sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Renato Frata (Renascimento de Matilde)

Ninguém saberia dizer o porquê de ela se vestir de preto de segunda a segunda, uma vida toda, como luto antecipado de si mesma a chorar a própria perda. Trazia os lábios pálidos, dentes pretejados e carregava um ar tímido num longo vestido preto de golas altas, meias de seda preta, sapatos pretos e nenhum acessório que não uma fita preta cingindo-lhe a cintura. Minto. Cruzava o corpo a alça longa da bolsa tão negra quanto o que lhe compunha a postura triste de quem tinha a vida como vã passagem.

Esmolava vida, tão grande sua carência.

Chamava-se Matilde, cujo significado "força na batalha, guerreira forte", contrastava com seu ser, um contrassenso, até que certo dia, por volta das nove da manhã, bateu no seu portão um homem musculoso e negro como sua vestimenta, que lhe pediu trabalho.

Capinaria e limparia todo o quintal por um prato de comida.

Viu fome nos olhos dele e cedeu.

Mas não ficaria bem uma mulher sozinha com um desconhecido pelas cercanias, sabia, porém, olhando para o quintal coberto de mato necessitando limpeza, deixou-o entrar, deu-lhe a enxada e o autorizou a iniciar a tarefa. Trancou-se, fechou as cortinas, meteu os ferrolhos nas portas. Pudica como era, não daria azo às vizinhas faladoras.

Lá pelas onze, com a comida pronta, olhou pela fresta e, temerosa, notou que o homem já havia capinado grande área do quintal. Abriu mais a cortina e confirmou; ele trabalhava bem e, como estava envolvido na tarefa, não lhe ofereceria perigo, afinal, era somente um faminto a procurar trabalho.

Então lhe preparou um belo farnel cuja fumaça espalhava o perfume da comida, e um copo de limonada. Com cuidado, levou o almoço até onde ele estava, e foi ali ao lhe passar o prato e o copo que ela, com os olhos cor de garapa saltando das órbitas brancas como louça, pôde contemplar, extasiada, a massa de músculos negros banhada de suor. Sensação que, aliás, nunca havia sentido.

Viu-se diante de um verdadeiro príncipe de ébano, se é que podia dizer isso, E se arrepiou por inteira, com o frio que instantaneamente lhe nasceu no espinhaço, percorreu-a de ponta a ponta e lhe pôs um tremor.

- Ora veja - disse ele, - Muito obrigado, senhora. Não sabe como a fome castiga! - deitou a enxada, desembrulhou o farnel e, sem se fazer de rogado, se pôs a comer. Era tão grande a fome que nem teve como se preocupar com ela, porém, ela não parava de olhá-lo.

Nunca, em toda a vida, estivera tão próxima de músculos tão fortes, rijos, inspiradores e sublimes. E sofreu gastura enquanto esperava, até que num momento ele entornou o copo de refresco e aí sim, olhou firmemente, compenetrado, sorrindo, enquanto lhe devolvia os objetos.

- É a refeição mais gostosa que já tive!

Receosa em lhe dar trela, tremeu como a sentir movimentos peristálticos em todos órgãos do corpo, o que a fez voltar às pressas. Mas não fechou a porta, nem as janelas, nem as cortinas. Deixou que o vento entrasse e a abanasse para amenizar o encantamento do másculo que suava capinando mato, e saísse pelas janelas levando a nebulosa solidão que tanto a martirizava.

Na manhã seguinte Matilde, enfim, fez jus à força do nome; no varal não pendurou somente roupas pretas estendidas ao sol, mas deixou, balançando silente ao vento, uma cueca verde, já gasta pelo uso, que registrava seu renascimento.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor

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