quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Eduardo Affonso (Agosto)

31 de agosto, 1960

– Você vai à parada do dia 7 tocando bumbo! – garantiu o obstetra à minha mãe.

Não deu.

E ela gostava tanto de setembro.

Casou-se em setembro.

Um de seus filmes favoritos – ao lado de “As neves do Kilimanjaro” e “Candelabro italiano” – era “Quanto setembro vier”.

Quando setembro viesse, viria o segundo filho. De preferência, uma filha.

Esperara um ano antes pela Rita de Cássia, e vim eu. Desta vez, em setembro, Rita de Cássia haveria de vir.

Mas no dia 31 do mês do agouro, dos ventos e dos cachorros loucos, sentiu que o tempo virava – lá fora e dentro de si.

Entrou em trabalho de parto enquanto o céu começava a desabar – ou o céu desabou quando ela começou a sentir as dores, não é mais possível saber, e não faz diferença, pois não há relação de causa e efeito. Ou há?

Imaginemos que à primeira contração correspondeu um relâmpago, à segunda um trovão, às seguintes as janelas fechadas às pressas, e então as telhas voaram, e a água desceu pelas paredes, pelo bocal da lâmpada, até que se pôde ver o céu faiscando por entre as frestas do forro de madeira, e o quarto foi inundado.

Minha vó acudiu com rezas e panos. Meu avô abriu um guarda-chuva sobre a cama, para proteger a parturiente – avô, avó, cama, todos com água já pelas canelas.

Minha mãe queria que tudo acabasse logo – o vendaval, as dores – mas queria também que desse logo meia-noite e fosse setembro. E nem setembro chegava, nem o temporal se ia.

Às 11 e tanto, ainda sob a tempestade e o guarda-chuva,  envolvida pelas ave-marias e salve-rainhas que tentavam subir aos céus se esgueirando por entre os raios e trovões, foi mãe de novo.

No quarto inundado, fez ela mesma o batismo com o resto de água benta guardada no armário, antes que o teto viesse a desabar, e o bebê morresse pagão.

E o batizou de novo, para o caso de os estrondos terem abafado sua voz; e uma terceira vez, por garantia, e talvez porque ainda tivesse forças e houvesse água benta – ou quem sabe já fosse água da bica.

Sobreviveram todos – ela, o bebê, meus avós, os móveis, eu (possivelmente aos berros no colo de alguém), as tesouras do telhado, parte das telhas, o teto.

Ela queria tanto uma menina, que viria quando setembro viesse.

Foi mais um menino.

E ainda era agosto.

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