção, contudo, não se aprofunda nos aspectos violentos dessa época, preferindo focar na beleza e na rotina da personagem.

Os versos que falam sobre chorar e impedir a viagem de alguém, seguidos pela descrição física de Maria Bonita, trazem um tom de admiração e amor pela figura feminina. A música celebra a beleza da mulher morena, uma característica comum no Nordeste brasileiro, e sugere que não apreciar tal beleza é como viver na cegueira. A marchinha, portanto, além de ser um elemento festivo do carnaval, serve também como uma homenagem à cultura nordestina e à figura emblemática de Maria Bonita.

sábado, 3 de agosto de 2024

Therezinha Dieguez Brisolla (Trov’ Humor) 35

 

Renato Frata (O homem do saco)

Num dia dos meus cinco anos, estando sobre a cadeira olhando a rua, o tal "homem do saco" passou e acenou para mim. 

Era um velho arcado e de barba grande, maltrapilho, roupas surradas, sapatos desbeiçados, que levava às costas um saco vazio, para ser enchido com meninos desobedientes, no dizer de
minha mãe.

Com os pés sobre o assento, tremi me encolhendo, tomado de uma batedeira que me fez agarrar no espaldar. O pavor entrou nos meus olhos, o que me fez descer e, sem nada falar, me enfiar entre as pernas dela, enrolando-me na sua saia.

O homem do saco existia.

Ela não mentira.

Ele passara bem à nossa porta...

E acenara, sinal que poderia me enfiar no seu saco.

Percebendo meu estado, ela alisou-me o cocuruto, deu-me dois tapinhas e me mandou brincar. Havia trabalho a fazer, mas foi tão grande o medo que, para onde eu olhava, via-o a me espreitar, sorrindo com dentes amarelos em meio aos pelos sujos do longo bigode e barba.

Passaram-se dias sem que voltasse a subir na cadeira até que aquela sensação de medo se amainasse, quando alguém bateu palmas e ela foi atender.

Curioso, grudei nos seus calcanhares... e que decepção! O velho, do lado de fora, abria o portão.

Um uivado, quase mugido, escorreu-me da garganta eriçando-me a pele e cabelos em agonia.

Ele me viu, riu e acenou, depois, calmamente, sentou-se na soleira.

Pedia comida e água.

O medo era tanto que não senti o xixi escorrer, mas lembro de ter deixado um rastro molhado no assoalho e, se minha mãe quisesse cumprir as ameaças que fazia pela minha impertinência em querer brincar na rua, era a hora de me fazer virar miolo de saco de estopa.

Ele, preocupado com meu choro, pôs os pés na sala e, sem saber motivo, afagou, com seus dedos retorcidos, minha cabeça.

Não eram dedos, mas garras cortantes, instante que minha mãe, deixando suas tarefas, me socorreu tomando-me rapidamente no colo e ordenando que ele permanecesse sentado e aguardasse.

Na cozinha foi um upa me pôr no chão para poder encher de comida o prato a ele destinado, até que, com a reserva de forças que as mães sempre têm, um safanão me colocou trêmulo aos seus pés.

A proximidade ao fogão não era permitida, mas dessa vez ela, sabendo da minha angústia, consentiu que ficasse perto das panelas quentes. 

Tomou da moringa, de um prato bem feito e me olhou com olhos felinos que disseram que aquela era sua vingança à minha teimosia.

O medo afugentou-me por bom tempo da janela e das malcriações, fica a lição:

"Quando não se aprende com o amor, a dor aproveita e ensina."

Fonte> Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

Recordando Velhas Canções (Odeon)


Compositores: Ernesto Nazareth e Vinicius de Moraes

Ai quem me dera
O meu chorinho há tanto tempo abandonado
E a melancolia que eu sentia
quando ouvia
ele fazer tanto chorado

Ai nem me lembro tanto, tanto
Todo encanto de um passado
Que era lindo, era triste, era bom
Igualzinho ao chorinho chamado Odeon

Terçando flauta e cavaquinho
Meu chorinho se desata
Tirando a canção do violão nesse bordão
Que me dá vida, que me mata
É só carinho, meu chorinho
Quando pega e chega assim, devagarzinho...
Meia luz, meia voz, meio tom
Meu chorinho chamado Odeon

Ah, vem depressa
Chorinho querido, vem
Mostra da graça que o choro sentido tem
Quanto tempo passou, quanta coisa mudou
Já ninguém chora mais por ninguém

Ah, quem diria que um dia, chorinho meu
Você viria com a graça que o amor lhe deu
Pra dizer não faz mal
Tanto faz, tanto fez
Eu voltei pra chorar por vocês

Chora bastante, meu chorinho
Teu chorinho de saudade
Diz ao bandolim pra não tocar tão lindo assim
Porque parece até maldade
Ai meu chorinho, eu só queria
Transformar em realidade a poesia
Ai que lindo, ai que triste, ai que bom
De um chorinho chamado Odeon

Chorinho antigo, chorinho amigo
Eu até hoje ainda persigo essa ilusão
Essa saudade que vai comigo
Que até parece aquela prece de sai só do coração
Se eu pudesse recordar e ser criança
Se eu pudesse renovar minha esperança
Se eu pudesse relembrar como se dança
Esse chorinho que hoje em dia ninguém sabe mais

Chora bastante, meu chorinho
Teu chorinho de saudade
Diz ao bandolim pra não tocar tão lindo assim
Porque parece até maldade
Ai meu chorinho, eu só queria
Transformar em realidade a poesia
Ai que lindo, ai que triste, ai que bom
De um chorinho chamado Odeon
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A Saudade e a Melancolia em 'Odeon' de Ernesto Nazareth
A música 'Odeon' de Ernesto Nazareth é uma ode ao chorinho, um gênero musical brasileiro que combina elementos de música popular e erudita. A letra expressa uma profunda saudade e melancolia, sentimentos que são intrínsecos ao chorinho. A canção começa com um desejo nostálgico de reviver o chorinho abandonado e a melancolia que ele trazia. A menção ao passado, descrito como 'lindo, triste e bom', reforça a dualidade de emoções que o chorinho evoca.

A letra também destaca a importância dos instrumentos musicais típicos do chorinho, como a flauta, o cavaquinho e o violão. Esses instrumentos são personificados, quase como se tivessem vida própria, e são responsáveis por desatar as emoções do narrador. A música é descrita como um carinho, algo que dá vida e ao mesmo tempo mata, mostrando a intensidade emocional que o chorinho pode provocar. A meia luz, meia voz e meio tom criam uma atmosfera íntima e introspectiva, onde o chorinho chamado 'Odeon' se manifesta.

A canção também aborda a passagem do tempo e as mudanças que ele traz. O narrador lamenta que 'já ninguém chora mais por ninguém', sugerindo uma perda de sensibilidade e conexão emocional na sociedade moderna. No entanto, o chorinho retorna com a graça que o amor lhe deu, para dizer que não faz mal, que tanto faz. Essa resignação é um consolo, uma aceitação da realidade. A saudade e a ilusão de reviver o passado são temas recorrentes, e o desejo de transformar a poesia em realidade é uma expressão do anseio por um tempo que não volta mais. A música termina com um apelo ao chorinho para chorar bastante, pois sua beleza é quase uma maldade, e um desejo de transformar a poesia em realidade, encapsulando a beleza, a tristeza e a bondade do chorinho chamado 'Odeon'.

Ernesto Nazareth ouviu os sons que vinham da rua, tocados por nossos músicos populares, e os levou para o piano, dando-lhes roupagem requintada. Sua obra se situa, assim, na fronteira do popular com o erudito, transitando à vontade pelas duas áreas. Em nada destoa se interpretada por um concertista, como Arthur Moreira Lima, ou um chorão como Jacó do Bandolim.

O espírito do choro estará sempre presente, estilizado nas teclas do primeiro ou voltando às origens nas cordas do segundo. E é esse espírito, essa síntese da própria música de choro, que marca a série de seus quase cem tangos-brasileiros, à qual pertence "Odeon". Obra-prima no gênero, este tango é apenas mais uma das inúmeras peças de Nazareth em que "melodia, harmonia e ritmo se entrosam de maneira quase espontânea, com refinamento de expressão", como opina o pianista-musicólogo Aloysio de Alencar Pinto.

"Odeon" é dedicado à empresa Zambelli & Cia., dona do cinema homenageado no título, onde o autor tocou na sala de espera. Localizado na Avenida Rio Branco 137, possuía duas salas de projeção e considerado um dos "mais chiques cinematógrafos do Rio de Janeiro".
Fontes:

Estante de Livros (“Romance dos Três Reinos”, de Luo Guanzhong)

Livro escrito por Luo Guanzhong no século XIV, é um romance histórico chinês baseado em eventos dos anos turbulentos próximos do fim da Dinastia Han e da era dos Três Reinos da China, começando em 169 e terminando com a reunificação do reino em 280. A história (em parte, histórica; em parte, lendária; em parte, mítica) romantiza e dramatiza a vida dos senhores feudais (e seus apoiadores) que tentaram substituir a declinante dinastia Han ou restaurá-la. Embora a novela possua centenas de personagens, o seu foco são os três blocos de poder que emergiram com o fim da dinastia Han, e que constituiriam os estados de Cao Wei, Shu Han e Wu Oriental. A novela descreve as intrigas e batalhas entre os três estados em busca da supremacia ao longo de quase cem anos.

É aclamado como um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da literatura chinesa, com um total de 800 000 palavras, quase mil personagens, a maioria históricos, em 120 capítulos. Está entre as mais aclamadas obras de literatura da China, e a sua influência literária na China foi comparada aos trabalhos de Shakespeare em relação à literatura inglesa. É a mais lida novela histórica do período final da China imperial e da China contemporânea.

Mitos a respeito da era dos Três Reinos já existiam como tradição oral antes das compilações escritas. Com seu foco na história dos hanes, as histórias cresceram em popularidade durante o reinado dos imperadores mongóis da dinastia Yuan. Durante a posterior dinastia Ming, o interesse em peças de teatro e novelas resultou em ainda maior difusão das histórias entre o povo.

O primeiro trabalho escrito que combinou essas histórias foi Sanguozhi (literalmente: "História dos registros dos Três Reinos"), publicado em algum ponto entre 1321 e 1323. Esta versão combinou temas de lenda, magia e moralidade que atraíam as pessoas comuns, que não tinham conhecimento de chinês literário. Elementos de reencarnação e carma faziam parte dessa versão da história.

O Romance dos Três Reinos é, tradicionalmente, atribuído a Luo Guanzhong, um dramaturgo que viveu em um período entre 1315 e 1400 (final da dinastia Yuan e início da dinastia Ming). Ele era conhecido por compilar peças de teatro comuns na dinastia Yuan. Foi impresso pela primeira vez em 1522 como Sanguozhi Tongsu Yanyi, numa edição que teve um prefácio talvez falso de 1494. O texto pode ter circulado antes de ambas as datas através de manuscritos. De qualquer forma, tenha o livro sido escrito numa data anterior ou posterior, tenha sido Luo Guanzhong o autor ou não, o autor fez uso de registros históricos disponíveis, incluindo os "Registros dos Três Reinos" compilados por Chen Shou, que cobrem eventos desde a Revolta dos Turbantes Amarelos em 184 até a unificação dos Três Reinos sob a dinastia Jin em 280. A novela também inclui materiais poéticos da época da dinastia Tang, óperas da época da dinastia Yuan e interpretações pessoais de elementos como virtude e legitimidade. O autor combinou seu conhecimento histórico com seu dom de contar histórias e conseguiu criar uma rica variedade de personagens.

Muitas versões do Sanguozhi expandido existem hoje. A versão de Luo Guanzhong em 24 volumes, é conservada hoje na Biblioteca de Xangai na China, na Biblioteca Central de Tenri no Japão, e em várias outras bibliotecas importantes. Várias recensões de dez, doze e vinte volumes da obra de Luo Guanzhou, confeccionadas entre 1522 e 1690, também são conservadas em várias bibliotecas pelo mundo. Entretanto, o texto padrão conhecido pela maioria das pessoas é uma recensão de Mao Lun e seu filho Mao Zonggang.

Na década de 1660, durante o reinado do imperador Kangxi, da dinastia Qing, Mao Lun e Mao Zonggang editaram significativamente o texto, encaixando-o em 120 capítulos, e abreviando o título para Sanguozhi Yanyi. O texto foi reduzido de 900 000 para 750 000 caracteres; foi feita significativa edição para melhorar o fluxo da narrativa; o uso de poemas de terceiros foi reduzido, e foi alterado seu formato tradicional de versos para um formato menor; e a maioria das passagens que louvavam os conselheiros e generais de Cao Cao foi removida.

As famosas linhas de abertura da novela, "o império, há muito tempo dividido, precisa ser reunificado; há muito tempo unido, precisa ser dividido. Sempre foi assim" que há muito tempo se pensavam fazer parte da introdução e da filosofia cíclica de Luo, foram, na verdade, adicionadas pelos Maos na sua substancialmente revisada edição de 1679. Nenhuma das edições anteriores continha essa frase. Mao também adicionou o poema "Os imortais do rio", de Yang Shen, como o famoso poema introdutório (que começa com "As águas jorrantes do Rio Yangtzé se derramam e desaparecem no leste") da novela. As edições iniciais também gastam menos tempo com o processo de divisão, o qual elas acham doloroso, e gastam muito mais tempo com o processo de reunificação e a luta dos heróis que se sacrificam por ele.

SINOPSE
Uma das maiores conquistas de "Romance dos três reinos" é a extrema complexidade de suas histórias e personagens. A novela contém numerosas subtramas.

Nos anos finais da dinastia Han do Leste, eunucos traiçoeiros e oficiais malfeitores enganaram o imperador e perseguiram os oficiais honestos. O governo, gradualmente, se tornou extremamente corrupto em todos os seus níveis, levando à ampla deterioração do império Han. Durante o reinado do imperador Lingdi, a Revolta dos Turbantes Amarelos eclodiu, sob a liderança de Zhang Jiao. A rebelião foi suprimida incompletamente pelas forças imperiais lideradas pelo general He Jin. Com a morte do imperador Lingdi, He Jin instalou o jovem Shao no trono e assumiu o controle do governo central. Os Dez Eunucos, um grupo de influentes eunucos da corte, temendo que He Jin estivesse se tornando muito poderoso, o atraíram para o palácio e o assassinaram. Em vingança, os apoiadores de He Jin invadiram o palácio e mataram indiscriminadamente qualquer pessoa que se parecesse com um eunuco. No caos que se seguiu, Shao e seu mais jovem meio-irmão Xiandi desapareceram do palácio.

O imperador e o príncipe desaparecidos foram encontrados por soldados do chefe militar Dong Zhuo, que adquiriu o controle sobre a capital imperial, Luoyang, sob o pretexto de proteger o imperador. Em seguida, Dong Zhuo depôs o imperador Shao e o substituiu pelo príncipe de Chenliu (imperador Xian), que era apenas um governante títere sob seu controle. Dong Zhuo monopolizou o poder estatal, perseguiu seus inimigos políticos e oprimiu o povo a troco de ganho pessoal. Houve dois atentados contra sua vida: o primeiro por um oficial militar, Wu Fu, que falhou e sofreu uma morte horrível; o segundo por Cao Cao, que falhou e teve de fugir.

Cao Cao fugiu de Luoyang, retornou a sua cidade natal e enviou vários editos falsos convocando oficiais regionais e chefes militares a marchar contra Dong Zhuo. Sob a liderança de Yuan Shao, dezoito chefes militares formaram um exército de coalizão e lançaram uma campanha punitiva contra Dong Zhuo. Este se sentiu ameaçado após perder as batalhas do Passo de Sishui e do Passo de Hulao. Dong Zhuo evacuou Luoyang e transferiu a capital para Changan. Ele forçou os residentes de Luoyang a acompanhá-lo e ateou fogo à cidade. A coalizão acabou por se fragmentar devido a falta de liderança e interesses conflitantes entre seus membros. Enquanto isso, em Changan, Dong Zhuo foi traído e assassinado por seu filho adotivo Lü Bu por causa de uma disputa acerca da serva Diaochan, o que era parte de uma intriga orquestrada pelo ministro Wang Yun.

Enquanto isso, o império Han já se desintegrava em uma guerra civil, com os chefes militares disputando território e poder. Sun Jian encontrou o selo imperial nas ruínas de Luoyang e o guardou secretamente consigo. Yuan Shao e Gongsun Zan estavam em guerra no norte enquanto Sun Jian e Liu Biao combatiam no sul. Outros como Cao Cao e Liu Bei, que não tinham inicialmente títulos ou terras, foram gradualmente formando seus próprios exércitos e assumindo o controle de territórios.

Durante esses tempos de revolta, Cao Cao salvou o imperador Xian das forças remanescentes de Dong Zhuo, estabeleceu a nova capital imperial em Xu e se tornou o novo líder do governo central. Ele derrotou chefes militares rivais como Lü Bu, Yuan Shu e Zhang Xiu em uma série de guerras na China central antes de conseguir uma vitória decisiva contra Yuan Shao na batalha de Guandu. Através dessas conquistas, Cao Cao uniu o centro e o norte da China sob seu comando. Os territórios que ele conquistou serviriam de base para a criação do estado de Cao Wei no futuro.

Enquanto isso, uma emboscada tirou a vida de Sun Jian na batalha de Xiangyang contra Liu Biao. Seu filho mais velho, Sun Ce, entregou o selo imperial como um tributo ao novo pretendente, Yuan Shu, em troca de reforços. Sun Ce assegurou, a si próprio, um estado nas ricas terras fluviais de Jiangdong, na região de Wu, onde o estado de Wu Oriental viria a ser fundado posteriormente. Tragicamente, Sun Ce também morreu no auge de sua carreira, devido ao pavor gerado por seu encontro com o fantasma de Yu Ji, um respeitado mago que ele havia acusado falsamente de heresia e matado por ciúme. Entretanto, Sun Quan, seu irmão mais jovem e sucessor, provou ser um governante capaz e carismático. Com a assistência de Zhou Yu, Zhang Zhao e outros, Sun Quan inspirou talentos ocultos como Lu Su a servi-lo, acumulou poder militar e manteve a estabilidade em Jiangdong.

Liu Bei e seus irmãos de juramento Guan Yu e Zhang Fei juraram lealdade ao império Han no Juramento do Jardim de Pêssegos, e prometeram fazer o melhor pelo povo. Entretanto, suas ambições não foram cumpridas pois eles não receberam a devida recompensa por ter ajudado a suprimir a Rebelião dos Turbantes Amarelos e por ter participado da campanha contra Dong Zhuo. Depois que Liu Bei sucedeu a Tao Qian como governador da província de Xu, ele ofereceu abrigo a Lü Bu, que acabara de ser derrotado por Cao Cao. Entretanto, Lü Bu traiu seu anfitrião, assumiu o controle da província e atacou Liu Bei. Liu Bei juntou suas forças com as de Cao Cao e derrotou Lü Bu na batalha de Xiapi. Liu Bei, então, seguiu Cao Cao de volta à capital imperial Xu, onde o imperador Xian o honrou como seu "Tio Imperial". Quando Cao Cao deu sinais de que queria usurpar o trono, o imperador Xian escreveu um decreto secreto em sangue a seu sogro Dong Cheng e o ordenou se livrar de Cao. Secretamente, Dong Cheng contactou Liu Bei e outros e eles planejaram matar Cao Cao. No entanto, o plano foi descoberto e Cao Cao mandou prender Dong Cheng e os outros, bem como suas famílias, e os executou.

Liu Bei já havia deixado a capital imperial quando o plano foi descoberto. Ele retirou o controle da província de Xu das mãos de Che Zhou, o novo governador que havia sido indicado por Cao Cao. Em retaliação, Cao Cao atacou a província de Xu e derrotou Liu Bei, forçando-o a se abrigar sob a proteção de Yuan Shao por um certo tempo. Eventualmente, Liu Bei deixou Yuan Shao e estabeleceu uma nova base no condado de Runan, onde ele foi derrotado por Cao Cao novamente. Ele recuou para o sul, para a província de Jing, onde ficou sob a proteção do governador Liu Biao. Liu Biao deu, a Liu Bei, a responsabilidade de administrar o condado de Xinye. Nesse condado, Liu Bei visitou Zhuge Liang três vezes, e o recrutou como conselheiro. Também preparou seus homens para o combate contra as forças de Cao Cao.

Em seguida à sua unificação do centro e do norte da China, Cao Cao, tendo sido apontado grão-chanceler pelo imperador Xian, liderou suas forças numa campanha sulista para eliminar Liu Bei e Sun Quan. Embora Liu Bei conseguisse repelir dois ataques de Cao Cao em Xinye, ele foi eventualmente obrigado a fugir devido ao poder avassalador do inimigo. Ele liderou seus seguidores e os civis num êxodo ainda mais para o sul, até alcançar a prefeitura de Jiangxia.

Liu Bei enviou Zhuge Liang para se encontrar com Sun Quan e discutir a formação de uma aliança contra Cao Cao. Sun Quan concordou com a aliança e colocou Zhou Yu no comando de seu exército em preparação para a guerra contra Cao Cao. Zhuge Liang permaneceu temporariamente no território de Wu para ajudar Zhou Yu. Este, no entanto, acho que Zhuge poderia se tornar uma ameaça a Sun Quan no futuro e tentou matá-lo em algumas ocasiões, mas sempre acabou falhando e foi forçado a cooperar com ele. As forças de Sun e Liu conseguiram uma vitória decisiva sobre Cao Cao na Batalha dos Penhascos Vermelhos.

Após a vitória, Sun Quan e Liu Bei começaram a competir pelo controle do sul da província de Jing. Liu foi vitorioso e assumiu o controle dos territórios do general de Cao Cao, Cao Ren. Sun Quan, descontente por não ganhar nada, enviou mensageiros a Liu Bei pedindo que "devolvesse" os territórios para ele, mas Liu Bei dispensou os mensageiros, cada vez com uma desculpa diferente. Sun Quan, no entanto, não estava disposto a ceder, e decidiu seguir o plano de Zhou Yu de enganar Liu Bei, fazendo com que este viesse ao território de Sun Quan e desposasse a irmã deste, Sun Shangxiang. Ele, então, tornaria, Liu Bei, refém, e exigiria, em troca da libertação deste, a posse da província de Jing. Entretanto, o plano falhou e o casal recém-formado voltou são e salvo para a província de Jing. Mais tarde, Zhou Yu morreu de frustração depois que Zhuge Liang repetidamente frustrou seus planos de conquista da província de Jing.

As relações entre Liu Bei e Sun Quan se deterioraram após a morte de Zhou Yu, mas não ao ponto de ambos guerrearem entre si. Seguindo o plano de Zhuge Liang, Liu Bei liderou suas forças na diração oeste, rumo à província de Yi, e assumiu o controle das terras do governador Liu Zhang. Nessa altura, Liu Bei tinha o controle de vastas extensões de terra, desde a província de Yi até o sul da província de Jing. Posteriormente, esses territórios serviriam de base para a fundação do estado de Shu Han. Liu Bei se declarou rei de Hanzhong depois de derrotar Cao Cao na campanha de Hanzhong e conquistar a prefeitura de Hanzhong.

Ao mesmo tempo, o imperador Xian concedeu, a Cao Cao, o título de rei vassalo (rei de Wei), ao passo que Sun Quan era conhecido como duque de Wu. No leste da China, as forças de Cao Cao e Sun Quan se enfrentaram em várias batalhas ao longo do rio Yangtzé, incluindo as batalhas de Hefei e Ruxu, mas nenhum lado conseguiu alcançar uma vantagem significativa sobre o adversário.

Enquanto isso, Sun Quan planejou tomar a província de Jing depois de se cansar das repetidas recusas de Liu Bei em entregar a província. Secretamente, fez as pazes e se aliou a Cao Cao contra Liu Bei. Enquanto Guan Yu, que protegia os territórios de Liu Bei na província de Jing, estava distante atacando Cao Ren na batalha de Fancheng, Sun Quan enviou seu general Lü Meng numa incursão secreta à província de Jing. Guan Yu foi incapaz de capturar Fancheng, então ele recuou. Mas foi, então, pego de surpresa pela invasão de Lü Meng, e constatou que havia perdido o controle da província de Jing. Com a moral do seu exército em queda e as deserções aumentando, Guan Yu e seus homens remanescentes recuaram para Maicheng, onde eles foram encurralados pelas forças de Sun Quan. Em desespero, Guan Yu tentou romper o cerco mas falhou e foi capturado em uma emboscada. Sun Quan o executou depois que Guan Yu se recusou a se render.

Logo após a morte de Guan Yu, Cao Cao morreu vítima de um tumor cerebral em Luoyang. Seu filho e sucessor, Cao Pi, forçou o imperador Xian a abdicar do trono em seu favor, e estabeleceu o estado de Cao Wei para substituir a dinastia Han. Após aproximadamente um ano, Liu Bei se declarou imperador e fundou o estado de Shu Han como uma continuação da dinastia Han. Enquanto Liu Bei planejava vingar Guan Yu, Zhang Fei foi assassinado por seus subordinados enquanto dormia.

Enquanto Liu Bei liderava um grande exército para vingar Guan Yu e retomar a província de Jing, Sun Quan tentava apaziguá-lo oferecendo devolver os territórios sulistas de Jing. As condições de Liu Bei obrigavam-no a aceitar a oferta, mas ele insistiu em vingar seu irmão juramentado. Após algumas vitórias iniciais contra as forças de Sun Quan, uma série de erros estratégicos resultou na derrota estrondosa de Liu Bei na Batalha de Xiaoting/Yiling para as forças lideradas pelo general de Sun Quan, Lu Xun. Inicialmente, Lu Xun perseguiu Liu Bei na retirada deste após sua derrota, mas desistiu da perseguição após ficar preso e ter grande dificuldade para sair do Labirinto de Pedra projetado por Zhuge Liang.

Liu Bei morreu em Baidicheng de doença alguns meses depois. No seu leito de morte, Liu Bei concedeu, a Zhuge Liang, permissão para assumir o trono se seu filho e sucessor, Liu Shan, mostrasse ser um governante incapaz. Zhuge Liang recusou firmemente e jurou permanecer fiel à confiança que Liu Bei tinha depositado nele.

Depois da morte de Liu Bei, Cao Pi induziu muitas forças, incluindo Sun Quan, um general vira-casaca de Shu chamado Meng Da, as tribos Nanman e Qiang, a atacar Shu, em coordenação com um exército de Wei. Entretanto, Zhuge Liang conseguiu fazer os cinco exércitos recuarem sem derramamento de sangue. Ele também enviou Deng Zhi para fazer as pazes com Sun Quan e restaurar a aliança entre Shu e Wu. Então, Zhuge Liang liderou, pessoalmente, uma campanha sulista contra os Nanman, os derrotou sete vezes, e conquistou o apoio do rei Nanman, Meng Huo.

Depois de pacificar o sul, Zhuge Liang liderou o exército de Shu em cinco expedições militares para atacar Wei como parte de sua missão de restaurar a dinastia Han. Entretanto, seus dias estavam contados, pois ele sofria de uma doença crônica e sua condição havia piorado devido ao estresse. Ele morreria da doença na batalha das Planícies de Wuzhang enquanto liderava uma equilibrada batalha contra o general de Wei Sima Yi.

Os longos anos de batalha entre Shu e Wei viram muitas mudanças na família Cao governante de Wei. A influência da família diminuiu após a morte de Cao Rui e o poder acabou indo parar nas mãos do regente Sima Yi e subsequentemente nas mãos de seus filhos Sima Shi e Sima Zhao.

Em Shu, Jiang Wei herdou o patrimônio de Zhuge Liang e voltou a liderar nove campanhas contra Wei por três décadas, mas acabou não conseguindo grande êxito. O imperador de Shu Liu Shan também revelou ser um governante incompetente, que confiava em oficiais corruptos. Gradualmente, Shu declinou sob o reinado de Liu Shan e foi eventualmente conquistado pelas forças de Wei. Jiang Wei tentou restaurar Shu com a ajuda de Zhong Hui, um general de Wei insatisfeito com Sima Zhao, mas seu plano falhou e ambos foram mortos pelos soldados de Wei. Logo após a queda de Shu, Sima Zhao morreu e seu filho, Sima Yan, forçou o último imperador de Wei, Cao Huan, a abdicar em seu favor. Sima Yan, então, estabeleceu a dinastia Jin para substituir o estado de Cao Wei.

Em Wu, havia conflito interno entre os nobres desde a morte de Sun Quan. Os regentes Zhung Ke e Sun Chen tentaram, consecutivamente, usurpar o trono mas foram eventualmente afastados e eliminados em golpes. Embora a estabilidade tenha sido temporariamente restaurada em Wu, o último imperador Wu, Modi, tornou-se um tirano. Wu, o último dos Três Reinos, foi, eventualmente, conquistado pela dinastia Jin. A queda de Wu marcou o fim da quase centenária era de guerra civil conhecida historicamente como período dos Três Reinos.

Algumas cenas não históricas da novela se tornaram bem conhecidas e se tornaram, subsequentemente, parte da cultura da China.

A novela registrou histórias de um monge budista chamado Pujing, que era amigo de Guan Yu. Pujing fez sua primeira aparição durante a árdua jornada de Guan ao cruzar cinco passos e vencer seis generais. Na ocasião, ele alertou Guan sobre um complô para assassiná-lo. Como a novela foi escrita na dinastia Ming, mais de mil anos após os fatos, ela mostra que o budismo já havia se tornado, na época em que a novela foi escrita, um componente importante da corrente dominante da cultura chinesa, ainda que a novela não seja muito precisa do ponto de vista histórico. Luo Guanzhong preservou essas descrições para apoiar seu retrato de Guan como um homem fiel e virtuoso. Desde então, Guan tem sido chamado de "senhor Guan" (Guan Gong).

Adaptações

A história foi recontada em inúmeros formatos, como séries de televisão, mangá e jogos eletrônicos.

Fonte:
Wikipedia. acesso em 03 de agosto de 2024.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 35

 

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo se fez imensurável)

SE BEM ME LEMBRO, corria uma tarde cinzenta, uma tarde longa e comprida, daquelas vespertinas que parecem carregar o peso de alguma saudade numa sacola de sonhos desfeitos. Eu me achava sentado na varanda enorme, acomodado numa velha e surrada cadeira de balanço que pertencera à minha avó. Olhava o horizonte. O silêncio se fazia ensurdecedor: nenhum riso, nenhum passo, nenhum movimento. 

Apenas o eco das lembranças, ou mais precisamente daquelas doces amarguras de como eu fiquei depois que você fez as malas e partiu. E como fiquei? Essa pergunta, tanto tempo passado, ainda ecoa em minha mente como uma espécie antiga de mantra caído em desuso. 

Recordo-me, porém, da última vez em que nos vimos. Seus olhos de fundos tristes refletiam a despedida sem volta. Seu coração, deprimido pela consternação, adernava em ritmo pesado, como se no bater seguinte um terror iminente não o deixasse seguir funcionando. 

Para piorar meu estado lastimoso, ou melhor, o nosso, eu via em tudo um quadro intrigante e maléfico aflorando sem dó nem piedade. Lembro que você segurou a minha mão com força, ao tempo em que imprimiu um vigor ardoroso, como se quisesse gravar cada detalhe na sua memória. De fato, num repente, você deixou escapar um “Até breve” choroso. 

Esse “até breve” se engrandeceu como um elástico esticado, e eu me vi preso nesse vácuo que ele imprimiu indefinido, alimentando a esperança de que você, por algum motivo, voltasse atrás e não deixasse o nosso cantinho que considerávamos sagrado e inviolável. Ledo engano! Você se foi... os primeiros dias foram os piores. Os meses subsequentes, um martírio. 

Um ano depois, já sem a chancela de sua volta, tudo se amoldou num esquecimento compacto, cada vez mais temeroso e aterrador. O vazio que você deixou, quadruplicou. Fez-se cruel, duro, foi além do humanamente palpável. A casa toda, sem a sua presença, sem a sua voz maviosa, sem a sua quentura, se enregelou. 

Os quartos, a sala, o banheiro, a cozinha se quedaram num silêncio sepulcral e constrangedor. As músicas que costumávamos ouvir juntos passaram a ser notas soltas num livro de partituras deixado num canto, parado, à mercê das traças, bem como os filmes sem nenhum significado que carecesse de ser lembrado. Eu me perdi dos lugares onde costumávamos nos encontrar no quintal imenso. 

Aliás, tudo se transformou num vazio tresloucado e insano. Me vem à mente (sempre) o lugar onde fizemos amor pela primeira vez. Ao rasgar as suas vestes, você ficou perplexa, como se um balde de tinta vermelha se esparramasse por toda a sua pele aveludada. 

Você se agarrou a mim numa afoiteza inebriante, como se aquele momento fosse por você esperado fazia um bom tempo... desde a sua partida, meu Deus, desde a sua partida, as noites por estas bandas passaram a ser as mais cruéis. 

O lado da cama onde você dormia se fez maior, triplicou de tamanho, ao instante em que agora, ao me deitar, ainda abraço no vazio a sua presença, imaginando insanamente que você está ali me esperando para nos consumirmos como se fôssemos um só. Que louca ilusão! 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Maria!)


Compositores: Luís Peixoto e Ary Barroso

Maria!
O teu nome principia
Na palma da minha mão
E cabe bem direitinho
Dentro do meu coração Maria

Maria!
De olhos claros cor do dia
Como os de Nosso Senhor
Eu por vê-los tão de perto
Fiquei ceguinho de amor Maria

No dia, minha querida
Em que juntinhos na vida
Nós dois nos quisermos bem
A noite em nosso cantinho
Hei de chamar-te baixinho
Não hás de ouvir mais ninguém, Maria!

Maria!
Era o nome que dizia
Quando aprendi a falar
Da avózinha coitadinha
Que não canso de chorar Maria

Maria!
E quando eu morar contigo
Tu hás de ver que perigo
Que isso vai ser, ai, meu Deus
Vai nascer todos os dias
Uma porção de Marias
De olhinhos da cor do teus
Maria!, Maria!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Devoção e a Beleza de 'Maria' por Ary Barroso
A música 'Maria' de Ary Barroso é uma ode ao amor e à devoção, expressa de maneira poética e sentimental. A letra começa com uma declaração de que o nome 'Maria' está gravado na palma da mão do narrador e dentro do seu coração, simbolizando a profundidade e a permanência desse amor. A repetição do nome 'Maria' ao longo da canção reforça a importância e a centralidade dessa figura na vida do narrador.

A canção também faz uma comparação entre os olhos de Maria e os de Nosso Senhor, destacando a pureza e a divindade que o narrador enxerga nela. A metáfora de ficar 'ceguinho de amor' ao ver os olhos de Maria de perto sugere que o amor é tão intenso que ofusca a visão, uma expressão comum para descrever a cegueira causada pela paixão. A letra continua a explorar a ideia de um futuro juntos, onde o narrador imagina um cenário de intimidade e exclusividade, onde apenas Maria será ouvida.

Além disso, a música traz uma dimensão nostálgica ao mencionar que 'Maria' era o nome que o narrador dizia quando aprendeu a falar, referindo-se à sua avó. Isso adiciona uma camada de ternura e saudade, mostrando que o nome 'Maria' carrega um significado profundo e pessoal. A canção termina com uma visão otimista e alegre de um futuro onde o amor entre o narrador e Maria dará origem a muitas outras 'Marias', simbolizando a continuidade e a multiplicação desse amor. Ary Barroso, conhecido por suas composições que exaltam a beleza e a emoção, consegue capturar a essência do amor romântico e familiar em 'Maria'.

A necessidade urgente de uma música inédita para a peça teatral "Me deixa Ioiê" fez Luiz Peixoto criar os versos deste samba-canção sobre a melodia de "Bahia", uma composição pouco conhecida de Ary Barroso.

O nome Maria, que muito bem substituiu o do samba original, era uma homenagem à estrela da peça, a bela atriz portuguesa Maria Sampaio, famosa também pelo seu talento. Esforçando-se para impressionar a homenageada, Peixoto caprichou nos versos, sendo Maria uma de suas melhores produções.

Só o início - "Maria, o teu nome principia / na palma da minha mão... - já vale por um poema, e dos bons. Gravado duas vezes por Sílvio Caldas, este samba foi sucesso em 1934 e 1940.

Fontes:

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Varal de Trovas n. 607

 

Humberto de Campos (O bravo)

Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e elegantíssimos oficiais, e, como a pequena não decidisse por si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.

Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:

- Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já me pediram em casamento.. A escolha entre os senhores é dificílima. Se eu fosse comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais bravo, o mais corajoso. Não acham justo?

- Perfeitamente! - exclamou o tenente Coimbra.

- Perfeitamente! - confirmou o tenente Torres.

- Perfeitamente! - concordou o tenente Samuel.

- Nesse caso - tornou o coronel - vou submetê-los a uma prova.

E ordenou, para dentro:

- Cabo Matias, prepare a metralhadora.

O inferior puxou a máquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e avisou:

- Pronto, Sr. coronel.

O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:

- Um!... Dois!...

E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.

- Covardes! - trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...

E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:

- O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!

E, estendendo-lhe a mão:

- Venha daí, vamos ver a sua noiva.

O oficial detinha-se, porém, imóvel.

- Vamos, homem! - insistiu.

O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:

- Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!

E para o soldado:

- Matias, empresta-me a tua calça?

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Camisa Listrada)


Compositor: Assis Valente

Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati
Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão

Tirou o anel de doutor para não dar o que falar
E saiu dizendo eu quero mamar
Mamãe eu quero mamar, mamãe eu quero mamar

Levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão
Levou meu saco de água quente pra fazer chupeta
Rompeu minha cortina de veludo pra fazer uma saia
Abriu o guarda-roupa e arrancou minha combinação
E até do cabo de vassoura ele fez um estandarte
Para seu cordão

Agora a batucada já vai começando não deixo e não consinto
O meu querido debochar de mim
Porque ele pega as minhas coisas vai dar o que falar
Se fantasia de Antonieta e vai dançar no Bola Preta
Até o sol raiar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

A Alegria Transgressora de 'Camisa Listrada'
A música 'Camisa Listrada', composta por Assis Valente, é uma obra que reflete o espírito irreverente e alegre do carnaval brasileiro, além de abordar temas de transgressão e liberdade individual. A letra narra a história de um personagem que, ao vestir uma camisa listrada, decide abandonar as convenções sociais e se entregar às festividades carnavalescas, bebendo parati (cachaça) em vez de seguir a rotina habitual de chá com torrada.

O personagem também é descrito como alguém que desafia as expectativas ao levar um canivete e um pandeiro, símbolos de uma atitude mais boêmia e festeira, contrastando com a imagem de um 'doutor', que ele parece querer evitar ao tirar seu anel. A expressão 'mamãe eu quero mamar' pode ser interpretada como um desejo de regressão à infância ou uma busca por prazeres simples e instintivos, típicos da atmosfera do carnaval.

A música também menciona o personagem utilizando objetos pessoais de alguém para criar sua fantasia de carnaval, incluindo a transformação de itens domésticos em adereços festivos. Isso sugere uma quebra de padrões e uma celebração da criatividade e da improvisação. A referência a 'Antonieta' e ao 'Bola Preta' evoca a figura histórica de Maria Antonieta e o tradicional bloco de carnaval Cordão da Bola Preta, reforçando a mistura de elementos culturais e a atmosfera de festa e liberdade que permeia a canção.

Foi pensando em Carmen Miranda, e seu estilo brejeiro e malicioso, que Assis Valente criou o melhor segmento de sua obra: os 25 sambas e marchinhas que a cantora gravou no período 1933-1940. Figuram nesse repertório alguns de seus maiores sucessos como "Camisa Listrada", um dos sambas preferidos pelos foliões de 1938.

Num flagrante da vida cotidiana, a composição descreve a aventura de um sujeito que aproveita o carnaval para, comportando-se de forma irreverente, libertar-se de suas preocupações.

O tal sujeito improvisa uma vestimenta feminina - com uma camisa listrada e um pedaço de cortina servindo de saia - e de "canivete no cinto e pandeiro na mão", sai pelas ruas cantando "Mamãe Eu Quero Mamar".

O curioso é que Assis, muito mais letrista do que compositor, veste esta alegre crônica carnavalesca com uma melodia triste, toda ela no modo menor. Rejeitado pela Victor (que chegou a registrá-lo em disco não lançado, com as Irmãs Pagãs) "Camisa Listrada" permanecia inédito já havia algum tempo, quando Carmen Miranda resolveu gravá-lo, por insistência do compositor, o único que acreditava em seu sucesso.

Em 1938, Carmen Miranda vivia o auge da popularidade, cantando sucessos como "Camisa Listada", "Na Baixa do Sapateiro" e "Boneca de Piche". Parece que ninguém nas editoras e gravadoras da época conhecia a grafia correta da palavra "listrada", pois nas primeiras edições deste samba o título aparece como "Camisa Listada", estendendo-se o erro à própria Carmen, na gravação.
Fontes: