Morava na rua da tomba em um casarão acachapado, pintado de amarelo. Ao fundo o quintal, parecendo pequeno por ter ao centro uma colossal figueira.
Esta colossal figueira havia estendido grossos braços para todos os lados e copava e fechava de tal forma a ramaria e a folhagem, que a sombra era perpétua.
Não só através dela não filtrava um rastilho de sol, como também nem um pingo de chuva passava para baixo.
Não consegui manter uma galinha no quintal: quantas lá punha morriam de frio; e ali mesmo as enterrava, o cachorro, esse, tiritava como se estivesse em plena garoa de agosto, batida de minuano.
Por estas e outras andava eu aborrecido com a figueira. Carregar, isso carregava que era uma temeridade.., mas nos últimos anos, menos, bastante menos.
Por outro lado, era debaixo da figueira que os meus pequenos e os da vizinhança brincavam; aí faziam as suas merendas, principalmente quando havia frutas; e com o andar do tempo a criançada chegou a fazer em volta dela um verdadeiro tapete de sementes diversas, de laranjas, marmelos, pêssegos, uvas, peras, ameixas, de araçás, de butiás, de limas, melões, etc., enfim um calçamento de caroços e pevides.
Naturalmente cada ano as raízes da figueira cresciam e enterravam e afogavam essa caroçama que desaparecia.
Preciso dizer que a casa e o quintal e portanto a árvore pertenceram aos avós da minha sogra, esta aí nasceu e faleceu, com noventa e sete anos; e que há cinquenta e três anos que os ditos bens pertenciam ao meu casal: basta isto para calcular-se a idade da figueira!
Ora muito bem.
Há de haver uns sete anos fez um inverno molhado e frio como nunca passei outro. Todo o mundo lembra-se desse ano. Em casa fomos todos, de ponta a ponta, atacados de tosses e catarreiras tão fortes, que julguei iríamos acabar héticos (magros). Chiados de peito, roncos, assobios, fanhosidades, rouquidões... um barulho que até alarmava os andantes na rua!
O doutor que acudiu, como se tratasse de uma única doença, já receitava os lambedouros em dose para vir em frasco grande, dos de genebra.
Mas, qual! ... Cheguei a desanimar, e certa vez puxei o médico para uma sala dos fundos, para conversar à vontade. Conforme íamos andando, a casa ia ficando às escuras; o doutor estacou:
— Homessa! Estaremos à boca da noite às duas horas da tarde?...
— Não é nada, doutor: é a figueira!
— Que figueira, Romualdo?
— Ali, na escuridão.., não vê?
O doutor teve medo de seguir avante; eu, já se vê, prático velho, nem me abalei.
Mas tanto como rodou nos calcanhares, disse-me com franqueza:
— Romualdo, toda a doença da sua casa está ali; é a umidade, a escuridão, o abafamento que a figueira produz, derrube-a, Romualdo, derrube-a!
— O abafamento... a escuridão... a umidade...
— Sim, homem: meta-lhe o machado!
Compreendi: era tal e qual! Mas como todos estimávamos muito a figueira, resolvi derruba-la, não podá-la muito, sim.
Logo no dia seguinte começou a esgalhação; trabalhou-se uma semana, de fio a pavio, apenas parando para comer, veio carreta de bois para levantar as lenhas da poda.
Foi uma alegria, na casa. Sol, ar livre, por todas as portas e janelas; chio e paredes começaram a orear.
Ninguém mais tomou lambedouro.
Logo na primavera começou a brotação e vieram galhos novos, bonitos porém com um enfolhamento esquisito.
Esquisito, deveras. Folhas compridas e curtas, e largas e estreitas; recortadas umas, lisas outras; lustrosas, foscas; ... uma atrapalhada! ... e até notei alguns pequenos espinhos.
Vi, vi bem: eram espinhos; pequenos, porém espinhos.
Até aí nada de espantar: curioso e tal, mas tem-se visto..
No ano seguinte porém, e nos outros, é que a figueira começou a encher-me de espanto, a mim e a vizinhança e outras pessoas muitas. Sinto não lhes haver tomado os nomes, mas nem tudo lembra: se tenho tido essa precaução, hoje, com tais testemunhas, entupiria a muitos incrédulos malcriados a quem hei referido este caso. Mas quem mal não pensa, mal não cuida...
Pois esse ano a figueira deu figos e... marmelos; no seguinte, pêssegos e ameixas, de repente, só peras; no noutro ano, puramente laranjas, depois, apenas figos; em seguida, uvas.., e assim sucessivamente, melancias, cocos, limas, araçás, etc.., até que em certa temporada deu umas frutas esquisitas, compridinhas, ressequidas, sem gosto nenhum, nem sumo, e que, bem examinadas, eram quase como penas de aves.., até pelo cheiro ... de galinha, que conservavam...
Matutei muito, mas encontrei a explicação do fenômeno.
Simplíssimo: a figueira tinha absorvido o suco germinativo de todas as pevides e caroços e sementes que lhe alastravam o chão.., e também o das galinhas mortas que junto às suas raízes foram enterradas... Com a força do sol tudo aquilo grelou dentro da sua seiva. Como a árvore não pôde reagir contra a invasão, antes foi dominada, assim é que começou a dar frutos, na desordem que mencionei.
Em conclusão: a figueira já não sabia o que fazia; estava como uma pessoa muito velha, de miolo mole, que já não regula.
Pobre da minha figueira. Coitada!
Estava caduca!
Fonte: João Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado em 1914. Disponível em Domínio Público
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ANÁLISE DO CONTO
A figueira não era apenas uma árvore; era um símbolo de tradição e história. Romualdo cresceu sob seus ramos, e a árvore fazia parte das memórias familiares. As crianças da vizinhança se reuniam ali, criando laços e brincadeiras que se estendiam por gerações.
Embora a sombra da figueira trouxesse um frescor no calor do verão, ela também representava uma prisão. A falta de luz e a umidade criavam um ambiente insalubre. A dualidade da figueira — seu conforto e seu sufoco — refletia a luta de Romualdo entre o passado e o presente.
Quando o médico recomendou derrubar a árvore, Romualdo se viu em um dilema. Era uma decisão difícil, pois a figueira era parte de sua história familiar. No entanto, a saúde da família estava em jogo, e ele optou por priorizar o bem-estar.
Após a poda, a casa renasceu. A luz do sol iluminou os cômodos e trouxe uma nova energia ao lar. As crianças, agora livres da sombra opressiva, criaram novos jogos e histórias sob um céu aberto.
Os frutos inusitados que a figueira começou a dar serviram como uma metáfora para a confusão da vida. A mistura de frutas representava a complexidade das experiências e memórias acumuladas ao longo dos anos. Romualdo percebeu que, assim como a árvore, ele também carregava as influências do passado.
A transformação da figueira trouxe reflexões sobre envelhecimento e mudança. A árvore, antes forte e majestosa, agora estava caduca, simbolizando como o tempo pode afetar até os seres mais robustos. Romualdo aprendeu a aceitar as mudanças e a valorizar as novas possibilidades.
Conclusão
A figueira, mesmo em sua decadência, deixou uma marca indelével na vida de Romualdo. A história da árvore é um lembrete de que, às vezes, é preciso derrubar o que nos prende para permitir um novo crescimento. A vida é um ciclo de perdas e renascimentos, e cada fase traz suas próprias lições.
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