Quando chegamos à cabana do velho Amâncio, à boca da mata, um cãozinho que dormia encolhido sobre um monte de bagaços de cana já secos, perto de uma moenda, saltou ladrando: mas o velho aquietou-o, e abrindo a cancelinha que dava ingresso ao terreiro, recebeu-nos amavelmente.
A casa de taipa, coberta de sapê, era um ninho entre as árvores. As laranjeiras carregadas vergavam os ramos ao peso dos frutos.
Num lado o canavial e os milhos, em outro lado a horta, onde cantava um fino córrego; e sob a rama frondosa de robusta mangueira agasalhava-se o paiol modesto; mais adiante, o cercado onde berrava a cabra leiteira, o galinheiro e a ceva.
Amâncio era homem de cinquenta anos, moreno e robusto, de olhos vivos, barbas e cabelos grisalhos. Falava sorrindo com expressão afável, e a boa Lívia, sua esposa, que o acompanhava desde a mocidade, já com a pele enrugada e a cabeça toda branca, parecia mais velha do que ele.
Quando entramos na sala da pobre gente, fora na mata, as cigarras cantavam, e as pombas punham uma nota de melancolia no crepúsculo. Vendo-nos com a espingarda, e sabendo que pretendíamos passar a noite na montanha para que pudéssemos surpreender a caça na hora em que ela sai pelas trilhas sossegadas, Amâncio ofereceu-nos do que tinha no armário, enquanto a boa Lívia estendia na mesa tosca uma toalha alvíssima, que exalava o suave perfume da erva de São João.
Aceitando o repasto que nos oferecia o honesto lenhador, pusemo-nos à mesa.
À luz de uma candeia, a sala tinha um triste aspecto, mas a pobreza era largamente compensada pelo escrupuloso asseio.
Mariposas voavam em torno da candeia, e lá fora, no silêncio, à luz das estrelas, os sapos coaxavam. Em uma das paredes, entre vários quadros de santos, havia uma litografia representando o general Osório.
— Vosmecês estão olhando? — disse o lenhador sorrindo. — Aquele é o homem que nos defendeu nos campos de guerra, por isso está perto de Nosso Senhor. A gente acostuma-se a querer bem a esses patrícios, e acaba fazendo o que eu fiz. Lívia anda sempre insistindo comigo para tirar o retrato dali, porque não é santo. Mas fez tanto como se o fosse, porque salvou a honra do povo! Pois não é assim? Deus Nosso Senhor do céu há de aprovar meu pensamento. Eu sou assim: tudo por minha terra e pelos homens que lhe fazem bem.
— Desde quando vives neste monte, Amâncio?
— Eu sei lá! Posso dizer que foi neste cantinho que nasci. Quando dei por mim, meu pai, que era um caboclo forte, morava em uma casinha um pouco mais lá embaixo. Tudo era mato nesse tempo, hoje é quase tudo cidade. Ainda as onças vagavam pelos caminhos, e não se andava neste monte com o sossego com que se anda agora...
— Havia perigo?
— Se havia perigo! Tudo isto estava ainda como Deus criou. Bem me lembro! À noite era um cuidado! Muita vez meu pai saía com a espingarda para espantar as suçuaranas que rondavam a casa. E isto não era como é hoje. Os bichos foram para longe, não há mais aqui em cima, nem mesmo na Mantiqueira onde está o Itatiaia, que é o pico mais alto do Brasil, vosmecês sabem. Só as árvores ficaram, ainda assim já desceram muitas.
O velho lenhador baixou a cabeça grisalha, mas levantando-a, pouco depois, continuou:
— Américo (vosmecês não conhecem meu filho Américo, que é marinheiro?) disse-me, certa vez, uma coisa que me fez pensar: “Ah! Meu pai, a gente na cidade é que compreende o valor das árvores que foram as suas companheiras. O tronco que meu pai derruba vem para as oficinas — de uma sai feito navio, de outra sai transformado em leito: é mobília do rico, é o catre do pobre, é o esteio da casa, é o altar. Quase tudo quanto a gente vê em construções saiu da floresta. O navio no qual eu estou, foi um canto de bosque — teve folhas e flores — hoje, depois que os troncos foram trabalhados, anda sobre as águas: é a floresta que vai pelo mundo levando a nossa bandeira nos mastros como uma flor no galho. Eu vejo a floresta em toda parte, meu pai.” É bem verdade! Américo disse bem! E não é só a madeira que vai do monte — é a água, que mata a sede, é a caça, que alimenta, são as penas dos passarinhos, é a flor, é a resina, é a erva que cura, é tudo quanto há de bom nesse mundo. No tempo da guerra — tempo triste! — vieram aqui buscar madeira para os navios, para os carros, para os esteios, e a mata foi descendo, a seguir com o exército. A terra também entra em combate quando os seus filhos pelejam por sua honra.
— E você vive de lenhar, Amâncio?
— Então? Cada um faz o que pode, contanto que trabalhe. O cavoeiro vem, abre a cava, queima a lenha e desce com o carvão que vai dar fogo às casas. Não é um homem honrado? É, faz a sua tarefa. Eu derrubo árvores, vosmecês estudam. Eu trabalho para vosmecês, vosmecês trabalham para mim. É duro o meu serviço, estou com as mãos cheias de calos, mas a minha consciência é leve, porque nunca procedi mal.
Assim dizendo levantou-se, abriu uma janela ao luar e ao perfume do monte:
— Se vosmecês querem apanhar alguma coisa, vão indo — agora as pacas estão bebendo. Eu vou também para mostrar os caminhos. Dá cá a espingarda, minha velha. Fecha a casa e dorme. Vamos! Está uma noite como poucas, e a gente, aqui em cima, parece que está mais perto do céu. Vamos com Deus e a Virgem!
E saímos os três pelo monte adormecido.
Fonte: Olavo Bilac & Coelho Neto. Contos Pátrios. RJ: Francisco Alves, 1931. Disponível em Domínio Público.
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