Aquele dia foi de alvoroço. Cruzei com um amigo acostumado à prosa, estava numa correria e recusou-se a conversar, alegando que não podia perder tempo, pois tinha algumas coisas a concluir antes de começar a escurecer. Espantou-se com a minha ignorância de que o mundo estava prestes a acabar. (Preciso encontrá-lo para ver o que tanto não podia ficar sem fazer).
Por preguiça, não escrevi naquele momento. Se acabasse mesmo, seria desperdício de tempo. Mas entre a dúvida de ficar no meu canto a rezar e sair a indagar e a observar, venceu a curiosidade.
Uma mulher que tinha um caso antigo com um vizinho, convenceu-o a se levantar bem cedo e, sem dar satisfação aos cônjuges, dirigiram-se a um jardim e com olhos fixos no firmamento, de mãos dadas, esperavam a chegada do Senhor.
Uns doaram bens numa atitude desesperada da busca do paraíso. Juliano vendeu esperanças e garantiu lugar privilegiado a quem tinha posses. Aos de menos recursos, por preço camarada, um lugar mais na frente da fila. E faturou um troco legal.
Mães-de-santo cobraram uma fortuna para prorrogar o fim, O pastor Queixada me garantiu que o mundo só não acabou como previsto por sua intercessão e para que desse tempo a alguns irmãos de se arrependerem. Mas me avisou que não vai dar para segurar por muito tempo, portanto, desapeguem-se dos seus bens.
Muitos rezaram, confessaram e se arrependeram.
Minha filha me fez perguntas que nunca ousara. Minha mulher me questionou umas coisas esquisitas, que prometi responder assim que escutasse a primeira trombeta tocar e visse os anjos descendo do céu.
Gumercindo não despregava os olhos do relógio e de nada resolveram os calmantes. Chorava que dava dó, pedia perdão à mulher por falhas e contou coisas que só se conta na hora da morte, e morte certa mesmo.
Chiquinho abriu as gaiolas, soltou todos os pássaros e se escondeu debaixo da cama. Roberval, devedor contumaz, fez mais compras e mandou que todos os credores viessem no dia seguinte. MAS NÃO ACABOU!
Assim, por culpa de um tal de Nostradamus, o que ia até mais ou menos se encrencou. A mulher do Gumercindo retirou o perdão e foi para a casa da mãe com as crianças, não sem antes dar uma bofetada no sujeito e ameaçá-lo de proibir visitas aos filhos.
Chiquinho chora a falta dos pássaros e Roberval se esconde dos cobradores. A mulher e o vizinho tiveram que juntar as trouxas e fugir. Eu ando me esquivando da minha mulher, mas sinto que a qualquer hora ela vai me pegar de jeito e vou ter que responder àquela pergunta, e aí, não sei não… Por tudo isso, Manelão interrogou-se:
"Ele erra na profecia e nóis é que se ferra?”
Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.
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