domingo, 25 de agosto de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Patético como susto improvisado)

O MÉDICO ESMIUÇOU, com seus óculos de grau fundo de garrafa, todos os exames que tinha diante de si. Em seguida, bombardeou sem dó nem piedade, seu pobre cliente. Ou melhor, soltou a notícia fatal em cima dele, sem prévio aviso. Gustavo Pereira da Costa iria, de fato, morrer. Dentro de dois meses, no máximo três. Não passaria disso. Assim que soube do triste pesadelo, o infeliz tratou de ir para o aconchego familiar e esperar pela hora derradeira. Dois meses –, ou três – quem sabe antes... que diferença faria agora? Ao menos, um consolo. Talvez o melhor deles: morreria em paz, ao lado da esposa carinhosa e prestativa e das filhas, a quem amava muito. Para não ser visto chegando de ônibus, tomou um Uber e ordenou ao motorista que tocasse direto para seu lar doce lar. 

Ao chegar no bairro onde morava, não parou no bar costumeiro do Salaminho, nem na farmácia do seu primo Pedro. Tampouco na barbearia do Bento, como sempre fazia ao retornar do trabalho. Também não falou com ninguém. Não telefonou para os conhecidos. A lista se fazia enorme. Achou melhor não alardear o resto dos parentes, nem incomodar os amigos de todos os dias. Naquele momento queria somente a paz e a tranquilidade. Saborear o aconchego da sua poltrona na sala, onde sentava todas as tardes para ver televisão e assistir aos desenhos do Pica-Pau, do Maguila, da Pantera Cor-de-Rosa, do Tom e Jerry e tantos outros. Por puro azar, Gustavo se esqueceu de um vizinho. Um cara realmente chato e pegajoso, que passava os dias rondando do boteco ao supermercado promovendo um alarido infame com os infortúnios alheios. 

Era o Malaquias, conhecido na rua como o “Fofoqueiro Oficial.” De fato, logo que o táxi entrou na rua principal, a primeira pessoa que o Gustavo avistou na calçada, encostado num poste, o próprio, em carne e osso. Aliás, mais osso que carne. Por sua vez, assim que identificou o carro de aluguel chegando, e, dentro dele, o velho Gustavo, não esperou a criatura, pelo menos pagar a corrida. Disparou até o portão da casa do moribundo e assim que ele entrou, bateu palmas. Precisava colher detalhes. Sabia que naquela manhã o “amigo” havia ido ao médico tomar conhecimento dos resultados da bateria de exames que fizera durante toda a semana. O “Leva e traz” também tinha conhecimento que Gustavo corria sério risco de virar defunto. Esse fato, em especial, o perturbava. 

Não que se interessasse pela doença do vizinho, mas a consequência do seu mal. Melhor dito, que tipo de moléstia ele contraíra que causava o óbito nas vítimas tão rápido? Necessitava, pois, colher informações fresquinhas e detalhadas dos acontecimentos mais recentes para passar adiante. Deu azar. No lugar dele, veio atender, a Sulamita, a filha mais velha, e a mais mal-humorada. Puxara o gênio da mãe, dona Soraya. Não levava desaforos, nem mandava recados. Se fazia curta e grossa a beldade. Quando assomou na varanda e se deparou com o sujeito, fez cara fechada e de poucos amigos. 

— Sulinha, meus pêsames...

— O que foi que disse, desgraçado?

Sulamita se espantou. Não para menos, evidentemente:

— Pêsames?

— É. Fiquei sabendo, agorinha mesmo, no bar do Salaminho, que seu pai está mal e segundo comentam, vai morrer. 
Como o vi descendo de um táxi aqui, sem falar com ninguém e ao menos parar no bar, queria saber detalhes.

— Papai realmente está mal. Mas quanto a morrer, ninguém sabe o dia. Só Deus poderia precisar a hora derradeira. Pelo que aprendi, desde que me entendo por gente, só se dá os pêsames a alguém, principalmente aos conhecidos, depois que o “de cujus” estiver abraçado com um caixão e a fuça virada para o cemitério. 

Sulamita tomou fôlego e observou, a carranca cada vez mais fechada: 

— Meu pai, graças ao Eterno, continua firme e forte. Nesse momento está sentado na mesa da cozinha batendo um prato cheio de comida enquanto conversa com a mamãe e minhas outras irmãs. Por acaso o senhor está agourando o meu velho?  Saiba que o amigo poderá embarcar primeiro. Eu, particularmente, adoraria chorar e jogar terra no seu buraco.

— Só queria ser gentil, minha filha.

— Não foi. E não sou sua filha.

— Perdão.

— Nada a perdoar. 

Sulamita bem que teve vontade mandar o fofoqueiro para os cafundós do Judas, mas se conteve:

— Tudo bem, até logo.

Ia virar as costas, mas o coscuvilheiro a segurou pela manga da blusa:

— Espere, Su. Sulinha, me fala. Qual é o problema?

— Que problema?

— O de meu amigo Gustavo, seu pai. De quem mais estamos falando?

Sulamita voltou à posição de antes, muito à contragosto:

— Papai está com a Doença de Chagas.

— Hein?!

Desta vez, quem se aporrinhou, de fato, foi o Malaquias:

— Raios. Quem é esse Chagas?

— Chagas não é ninguém, sua besta. A doença é que é de Chagas.

— Desculpe a insistência. Não sabia que Chagas tinha algum tipo de alteração biológica.

— Chagas não tem porcaria nenhuma, Malaquias. O incômodo de papai é o tal do “Mal de Chagas.”

O bisbilhoteiro comia as unhas – tamanho o nervosismo em saber mais pormenores para passar adiante. E o fazia aumentando a história: 

— “Mal de Chagas” ou doença de...?!

— “Doença de Chagas.” Agora, por favor, passe bem. Tenho mais o que fazer.

Sulamita pela segunda vez se viu puxada pela manga da blusa:

— Não dá para explicar?

—Querido parasita, doença de Chagas é aquela transmitida pelo barbeiro. Pelo barbeiro...

Malaquias, de repente mudou de cor. Perdeu o jeitão de bilhardeiro (mandrião) e entrou, realmente em estado de choque:

— Meu Deus! Então... então eu também... eu também estou correndo sério risco de... de comer capim pela raiz? Cortei, hoje cedo, o cabelo. Seguirei seu pai, com certeza...

Sulamita perdeu, de vez a compostura:

— Vá para o raio que o parta. Que tal amolar os porcos?

— Um minuto, Sulinha, um minuto, por gentileza. A senhora...

—... Senhorita.

— A senhorita sabe muito bem que conheço seu pai faz anos. Peguei suas irmãs Solange e Serena no colo. Ajudei a dar banho. Você, peladinha, uma gracinha. Trocar fraldas, um Deus-nos-acuda. Uma vez socorri junto com a empregada de vocês, a dona Soraya, sua mãe. Ela havia sido mordida pelo cachorro do seu Gabriel da banca de revistas. Seu pai saíra em viagem e sua mãe, coitada, entrou em desespero. Lembro como se fosse hoje...

Sulamita se voltou. Soltava fel pela boca:

— Tudo bem. Concordo com o senhor plenamente. Só acho uma falta de respeito e de camaradagem muito grande vir até aqui, na hora do almoço, dar as condolências por uma pessoa que sequer pensa em morrer. Isso dá asco. Repugnância, nojo. O senhor não tem um pingo de educação? Ou de humanidade? Brinca com a paciência e os sentimentos das pessoas. Que coisa ridícula!...

O metediço, por um momento se quedou em silêncio constrangedor. Abaixou a cabeça e de olhos fixos no medidor de água, ficou completamente impassível, sem saber, na verdade, o que dizer ou como agir. No final, vencido o embaraço, mas bastante envergonhado e arrependido disse à Sulamita: 

— Não tinha intenção, acredite, de dar os pêsames. Eu queria, mesmo, de coração, desejar um restabelecimento rápido para o meu amigo Gustavo. No entanto, em lugar disso, fiz essa droga. Vomitei o que não devia. Sula, pela nossa amizade e pela consideração que devoto por seu pai, igualmente por sua mãe, esqueça o incidente. Juro, não tornarei a cair em tamanha asneira novamente.

— Ok. Está perdoado. Agora, por favor, caia fora. Vaza!  

Nesse momento, gritos de desespero surgiram de dentro da residência. Em seguida, apareceram, apavoradas, na soleira da porta, Solange e Serena, chorando copiosamente:

— Depressa, Sula, depressa, mamãe teve um piripaque e caiu, ao lado do tanque. O pai...  o nosso pai...

Malaquias, atônito, sem saber do que se tratava, não deixou por menos. Berrou, à voz tonitruante:

— Virou defunto. Não disse? Tiro e queda... eu tinha razão... partiuuuuuu... 

— O que é que esse imbecil está falando, Sula? 

— Esse maldito é um verme. Deveria estar queimando a carcaça no inferno.

O linguarudo, entretanto, não chegou a ouvir essas últimas palavras. 

Apressado, como se fugisse da polícia, o petulante deu meia volta e saiu pelo meio da rua gritando a plenos pulmões, que Gustavo, seu melhor amigo havia batido com as doze. Que em consequência, dona Soraya, a esposa, tivera um piripaque. Enquanto isso, Sulamita, atarantada, indagava da irmã:

— O que houve com papai?

— Nada, que eu saiba. Nosso velho está lá dentro tentando reanimar a mamãe.

— O quê, mana? Como é que é?

— Venha, irmã... corra...  

As consanguíneas meteram sebo nas canelas para acudir. A empregada ligou para o hospital. Uma ambulância imediatamente acionada pintou no pedaço, e, com ela, um socorrista. 

Vizinhos foram chegando, aos borbotões, em solidariedade, enquanto parentes residentes próximos, avisados, deram logo o ar da graça. Mas tudo, tudo muito tarde demais. Dona Soraya Pereira da Costa, esposa de Gustavo, havia carimbado o passaporte com bilhete só de ida. Tomada toda a frente da residência, uma enorme multidão se fazia solidária. Gustavo chorava não a sua morte repentina, tendo em vista as palavras de alcoviteiro. Entretanto, do nada, uma debandada se fez geral. De repente, gente se atropelando e fugindo assustada. A cena tomou proporções gigantescas quando o próprio Gustavo escancarou seus olhos na frente da sala e dali seguiu inteiraço em direção a varanda, agradecendo a simpatia e a piedade dos domiciliados em massa descomedida albergados em seu portão.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Nenhum comentário: