segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Vereda da Poesia = 88 =


Trova de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Mãe! quisera eu me deitar
junto à parede, aos teus pés.
adormecer e sonhar,
sentindo os teus cafunés.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Pelotas/RS

CRISTINA CECCAGNO

(In) definição

procuro nas palavras de outras pessoas
algo que defina o que sinto por ti
pela insanidade que nos envolve
pela tua ausência

nada nos define
nada nos enquadra

procuro nas lembranças
uma pista do tempo que vivemos
do tempo que perdemos
e do que se perdeu ao longo do tempo

nada nos define
nada nos enquadra

procuro nos andarilhos
o movimento certo para seguir adiante
para acertar o passo
para dançar a música certa
para inventar um ritmo

nada nos define
nada nos enquadra

procuro a ti
nos mesmos lugares
e só te encontro dentro de mim
isso me define: tua
isso me enquadra: pra sempre.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Curitiba/PR

NEI GARCEZ

Quando a vida fica tensa,
na iminência de um perigo,
como faz a diferença 
a presença de um amigo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto sobre Cenas do Cotidiano

RICARDO CAMACHO
Rio de Janeiro/RJ

Dia de branco

No recomeço, à madrugada escura,
Em cumprimento do dever, sozinho,
Embalo os passos, surdos, no caminho,
Principiando a laboral ventura.

Em meio à suburbana arquitetura,
Adentro a multidão, em desalinho,
Que marcha resmungando bem baixinho
Como se encaminhando à sepultura...

As faces, fundos sulcos de canseira,
Evidenciam a segunda-feira
E o velho realismo suburbano...

Neste relato, a cena costumeira 
Traduz a romaria rotineira 
Dos proletários no cotidiano.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Salinópolis/PA, 2005

EDUARDO TOLEDO 
Pouso Alegre/MG

Vaga o meu sonho ao luar,
num dilema permanente:
- Se pesca a estrela-do-mar...
- Se colhe a estrela cadente!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Montenegro/RS

DENISE MULLER GARATEGUY

Todas as tuas cores

Tateio
Teus bolsos,
Encontro
Sementes
E
Nos teus olhos
Vejo
Encardidas ilusões
Há pedras
De todos os tipos
Segurando portas
Por sobre a mesa
Há os vasos de flores
De tomates
E
De pimentas
Há os gatos
Os livros
Os acordes
E as letras
A dura indecisão
Transbordando copos
E pensamentos

Os sonhos
Nos escapam...

Tua presença
Vinga-se
De mim
Na perfeição
De ser
Como
És
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Quem me dera ser a hera
pela parede subir,
para chegar à janela
do teu quarto de dormir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto sobre Cenas do Cotidiano

ELVIRA DRUMMOND
Fortaleza/CE

Poluição sonora

Buzinas e sirenes… britadeira! 
Quisera por o mundo “na surdina”
(recurso que o piano discrimina 
a matizar os sons, sobremaneira…)

No meio da avenida, a betoneira 
castiga meus ouvidos, me alucina…
(a rua dos meus tempos de menina
foi palco de avezinha cantadeira). 

Se agora adoto o tom de nostalgia, 
é fuga da audição que se arrelia
com o cruel triunfo do ruído… 

A música que a mídia, por capricho, 
impõe ao cidadão é puro lixo… 
Quisera, Deus, ter pálpebras o ouvido!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

A vitória é de quem ganha,
quando vence a própria luta.
Só mesmo aquele que apanha,
dá mais valor à disputa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Porto Alegre/RS

GILBERTO MONTEIRO MAZOT

Cadafalso de mim

Trancado em meu baú de desejos, sonhos, loucuras,
Meu coração faz-me cadafalso de mim.

Atuando meu teatro interior,
Faz-me sorrir,
Aplaudir
Despedaçar-me de chorar por ti.

Contraceno no espelho a consciência inconsciente
de que teu desejo é meu desejo.
Desejo que se torna meu por incorporar tudo o que sente.

Se sente frio,
Frio eu sinto,
Se fome sente,
Sinto fome,
Se pensa em mim,
Teu amor me consome!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Num dos quadros se consterna...
vê o pintor... “mete o bedelho”:
- Que homem feio! Arte moderna?
- Não, meu senhor... é um espelho!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto sobre Cenas do Cotidiano

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI
Bandeirantes/PR

Labor sem fim

Manhã de sol… cidade em movimento,
calçadas cheias, trânsito lotado
e em muitas mentes flui um pensamento: 
“chegar no emprego e o ponto, registrado.”

Trabalho e casa… nesta, pouco alento;
o banho do casal, não prolongado.
Cuidar dos filhos, roupas, alimento…
Novela e futebol?… No feriado!

Criança, o aposentado e o preguiçoso 
(um outro grupo, às vezes, ocioso),
desfrutam dos aromas de um jardim.

Na madrugada a pressa se esvazia…
Vem nova aurora, instiga à correria 
 e tal labor parece ser sem fim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Bauru/SP

HELVÉCIO BARROS
Macau/RN 1909 – 1995 Bauru/SP

Há caprichos diferentes 
em certas cartas lacradas: 
são os gritos contundentes 
das reticências caladas… 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Sapucaia do Sul/RS

IONITA KÉSIA PEREIRA

Não se afaste de mim

Não se afaste de mim
Além de meu olhar

Não se declare com ardor
Além do “eu te amo”

Não cesse seu carinho
Além de um abraço

Não se desnude em você
Além de sua alma

Não dê causa à embriaguez
Além de meus beijos

Não se revele em cores
Além de seus sonhos

Não queira estar comigo
Além de um momento chamado sempre

E não esperarei de você
Além de seu amor por mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de de Magé/RJ

REGINA CÉLIA ANDRADE

O criador do universo
tendo o belo como tema,
pôs em cada estrela um verso
e fez da noite um poema.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto sobre Cenas do Cotidiano

ARLINDO TADEU HAGEN
Juiz de Fora/MG

Os sons da madrugada

Um som parece vir da casa ao lado,
uma TV, um rádio, uma vitrola,
demonstrando que alguém está acordado,
sofrendo a mesma insônia que me assola.

Ao longe um galo doido cantarola,
num ritmo repetido e alucinado.
Mais longe ainda, o som de uma viola
dá voz a um coração apaixonado.

Enquanto os gatos miam namorando,
eu sigo em minha cama reparando
um bando de cachorros a latir.

Nasce o dia... os ruídos da alvorada
vão abafando os sons da madrugada
de quem passou a noite sem dormir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Salinópolis/PA, 2005

IZO GOLDMAN  
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Brigaram o céu e o mar,
ficaram "de bem" depois,
quando Deus os fez parar,
dando estrelas para os dois!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Pelotas/RS

ISABEL CRISTINA SILVA VARGAS

Louvação

Cantam os pássaros
Saudando o sol
A vida que aqui transborda.
Ao seu canto
Acrescento minha prece
Cheia de amor e saudade
Louvando tua preciosa vida
Que a todos encantou.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Procura-se ortopedista,
de preferência letrado,
pra vaga de especialista
em versos de pé quebrado…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Cachoeirinha/RS

MARCELO ALLGAYER CANTO

Quem é você?

Quem é você?
Que acalma meu coração
Pelo sabor de todas as noites
Seja em qualquer estação.

Quem é você?
Que com sua simplicidade
Me mostra a possibilidade
De um viver despreocupado
Regado pelo amor.

Quem é você?
Que não precisa me procurar na noite,
Pois me encontra dia a dia
Sem clamor, mas com a vida ganha.

Quem é você?
Que me conquistou pela paciência
Seguindo meus passos “descalçados”
Pelas ilusões de meus dias.

Quem é você?
Que ratificou meus caminhos
Com seus doces e suaves carinhos
Me salvando dos despropósitos.

Quem é você?
Você é a minha amada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Pedro Leopoldo/MG

WAGNER MARQUES LOPES

Pessoa determinada,
de fé honrosa e esplendente,
sempre faz de um quase nada
um brilhante continente!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de João Pessoa/PB

No nordeste do Brasil te encontramos
Onde vemos o encanto de um verde mar
És a terra gloriosa que amamos
E o teu nome exaltamos a cantar
De um grande presidente de estado
Tu ressurgiste, ó, cidade vitoriosa!
Se tens o nome pelas ondas do passado
Não deixarás de ser sempre valorosa

Tua bandeira simboliza o heroísmo
De um exemplo imortal
Que em teu nome ficou
E no grito do nego
Defendeu o teu povo rebelde
E te glorificou

No passado, outros nomes recebeste
Consagramos o teu solo, sempre a exaltar
A bravura e a nobreza não perdeste
João pessoa, tu és hoje, a vibrar
Teus combates sempre foram triunfantes
E o heroísmo a história nos declara
E evocando teus primeiros habitantes
Tu serás sempre a cidade tabajara

Tens palmeiras no teu parque mais formoso
A lagoa circulando sempre a inspirar
O poeta decantando orgulhoso
Vem fazer tua beleza proclamar
Tão formosas as acácias que se espargem
Em ornamento pelas tuas avenidas
São tantas flores escondendo a folhagem
Deixando enfim, tuas árvores floridas

Tambaú trazendo a brisa mansamente
Num afago que nos prende sob o céu anil
E o soberbo cabo branco evidente
Na paisagem litorânea do Brasil
Nos teus mares as jangadas velejando
No horizonte vem o sol resplandescente
Quanta grandeza que encerras inspirando
No teu valor consagrado eternamente!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Curitiba/PR

MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

Plácido, corres no leito,
às margens, onde nasci;
ó Iguaçu, trago em meu peito
a água que é parte de ti!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto sobre Cenas do Cotidiano

JÉRSON LIMA DE BRITO
Porto Velho/RO

Os portais

O refletor celeste, ao fim da lida,
deitado sobre densos matagais,
expande o louro abraço e dá sinais
de sua majestosa despedida.

As águas, de beleza desmedida,
à espera das pinturas noturnais,
transformam as correntes em portais
por onde passa a luz enfraquecida.

Um barco, a deslizar no espelho, adorna
a tarde morrediça, ainda morna,
repleta de magia, graça e encanto.

O rio encanta todas as retinas
que enlaçam as imagens vespertinas,
justificando os versos deste canto...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Fortaleza/CE

FRANCISCO PESSOA 
FRANCISCO JOSÉ PESSOA DE ANDRADE REIS
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Ciúme é como se fosse
um veneno sedutor:
amargo, se mostra doce,
matando aos poucos o amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

Os ladrões e o asno

Brigavam dois ladrões por um roubado burro:
Com ele um quer ficar, quer outro expô-lo à venda.
E enquanto a discussão entre ambos corre a murro,
Terceiro vem que empolga a causa da contenda.

Não raro uma província ao burro é semelhante,
E uns príncipes quaisquer, iguais aos salteadores:
O Turco, o Transilvano, o Húngaro — em que instante,
Em vez de dois que busco, eis três dos tais senhores!

Abunda esta fazenda — embora com frequência
Nenhum lograr consiga a terra conquistada,
Se vem quarto ladrão que rindo da pendência
Cavalga no jumento e aos três dá surriada.

Recordando Velhas Canções (Nega do cabelo duro)


(batucada/carnaval, 1942)

Compositores: David Nasser e Rubens Soares

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Ondulado, permanente
Teu cabelo é de sereia
E a pergunta sai da gente
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Quando tu entras na roda
O teu corpo bamboleia
Teu cabelo esta na moda
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Teu cabelo, a couve-flor
Tem um quê que me tonteia
Minha nêga, meu amor
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Mise en plis à ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Tomas banho em Botafogo
Qual é o pente que te penteia, ô nêga?

Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
(Ô Nêga!)

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?

Nêga do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Celebração da Beleza Negra em 'Nega do Cabelo Duro'
A música 'Nega do Cabelo Duro', é uma celebração da beleza e da singularidade dos cabelos crespos e cacheados. A repetição da pergunta 'Qual é o pente que te penteia?' destaca a curiosidade e a admiração pela forma como a mulher negra cuida de seu cabelo, que é descrito de maneira poética e carinhosa ao longo da canção.

A letra faz uso de metáforas e comparações para exaltar a beleza natural dos cabelos crespos, como quando menciona que o cabelo é 'de sereia' ou 'a couve-flor'. Essas imagens reforçam a ideia de que o cabelo crespo é algo especial e digno de admiração. Além disso, a música também aborda a resistência e a durabilidade dos penteados, sugerindo que, mesmo em condições adversas, o cabelo permanece impecável, o que pode ser interpretado como uma metáfora para a resiliência da mulher negra.

Culturalmente, 'Nega do Cabelo Duro' reflete um período em que a música popular brasileira começava a reconhecer e valorizar a diversidade étnica e cultural do país. O grupo Anjos do Inferno, conhecido por seu estilo alegre e dançante, contribuiu para essa valorização através de suas canções. A música, portanto, não apenas celebra a beleza física, mas também a identidade e a cultura afro-brasileira, promovendo um senso de orgulho e pertencimento.

Apresentando semelhanças com a melodia do velho samba de Sinhô, "Não Quero Saber Mais Dela", a batucada "Nega do Cabelo Duro" foi um dos destaques do carnaval de 42, nas vozes dos Anjos do Inferno.

Numa época em que ninguém se preocupava em ser ou não ser politicamente correto, a composição satirizava o cabelo da personagem ("Nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia?...") e a moda feminina, então no auge, de frisar os cabelos ("Misampli a ferro e fogo / não desmancha nem na areia..."), a chamada ondulação permanente. Aliás, os temas capilares predominaram no carnaval de 42, pois, além de "Nega do Cabelo Duro", fizeram sucesso as marchinhas "Nós, os carecas" e "Nós os Cabeleiras".

Fontes:
A Canção no Tempo - Vol. 1 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello - Editora 34.

domingo, 18 de agosto de 2024

José Feldman (Versejando) 146

 

O. Henry (Dois Cavalheiros no Dia de Ação de Graças)

Há um dia que é nosso. Há um dia em que todos nós, americanos que não nos fizemos por conta própria, voltamos ao antigo lar para comer biscoitos caseiros e nos admirar de que a velha bomba pareça estar muito mais perto do alpendre do que outrora. Bendito seja esse dia. O Presidente Roosevelt no-lo deu. Já ouvimos falar nos puritanos, mas não lembramos exatamente quem fossem. De qualquer modo, aposto que poderemos vencê-los se tentarem desembarcar de novo. Plymouth Rocks? Bem, isso soa mais familiar. Muitos de nós tivemos de voltar aos frangos depois que o Truste do Peru entrou em campo. Mas alguém em Washington está-lhe passando informações adiantadas acerca desses decretos do Dia de Ação de Graças.

A grande cidade a leste dos pauis de uvas silvestres fez do Dia de Ação de Graças uma instituição. A última quinta-feira de novembro é o único dia do ano em que ela reconhece a parte da América situada para além da estação de barcos. Sim, é um dia de celebração exclusivamente americano.

Vamos agora à história que irá provar-vos que temos, neste lado de oceano, tradições que estão envelhecendo muito mais rapidamente do que as da Inglaterra — graças à nossa diligência e iniciativa.

Stuffy Peter tomou o seu lugar no terceiro banco à direita de quem entre na Union Square pelo lado leste, no passeio oposto à fonte. Todo Dia de Ação de Graças, havia já nove anos, sentava-se ele nesse banco, pontualmente, à 1 hora. Pois todas as vezes em que o fizera haviam-lhe acontecido coisas — coisas à maneira de Charles Dickens, que lhe enfunavam o colete à altura do coração, e do lado oposto também.

Mas a última aparição de Stuffy Peter no local anual de encontro parecia ter sido mais resultado de um hábito do que de uma fome anual que, conforme o pensamento aparente dos filantropos, aflige os pobres a tão dilatados intervalos.

É certo que Peter não estava faminto. Vinha de uma festa que, de suas faculdades corporais, deixara-lhe apenas as de respiração e locomoção. Seus filhos semelhavam duas pálidas groselhas firmemente embutidas numa máscara de poteia inchada e suja de molho. A respiração saía-lhe em curtos ofegos; uma senatorial papada de tecido adiposo negava-lhe base apropriada para a gola erguida do casaco. Botões que lhe tinham sido costurados à roupa por piedosos dedos do Exército da Salvação, havia uma semana, saltavam como pipocas, juncando a terra em derredor. Estava maltrapilho, com o peitilho da camisa rasgado de alto a baixo. Entretanto, a brisa de novembro, saturada de minúsculos flocos de neve, só lhe trazia uma grata frescura. Pois Stuffy Peter estava abarrotado de calorias produzidas por um jantar ultracopioso, iniciado com ostras e terminado por pudim de passas, incluindo (segundo lhe parecia) todos os perus assados, e batatas cozidas, e saladas de frango, e bolos de abóbora, e sorvetes do mundo. Dado o que, ele sentou-se repleto e contemplou o mundo com o olhar de desprezo de quem acaba de jantar regiamente.

A refeição fora inesperada. Passara diante de uma mansão de tijolos vermelhos, perto do início da Quinta Avenida, na qual viviam duas velhas senhoras, de famílía antiga e cultuadoras da tradição. Elas negavam mesmo a existência de Nova Iorque e acreditavam que o Dia de Ação de Graças fora promulgado apenas para a Washington Square, Um de seus hábitos tradicionais era o de postar um criado no portão dos fundos, com ordem de admitir o primeiro transeunte faminto que por ali passasse depois de soar meio-dia, e banqueteá-lo à farta. Acontecera isso a Stuffy Peter, no seu trajeto para o parque, e os senescais o agarraram para cumprir com o costume do castelo.

Depois de ter contemplado o panorama à sua frente durante dez minutos, Stuffy Peter tornou-se cônscio de um desejo de campo de visão mais variado. Com um esforço tremendo, moveu a cabeça lentamente para a esquerda. E então seus olhos se esbugalharam apavorados; parou de respirar, e as cambaias extremidades de suas pernas curtas mexeram-se, raspando o cascalho.

Porque o Velho Cavalheiro atravessava a Quarta Avenida em demanda do seu banco.

Todos os Dias de Ação de Graças, nos últimos nove anos, o Velho Cavalheiro aparecera e encontrara Stuffy Peter no seu banco. Era um encontro que o Velho Cavalheiro estava tentando converter em tradição. Todos os Dias de Ação de Graças, havia nove anos, ele encontrara Stuffy Peter ali, levara-o a um restaurante, e ficara a vê-lo comer um lauto jantar. Faziam tais coisas na Inglaterra inconscientemente. Mas este é um país jovem, e nove anos não são tão pouco. O velho Cavalheiro era um fervoroso patriota americano, e considerava-se pioneiro no tocante às tradições americanas. Para nos tornarmos pitorescos, cumpre-nos dizer a mesma coisa durante longo tempo, sem desfalecimentos. Coisas assim como colecionar folhetos semanais sobre segurança industrial. Ou limpar as ruas.

O Velho Cavalheiro encaminhou-se, teso e solene, para a Instituição que estava apadrinhando. É bem verdade que o sentimento anual de Stuffy Peter não tinha nenhum caráter nacional, como o têm, na Inglaterra, a Magna Carta ou o presunto do desjejum. Mas era um passo. Era quase feudal. Mostrava, pelo menos, que um Costume não era impossível em Nova lor...hm, quero dizer... na América.

O Velho Cavalheiro era magro, alto e sexagenário. Estava todo vestido de preto, e usava óculos de modelo antiquado, daqueles que vivem a escorregar do nariz. Seu cabelo mostrava-se mais alvo e mais ralo do que no ano anterior, e ele parecia apoiar-se mais na sua longa bengala retorcida, de grande castão nodoso.

À medida que seu benfeitor oficial avançava, Stuffy arquejava e tremia como o obeso cãozinho fraldeiro de uma senhora quando um vira-lata rosna para ele. Teria voado dali, mas nem toda a habilidade de Santos Dumont o conseguiria arrancar do banco. Os fâmulos das duas velhas damas haviam feito um bom trabalho.

— Bom dia — disse o Velho Cavalheiro. — Estou contente de ver que as vicissitudes de outro ano o pouparam, permitindo-lhe que se movimentasse, em perfeita saúde, por este belo mundo. Por tal bênção o Dia de Ação de Graças se faz bem anunciar a nós ambos. Se vier comigo, meu bom homem, eu lhe propiciarei um jantar que fará com que o seu ser físico se harmonize com o mental.

Todas as vezes o Velho Cavalheiro dizia as mesmas palavras. Todos os Dias de Ação de Graças, durante nove anos. As próprias palavras quase se constituíam numa instituição. Nada se lhes podia comparar, salvo a Declaração da Independência. Nas ocasiões anteriores, tinham sido música para os ouvidos de Stuffy. Mas agora ele olhava para o rosto do velho Cavalheiro com expressão de lancinante agonia. A neve fina quase chiava quando lhe tocava a fronte suada. Mas o Velho Cavalheiro teve um ligeiro tremor e voltou as costas ao vento.

Stuffy sempre conjecturara por que razão o Velho Cavalheiro recitava a sua fala em tom tristonho. Não sabia que era porque desejava, todas as vezes, que um filho o sucedesse. Um filho que ali viesse depois que ele se fosse; um filho que se postasse, orgulhoso e forte, diante de algum futuro Stuffy e lhe dissesse: "Em memória do meu pai". Então sim, a coisa seria uma Instituição.

Mas o Velho Cavalheiro não tinha parentes. Vivia em quartos alugados, numa velha e decadente mansão familiar de grés pardo, situada numa das ruas tranquilas a leste do parque. No inverno, plantava fucsias numa pequena estufa do tamanho de uma claraboia de navio. Na primavera, desfilava na parada de Páscoa. No verão, vivia numa casa de fazenda, nas colinas de New Jersey, e, sentado numa poltrona de vime, falava de uma borboleta, a ornithoptera amphrisíus, que esperava encontrar algum dia. No outono, patrocinava um jantar para Stuffy. Essas eram as ocupações do Velho Cavalheiro.

Stuffy Peter contemplou-o durante meio minuto, apoquentado e inerme na sua comiseração por si mesmo. Os olhos do Velho Cavalheiro reluziam do prazer de dar. Sua face se ia tornando mais enrugada a cada ano,  mas o laço de sua gravatinha negra continuava elegante como sempre, sua camisa era alva e bonita, e seu bigode encanecido tinha as pontas airosamente reviradas. Stuffy produziu um ruído semelhante ao de ervilhas borborejando numa panela. Estava tentando falar. Como o Velho Cavalheiro ouvira os sons nove vezes antes, imediatamente interpretou-os como a velha fórmula de aceitação de Stuffy:

— Muito obrigado, patrão, Vou sim, e muito obrigado. Estou com muita fome, patrão.

O coma da repleção (saturação) não impedira que penetrasse a mente de Stuffy a convicção de que era a base de uma instituição. Seu apetite do Dia de Ação de Graças não lhe pertencia; pertencia, por todos os sagrados direitos do costume estabelecido, se não pelo atual Estado de Prescrições, àquele bondoso ancião, que o obtivera por direito de precedência. Na verdade, a América é livre, mas para findar a tradição alguém tem de ser estribilho — uma decimal periódica. Os heróis não são todos de aço e ouro. Eis aqui um que empunha apenas armas de ferro, tenuemente niqueladas, e de latão. 

O Velho Cavalheiro levou o seu protegido anual ao restaurante, até a mesa onde o festim sempre ocorrera. Foram reconhecidos.

— Aí vem o velhote — disse um garçom — que paga um almoço para o mesmo vagabundo, todo Dia de Ação de Graças.

O Velho Cavalheiro sentou-se à mesa, fulgindo como uma pérola esfumaçada na sua pedra fundamental de futura antiga Tradição. Os garçons abarrotaram a mesa de comida dominical — e Stuffy, com um suspiro que foi erroneamente tomado como expressão de fome, ergueu faca e garfo e conquistou para si uma coroa de imperecível louro.

Nenhum herói jamais abriu caminho tão denodadamente por entre as fileiras inimigas. Peru, postas de carne, sopas, legumes, bolos desapareceram tão depressa quanto lhe foram servidos. Repleto até os gorgomilos quando adentrara o restaurante, o odor de comida quase o fizera perder sua honra de cavalheiro, mas ele se reanimara, como bravo cavaleiro que era. Viu a expressão de felicidade beneficente no rosto do Velho Cavalheiro (uma expressão mais feliz do que a que as fücsias e aornithoptera amphrisius jamais lhe poderiam trazer) e não tivera coragem de vê-la empalidecer.

Ao cabo de uma hora, Stuffy recostou-se na cadeira com a batalha ganha.

— Muitíssimo obrigado, patrão — bufou, como um cano de vapor furado —, muitíssimo obrigado pelo ótimo almoço.

Ergueu-se então pesadamente, com os olhos vidrados, e dirigiu-se para a cozinha. Um garçom fê-lo girar como pião, e o pôs a caminho da porta. O Velho Cavalheiro contou cuidadosamente um dólar e trinta em moedas de prata, deixando três níqueis de gorjeta para o garçom.

Separaram-se, como todos os anos, à porta: o Velho Cavalheiro foi para baixo, Stuffy para cima.

Stuffy virou a primeira esquina e ficou imóvel durante um instante. Depois, pareceu enfunar seus trapos como uma coruja enfuna as penas, e desabou na calçada como um cavalo atacado de insolação.

Quando veio a ambulância, o jovem cirurgião e o condutor praguejaram em voz baixa diante do seu peso. Não havia cheiro de uísque que justificasse a transferência para o carro de presos, dado o que Stuffy e seus dois almoços foram para o hospital. Ali o estenderam numa cama e começaram a fazer-lhes exames em busca de doenças fora do comum, na esperança de poderem usar o bisturi para a solução de algum problema.

E, ai! Uma hora mais tarde outra ambulância trouxe o Velho Cavalheiro. Deitaram-no noutra cama e começaram a falar de apendicite, pois o paciente parecia estar em condições de pagar a conta da operação.

Mas logo depois um dos jovens doutores encontrou-se com uma das jovens enfermeiras de cujos olhos gostava, e deteve-se para prosear com ela sobre os casos.

— Aquele simpático e idoso cavalheiro ali, está vendo? — disse. Imaginaria você que é um caso de inanição, quase? Família antiga e orgulhosa, acho. Contou-me que não comia nada há mais de três dias.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.