Damião não gosta de ônibus. Pelo preço — ordem econômica. E pela pressa — ordem psicológica. Um ônibus corre muito. Em três tempos, ei-lo já de trajeto cumprido. O bonde, não. O bonde geme e range. Estaca e arranca, dezenas de vezes. Dá sempre a impressão de cansaço. De trabalho e de ruína.
Damião trepa desastradamente. Esbarra e pisa. Afasta e incomoda. Isso faz parte da ética dos bondes. Da ética e da estética.
Senta-se. Não abre o jornal, que só estampa letras importantes.
Damião sofre a pressão das realidades insignificantes. Insignificantes como a sua própria vida. Considera. A vida é feita de coisas miúdas e graúdas. Miudezas pra uns. E grandezas pra outros. A sua só tinha miudezas. Era um bazar a vida de Damião. Mas um bazar muito ordinário.
O destino, quando quer, vira belchior. “Compra-se e vende-se qualquer objeto — Joias, caçarolas, sapatos.” É desse jeito que, em sua rua, o judeu barbudo se anuncia, enrolando a língua. “Compra-se qualquer objeto.” Damião pensa em comprar um: o esquecimento integral. Mas e o dinheiro? O dinheiro mal dá pra chegar em casa...
A vida — o grande belchior das emoções. Bonito título para um poema impressionista. Ele, Damião, com todos os seus poemas, só encontrou quinquilharia no balcão do mundo.
No entanto, gostaria que acontecessem coisas extraordinárias. Queria alegrias colossais. Ou, então, amarguras extremas. Dessas que chegam a matar. Até a morte, porém, talvez não o impressionasse mais. Não impressionam os fatos cotidianos. Damião não é como os outros, que estão de boca aberta por causa do cego. O cego subiu no bonde com a maior segurança. Suas mãos privilegiadas valem por todas as leis do equilíbrio.
Caminha o veículo, e o novo passageiro fica na frente de Damião.
“Um cego subiu no bonde”. O rapaz tem a mania dos títulos originais. Besteira! O cego subiu... No cérebro de Damião saltitam ideias. É o seu grande defeito. Qualquer incidente banal, que todos esquecem em um segundo, fica vibrando dentro de si.
Existe algo de singular no fato de um cego subir no bonde? Não. Por que, então, essa teimosia que não cessa, essa impertinência que machuca?
Tem vontade perguntar ao vizinho da direita:
— O senhor viu o cego subir no bonde?
(O vizinho responderia que sim).
— Acha formidável?
(O vizinho repetiria a resposta).
— Sabe que há um significado oculto em todas as miudezas do mundo?
O vizinho, espantado, diria:
— O senhor é filósofo?
— Sou funcionário...
— Já comprou as apólices paulistas?
E o vizinho, solicitamente, começaria a falar sobre a grande oportunidade.
Mas não. O vizinho fala, mas é que com o companheiro. Fala sobre a Sul América. Bem que Damião tinha enxergado nele um jeitinho de agente de seguros. Os sintomas ali estavam, à evidência: a pasta, o olhar ligeiro, a palavra pronta...
Atrás de si, duas vozes femininas se digladiam.
— Nem me diga isso, Margot. O Clark Gable, sim. É homem de verdade. E que sorriso! Não pode haver sorriso mais encantador.
A outra protesta:
— Qu’esperança! Antes o Frederic March. É mais bonito. E não usa bigodes. Não gosto de bigode. Acho antipático.
— Pois é o meu fraco. Calcula você que...
E a moça se cala de repente, para dar sinal. Pretendia contar à amiga, certamente, qualquer cena muito feia passada no portão de sua casa.
Saltam as moçoilas. E sobe uma senhora gorda, heroicamente gorda, que ocupa, sozinha, o lugar das senhoritas — das senhoritas que tanto desejavam os rapazes de Hollywood.
Na fachada do cinema próximo, sobe um grande anúncio, com Clark Gable beijando furiosamente a Jean Harlow…
Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 24/12/1936. Disponível em Domínio Público.
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