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domingo, 18 de agosto de 2024

O texto literário em Preto e Branco (“Maria e Maria”, de Sinclair Pozza Casemiro)

 
Conto publicado neste blog em 22 de julho de 2020, no link 

RESUMO

Caminhoneiro Feliz
Tião, um caminhoneiro feliz, vive com suas duas Marias: a esposa e a filhinha. Apesar das dificuldades, ele se considera afortunado por ter um caminhão e uma família amorosa. As Marias são seu maior tesouro, e juntos enfrentam os desafios da vida.

A Vida na Estrada
A rotina de Tião é marcada por viagens e o convívio com os amigos. Maria, sempre rindo, cuida da casa e da filha, transformando a boleia do caminhão em lar. A amizade e o chimarrão são essenciais em sua vida simples.

Mudança e Mistério
A chegada de novos vizinhos traz mudanças. A história de um rancho amaldiçoado, onde uma mulher foi assassinada, assombra a vizinhança. Tião, cético, ignora os avisos, mas Maria começa a mudar, perdendo a alegria.

Tragédia e Consequências
A tensão aumenta quando Tião descobre a infidelidade de Maria, resultando em tragédia. Ele volta para casa e, em um momento de desespero, confronta a realidade devastadora. A dor da perda transforma sua vida para sempre.

ANÁLISE

Amor e Perda
A narrativa explora os laços familiares e a fragilidade do amor. Tião, inicialmente contente, enfrenta a desilusão e a tragédia.

Cultura e Vida Rural
A história retrata a vida rural no Brasil, com suas tradições, desafios e a luta diária por sobrevivência.

Mistério e Sobrenatural
Elementos do sobrenatural permeiam a narrativa, refletindo as crenças populares sobre lugares amaldiçoados e o impacto do passado nas vidas presentes.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

Tião
Um caminhoneiro otimista e trabalhador, que valoriza sua família acima de tudo. Sua alegria é contagiante, mas ele se torna vulnerável às circunstâncias e à traição.

Maria (esposa)
Uma mulher forte e amorosa, que enfrenta as adversidades com graça. Sua risada é um símbolo de esperança, mas sua mudança de comportamento reflete a tensão crescente em sua vida.

Maria (filha)
A criança que representa a inocência e a alegria da família. Sua presença traz luz aos dias de Tião, mas sua tragédia acentua a dor do pai.

TEMAS CENTRAIS

Amor e Compromisso
A história examina como o amor pode ser testado e como os compromissos podem ser rompidos. Tião e Maria compartilham um laço profundo, mas as dificuldades e a traição geram uma fissura irreparável.

Superstição e Folclore
A presença do rancho amaldiçoado e as histórias locais refletem as crenças populares sobre o sobrenatural. Esses elementos criam uma atmosfera de mistério e tensão, influenciando as ações dos personagens.

A Vida Rural
O cotidiano de Tião e sua família é retratado com riqueza de detalhes, mostrando as dificuldades enfrentadas por quem vive no campo. As interações sociais, o trabalho duro e a simplicidade da vida rural são centrais para a narrativa.

DESENVOLVIMENTO DA TRAMA

A Rotina de Tião
Tião e suas Marias desfrutam de momentos simples, como passeios no caminhão e encontros com amigos. Essa felicidade inicial estabelece um contraste com os eventos futuros.

Chegada dos Novos Vizinhos
A mudança traz novos personagens e provoca rumores sobre o passado do rancho. A curiosidade e o medo começam a afetar a dinâmica da vizinhança.

Desvio de Comportamento
A transformação de Maria, que passa a demonstrar tristeza e desinteresse, gera preocupação em Tião e começa a criar uma fissura na relação.

A Tragédia
O clímax ocorre quando Tião descobre a traição. A cena final, marcada pela violência e perda, resulta em um desfecho trágico que ecoa os temas de desilusão e arrependimento.

FOLCLORE

Na narrativa de "Maria e Maria", vários elementos de folclore são destacados, criando uma atmosfera rica e carregada de simbolismo.

1. A Maldição do Rancho
A história sobre o rancho amaldiçoado, onde uma mulher foi assassinada, reflete crenças populares sobre lugares assombrados. Essa narrativa é central para a tensão da história, trazendo um senso de mistério e medo.

2. Lendas Locais
O passado trágico da mulher assassinada e o choro do bebê perdido são elementos que evocam lendas locais, conectando a comunidade a um passado sombrio e a histórias que circulam entre os moradores.

3. Superstições
A ideia de que tragédias atraem mais tragédias, como mencionado pelo amigo de Tião, demonstra a crença popular de que certas situações podem ser "amaldiçoadas" ou trazer má sorte.

4. Chimarrão e Tradições Regionais
O ato de compartilhar chimarrão entre amigos é uma prática cultural que simboliza união e acolhimento, ressaltando as tradições e a convivência social da comunidade.

5. Crenças sobre o Sobrenatural
Os personagens discutem fenômenos sobrenaturais, como a aparição da mulher que busca seu filho, mostrando como o sobrenatural permeia a vida cotidiana e afeta as emoções dos personagens.

Esses elementos folclóricos não apenas enriquecem a narrativa, mas também refletem a cultura e as crenças da comunidade, conectando os personagens a uma tradição mais ampla que molda suas vidas e interações.

Os elementos de folclore em "Maria e Maria" têm um impacto significativo na identidade cultural da comunidade de várias maneiras:

1. Preservação da História Coletiva
As lendas e histórias, como a do rancho amaldiçoado, ajudam a preservar a memória coletiva da comunidade. Elas conectam as gerações passadas às presentes, criando um senso de continuidade e identidade.

2. Construção de Valores e Crenças
As superstições e crenças locais moldam a forma como os moradores enxergam o mundo. Tais crenças influenciam decisões, comportamentos e interações sociais, promovendo uma cultura de precaução e respeito às tradições.

3. Fortalecimento dos Laços Comunitários
Práticas culturais, como o compartilhamento de chimarrão, reforçam laços sociais e criam um sentido de pertencimento. Esses momentos de convivência fortalecem a identidade da comunidade, promovendo solidariedade e apoio mútuo.

4. Reflexão sobre Medos e Desafios
As histórias de horror e mistério, como a do rancho, permitem que a comunidade explore e expresse medos coletivos. Isso ajuda a criar um espaço seguro para discutir problemas e desafios sociais, refletindo a resiliência da comunidade.

5. Identidade Regional
Os elementos folclóricos, incluindo costumes e lendas, contribuem para uma identidade regional única. Eles diferenciam a comunidade de outras, celebrando suas particularidades e características.

6. Relação com a Natureza
Muitas histórias e crenças estão intrinsicamente ligadas à natureza e ao ambiente local, promovendo um respeito profundo pelo espaço que habitam e enfatizando a interdependência entre as pessoas e seu entorno.

Esses aspectos não apenas moldam a vida cotidiana, mas também ajudam a construir uma base sólida para a identidade cultural da comunidade, promovendo um sentimento de união e continuidade frente aos desafios da vida moderna.

CONCLUSÃO

A obra de Sinclair Pozza Casemiro nos convida a refletir sobre a complexidade das relações humanas, a luta pela felicidade e as consequências de nossas escolhas. A jornada de Tião é um lembrete de que a vida pode mudar rapidamente, e que o amor, embora forte, pode ser quebrado por desilusões.

"Maria e Maria" é uma história que capta a essência da vida rural, explorando a complexidade das emoções humanas. Sinclair Pozza Casemiro nos lembra que a felicidade é efêmera e que os laços familiares podem ser tanto fonte de alegria quanto de dor. Essa dualidade, entre amor e tragédia, ressoa profundamente, tornando a narrativa uma reflexão poderosa sobre as relações e suas consequências.

Fonte: Análise por José Feldman. Open IA 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Sinclair Pozza Casemiro (Rasga-Mortalha)


O assunto é destino. Na parada das andanças à procura do Caminho de Peabiru* na COMCAM*, nos rastros das histórias do povo e nas marcas escondidas na mata, nos rios, o trio descansava sob o tardio lusco-fusco que convidava a filosofar.

Dele ninguém escapa. Não, não existe destino, destino é pra quem não sabe aonde ir. Destino é tão certo, inútil tentar escapar. E por ai vai.

A sabedoria dos jovens, da urbanidade, recorria aos livros, autores, poetas, religiosos, pensadores os mais diversos. Mas, Seu Ferreira, lá da Comunidade Boa Esperança, sem letras escritas, mas cheio de palavras ouvidas e ditas, diante da discussão sem fim, mostrou que tinha a resposta e resolveu acabar com a prosa.

Empina a barriga, ajusta o jeans e a branca camisa, passadinha, ainda, avermelha e extravasa:

– Aqui tem umas curuja, daquelas que só pra vê. É, sim, Clariça. Assusta homi barbado. Mas, cumigo, não. Até rasga-mortalha enfrentei.

– Rasga -mortalha, Seu Ferreira? Que é isso?

– Uma curuja, Clariça, que trais a morte, agorera. Ali por vorta das seis, quando ela dá de vir, é só isperá... lá vem a tragédi nu passo.

– Nossa, Seu Ferreira. É sempre assim? Quer dizer que ela aparece e dá azar? Ou vem avisar o destino?

– Inté hoje num sei. Mais qui ela trais morte, é verdade. Eu tenhu cumigu que é mardade dela. Ela é feia, um zóio istralado, um jeito sério, seco di oiá. E um voo curto, direto pra quem ela qué azará. Toda casa tem uma história da rasga-mortalha. Ninguém qui morreu, num dexô di sê pressentidu pur ela. Ando di oio. Na minha casa num arrudeia, não, a marvada.

– Entào dá pra saber?

– Também num sei ozotro. Mas eu já dispistei uma delas uma noite.

– Conta, Seu Ferreira.

– Tava eu na varanda, a muié fazenu a janta, o sor se tinha indo, escuitei o voo da bicha. Zuum! Percurei a cartuchera, me aperparei. Ela, acho que apercebeu. Num feis baruio mais. Mais ela é ansim mermo, é farsa. Num dei moleza. Cuidei.

– E a mulher, Seu Ferreira?

– Nessas artura já tava inté grogui. Assustada. Chorava. Arribei a cartuchera, peguei a lanterna, já tinha ficadu iscuro. Anoiteceu rapidinho, uns deis minuto. Fiquei di oio. Num é qui a bicha tava incima do teiado, mermo, querendo posar? Avuava, avuava, mas num posava. Tava cum medo di mim. Óia, só! Medo do Ferrera! A coragi aumento. Mirei certinho na bicha e...pum! caiu no chão, sem tê posado. Interrei fundo a bicha, munto longe. Minha casa tava sarva.

– Entào o senhor mudou o destino, né. Seu Ferreira?

– Di fato é mermo. Nem rasga-mortalha mi assusta. Agora, esse tar destino, si oceis dexá...
__________________________
Notas:
COMCAM - Comunidade dos Municípios da Região de Campo Mourão.
Caminhos do Peabiru – (na língua tupi, "pe" – caminho; "abiru" - gramado amassado) são antigos caminhos utilizados pelos indígenas sul-americanos desde muito antes do descobrimento pelos europeus, ligando o litoral ao interior do continente. O principal destes caminhos, denominado Caminho do Peabiru, constituía-se em uma via que ligava os Andes ao Oceano Atlântico. Mais precisamente, Cuzco, no Peru (embora talvez se estendesse até o oceano Pacífico), ao litoral brasileiro na altura da Capitania de São Vicente (atual estado de São Paulo), estendendo-se por cerca de 3 000 quilômetros, atravessando os territórios dos atuais Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil. Segundo os relatos históricos, o caminho passava pelas regiões das atuais cidades de Assunção, Foz do Iguaçu, Alto Piquiri, Ivaí, Tibagi, Botucatu, Sorocaba e São Paulo até chegar à região da atual cidade de São Vicente. Ainda havia outros ramos do caminho que terminavam nas regiões das atuais cidades de Cananéia e Florianópolis.

Em território brasileiro, um de seus traços ou ramais era a chamada Trilha dos Tupiniquins, no litoral de São Vicente, que passava por Cubatão e por São Paulo, em lugares posteriormente conhecidos como o Pátio do Colégio e rua Direita; cruzava o Vale do Anhangabaú; seguia pelo traçado que hoje é o das avenidas Consolação e Rebouças; e cruzava o rio Pinheiros. Outro ramal partia de Cananeia. Ramificações adicionais partiam do litoral dos atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (wikipedia)


Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Sinclair Pozza Casemiro (O Homem da Enxada)


Este causo é verdadeiro e eu mesma presenciei. Bem, não é que tenha presenciado a história no momento do acontecido, da aparição. Mas eu estava lá, ouvi no outro dia os depoimentos ainda calorosos e sôfregos da Dora, da Santine. E participei daquela magia, daquele friozinho assustador e gostoso que dá na gente pelas histórias de assombrações. Foi na terceira peregrinação da COMCAM no Caminho de Peabiru, na fazenda São Jorge, da casa da Penha. Penha é uma senhora maravilhosa, bondosa, generosa, dadivosa, alegrosa, osa...osa...osa. Ela é esposa (ôsa) do administrador da Fazenda, trabalha no postinho de saúde da fazenda, atende a todos com carinho, dedicação e, além disso tudo, é mãe acolhedora e amiga. Bem, não sei como sobra espaço, mas ela é tudo isso e muito mais. Mentira, sei sim: energia é como sentimento, quanto mais você dá, você divide, mais tem, mais se multiplica.

Pois muito bem: a gente foi se alojar, no segundo dia de peregrinação, na fazenda São Jorge, tudo organizado janta, banho, pouso e café da manhã por dona Penha. Os quitutes, os causos, o clima da fazenda, de amizade, etc, etc, a meditação do Amani e tal, tudo isso, nem precisa descrever. É só imaginar o melhor. Na hora de dormir, tinha a igreja, a escola e as casas. Era só cada um escolher o seu cantinho pra relaxar e sonhar.

Teve um timinho que escolheu, de pronto, a igreja. Claro, mais protegidos, seguros. E tinha uma novidade nessa peregrinação: o casal Santine e Déferson, que estavam de lua-de-mel, haviam se casado naquela semana. E gente boa tava ali: ele e ela prestativos, dedicados, amorosos. Também quiseram ficar na igreja. A igreja era, de fato, um encanto: pequenininha, limpinha, organizadinha, bem arrumada. Penha tinha mesmo pensado em tudo para receber bem os peregrinos.

Depois da janta, das visitas, dos causos, das orações, das fotos, da contemplação ao luar, etc, etc, o recolhimento. E, depois do recolhimento, o sono pesado, afinal, foram 16 km mais ou menos de caminhada e pra quem estava de apoio, um dia de tensão e preocupação que, graças a Deus, tinha terminado maravilhosamente bem. Pra completar, bem que faltava mesmo algum "inusitado". E ele aconteceu.

Depois do primeiro sono, longo e pesado, um e outro precisava ir no matinho. Tudo bem. Rotina. Mas, o casalzinho foi junto. E ele a protegendo sempre, é claro. Quando eles já estavam quase de volta, ele se apavora:

– Santine, olha lá...

– Olha o quê, morzinho? Onde?

– Ali, um homem com uma enxada... de branco... carpindo...

– Onde? Meu Deus! Onde, homem?

– Ali...

E apontava, os dois olhando para o mesmo ponto, ele vendo tudo e ela, nada.

– Morzinho, cê tá sonhando... num tem nada ali.

– Tem sim... Ele tá carpindo, de branco... Olha!

Mas ela não viu, mesmo. Olhou para o marido, ele estava atônito, incontrolado. Olhou para o homem da enxada, de branco e não viu nada. E ele desistiu de mostrar, ela não via mesmo. Começaram a voltar, devagarinho, de fato, alcançaram a porta da igrejinha, entraram. Quase não conseguiam contar o que aconteceu, não o que viram, pois quem viu foi só o marido.

Quem estava na igrejinha ficou em pânico. A Dora, que estava estourando de vontade, catou o cobertor e o colchão que estavam no chão, abaixo do altar, logo na frente, mas buscou ainda um lugar mais santo, mais protegido: debaixo, bem debaixo da mesa do altar. Mesmo estourando, nem quis saber de ir lá fora. Não sei como se arranjou, ela não conta. Só diz que encobriu cabeça, corpo, tudo que pôde, rezou, rezou até de manhã cedo...

De manhã cedo, outra história, São Jorge do céu!

Quando eles contaram pro povo da equipe de apoio, a Eloah, que cuidava do pouso dos peregrinos, falou:

– Não te falei, Sirlene? Eu escutei, de madrugada, uma chinela arrastando lá fora... e chegou até a porta da casa e bateu, deu uns toques... Não te falei? Não era ninguém!

Nessas alturas, mais gente havia ouvido as chinelas se arrastando e os toques à porta, de madrugada... Dona Penha chamou num canto alguns desses narradores:

– Gente, vou pedir um favor... Não espalhem. Esse homem da enxada vem assustando muita gente por aqui, mesmo. Ele chega, de branco, arrasta chinela, dá umas carpidinhas... e sai. Não espalhem que vocês também viram, senão as pessoas daqui ficam mais aterrorizadas ainda. Uns dizem que foi matado... Outros dizem que é alma penada, que matou muita gente... A gente não sabe dizer o que é. Nem reza adianta. Por favor, não espalhem.

Pois é... agora, quem quiser acreditar...

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do Coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri). Campo Mourão/PR: Singrafm 2005.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sinclair Pozza Casemiro (Uma Mão Lava a Outra)


Isso é sério. E é também uma cacofonia, eu sei. Cacofonia é um vício de linguagem; uma sucessão desagradável de sons, segundo Dr. Francisco Borba e todos os dicionaristas, gramáticos e linguistas de que eu me lembre... Mas é muito verdadeiro e então, apesar do vício, figura malquista na língua, o povo anda repetindo "uma mão lava a outra" pelos séculos dos séculos, amém.

O que vou contar aqui aconteceu com o Seu Gancedo, nosso amigo e professor nessas andanças do Caminho de Peabiru. Com ele e sua esposa, Dinorah, grávida de sua primeira filha na ocasião.

Moravam num sítio, no município de Engenheiro Beltrão, viviam ali felizes, porém batalhando nas dificuldades próprias do lugar e dos tempos, ainda sem muita estrutura no campo. Quando chovia, por exemplo, o que era uma dádiva para as lavouras, era um suplício para os doentes ou para aqueles que precisassem sair de casa por qualquer outro motivo urgente.

E um dia, choveu, choveu. O casal precisava ir à cidade, ela tinha consulta, ele tinha interesses urgentes para tratar. E eles tinham um trator que enfrentava qualquer tropeço daquele chão misterioso. Então, foram.

Num determinado ponto, uma subidinha complicada, seu Gancedo precisou parar, deu um probleminha no motor. Estavam já muito tristes, desanimados, quando decidiram buscar ajuda na casa do sítio que dali se avistava, muito perto. O coração de Dinorah se encheu de esperança, se avivou, seus lábios se descontraíram.

Mas, não é que o dono da casa (e do sítio) mesmo reconhecendo o casal, não eram amigos, apenas conhecidos, não socorreu? Isso mesmo! Viu a mulher, grávida, ouviu o apelo do marido, mas não pôde atender, estava sem condições de ir até ao trator, não saberia mesmo o que fazer e ficou por isso mesmo. A princípio seu Gancedo não entendeu, ficou entre a perplexidade, a vergonha e a revolta, um tanto desolado. Dinorah, então, na sua costumeira candura, não conseguia mesmo compreender aquilo de jeito nenhum. Por que seria tanta indiferença? Aquilo não era comum, as pessoas no sítio costumavam ser solidárias, mesmo desconhecendo-se.

Ficaram os dois, conjeturando: será isso, será aquilo, afinal, o que poderia ser responsável por atitude tão mesquinha?

Inconformados, seguiram de volta à estrada, com o olhar e o peito doloridos pelo que entendiam como injustiça. O sitiante possuía até um veículo, o que poderia ter sido a solução fácil de seus problemas, afinal. Poderia ter oferecido uma carona e nem precisava ser para Seu Gancedo, levasse a Dinorah que ele se arranjava por lá mesmo. E, o olhar fixo no caminho, seguiam, devagar, equilibrando-se no barro liso, até chegarem de volta ao trator e...ficar esperando sabe-se mais pelo quê. De repente, ouviram o ronco de um outro trator, a esperança renasceu. Mas, quem era? O próprio sitiante, que passou por eles dirigindo uma carreta e seguiu, sossegado. Os olhos do casal acompanharam–no, silentes, não havia o que se fazer.

Mais à frente, não é que a carreta do insensível sitiante emperra e barranca? Isso mesmo! Caiu, encostou na ribanceira da estrada, num barranco, coisa que seu Gancedo não teria deixado acontecer se fosse ele o motorista. Aquilo era sinal de "barbeiro". Mas, lá estava a carreta, poderosa, nas mãos de um incompetente (e maldoso) motorista, encalhada na estrada. E... vuuuuumm.... vuuuumm.....vuuuuuuuuuuuumm..., nada!

Aí então aconteceu a maior: o "navalha" desce, com as mãos na cintura ou no bolso, sei lá, mas com atitude de não sei mais o quê fazer e... olha para o trator e o casal! Meu Deus, mas como agir agora? Ele não lhes tinha negado ajuda? E só mesmo um outro trator e a colaboração de um outro motorista para tirá-lo dali!

E seu Gancedo? O que você acha que ele fez?

É... espicaçou o homem, "tá vendo, seu orgulhoso?" Negou ajuda, como o outro fez? Deu risada, zombou da desgraça e humilhação do outro?

Quem conhece o seu Gancedo sabe o que ele fez: foi de encontro ao necessitado, mais que ele ainda, deu sua mão e o acompanhou até a carreta, a Dinorah, muito calma e segura acompanhando com os olhos toda aquela cena. Assim também era ela, o casal se combinava.

Dinorah esperou, às margens da estrada. Seu Gancedo assumiu o volante da carreta e tirou-a do barranco, era mesmo algo fácil de resolver para um bom motorista, nem precisou do trator. Devolveu-a para o arrogante e já bastante arrependido sitiante, que, assim, acabou sendo recompensado com o bem pelo mal que fizera.

Chateado, ofereceu ao casal a esperada carona e seguiram, juntos, até Engenheiro Beltrão, deixando o trator do casal para ser consertado depois, por um mecânico que Seu Gancedo traria.

Acontece? Sim, e muito... Por isso que é bom a gente não esquecer esse ditado antigo, mal escrito e mal exemplo porque é cacofônico, mas muito verdadeiro: uma mão lava a outra.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

terça-feira, 15 de março de 2022

I Concurso Nacional de Trovas da UBT Nossa Sra. Aparecida/SE 2021 (Trovas Premiadas)


VETERANOS

TEMA: ROMARIA (Lírica/Filosófica)

 
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VENCEDORES
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1º Lugar
Cezar Defilippo
Astolfo Dutra-MG

Garças brancas... fim de dia...
Aos ninhais em procissão,
chega o bando em romaria,
e enche os ingás de algodão.
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2º Lugar
Márcia Jaber
Juiz de Fora-MG  

Só lembranças na memória,
de passados tão presentes...
e a saudade é uma notória
romaria dos ausentes.
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3º Lugar
Professor Francisco Garcia
Caicó-RN

Romaria!... Cruz às costas!...
Da promessa, não se afasta...
E o beato busca as respostas,
nos braços da cruz que arrasta!
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4º Lugar
Jerson Lima de Brito
Porto Velho-RO

Na madrugada sombria,
quando a solidão tortura,
meus sonhos, em romaria,
seguem à tua procura.
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Dionezine de Fátima Navarro
Ponta Grossa-PR

Refugiados sem lar,
em sofrida romaria,
seguem no afã de encontrar
acolhida e calmaria...

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MENÇÕES HONROSAS
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6º Lugar
Vânia Figueiredo
Sumaré-SP

Andando em busca do amor
numa eterna romaria,
o coração, qual andor,
leva a esperança arredia.
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7º Lugar
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio Das Ostras-RJ

Anda, assim, a humanidade
em constante romaria,
buscando a Deus, que em verdade,
segue em sua companhia...
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8º Lugar
Carolina Ramos
Santos-SP

Virgem Santa!  - Em romaria,
meus sonhos foram a ti...
E tu me deste, Maria,
muito mais do que eu pedi!!!
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9º Lugar
Mário Moura Marinho
Sorriso-MT

A romaria da vida
muito amedronta, nos cansa,
mas jamais ela intimida
quem segue com esperança.
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10º Lugar
Francisco Gabriel
Natal-RN

A romaria tem luz
quando, em busca de perdão,
o romeiro vê Jesus
na face de cada irmão.

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MENÇÕES ESPECIAIS
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11º Lugar
Edson de Paiva
Rafael Godeiro-RN

Na romaria da vida
os momentos enfadonhos
sempre são contrapartida
pela conquista dos sonhos
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12º Lugar
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes-PR

Com meus versos no embornal,
sou poeta em romaria
e em meus passos, afinal,
deixo rastros de poesia!
– – – – – – – – – – – – – – – –
13º Lugar
Antonio Colavite Filho
Santos-SP

Dor  nos  pés,  suor  frequente,
flagelos  deste  romeiro...
É  a  romaria  da  gente
por  este  chão  brasileiro.
– – – – – – – – – – – – – – – –
14º Lugar
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté-SP

Mil romarias não pagam
Maria, o aceno fecundo:
deste à luz as mãos que apagam
todo o pecado do mundo!
– – – – – – – – – – – – – – – –
15º Lugar
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora–MG

Nos rumos da liturgia
dos que vão seguindo a pé,
os passos da romaria
deixam pegadas de fé!
– – – – – – – – – – – – – – – –

NOVO TROVADOR

TEMA: FÉ (Lírica/Filosófica)

 
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 VENCEDORES
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1º Lugar
Magda Helena Gomes Teixeira  
Pouso  Alegre-MG

Fé, bela estrela brilhante,
que nos guia e nos conduz,
tem brilho contagiante:
feliz quem segue essa luz!
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2º Lugar
Ademar Rafael Ferreira
João Pessoa-PB

A fé é a força motriz
que energiza os passos meus,
gera a paz e a diretriz
que me aproximam de Deus.
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3º Lugar
Magda Helena Gomes Teixeira
Pouso  Alegre-MG

Vejo a fé no olhar da criança
e descubro a paz que acalma,
a fé que envolve confiança
traz a eternidade na alma.
– – – – – – – – – – – – – – – –
4º Lugar
Flávia Corrêa da Cunha
Jundiaí-SP

A fé, quando verdadeira,
é realmente sagrada,
permanece a vida inteira
e não se perde por nada!
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Solange Colombara
São Paulo-SP

Nesta estrada em desalinho,
em paz, traço a minha sina.
A fé norteia o caminho
do amanhã que descortina.
 
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MENÇÕES HONROSAS
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6 º Lugar
Rosângela Caron Bastos
Curitiba–PR

Na batalha injusta e inglória
que travamos em segredo;
só teremos a vitória
ante a fé maior que o medo!
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7º Lugar
Davi Pereira  
Toledo-PR  

Há crença maior até
que a certeza da ciência;  
é a força da nossa fé
na Divina Providência.
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8º Lugar
Francisco Paulo da Silva Filho
São João do Jaguaribe-CE

Ser confiante, faz bem,
pois sei que Deus me acompanha;
não tenho medo do além,
porque a fé move montanha.
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9º Lugar
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão-PR

Trago a fé no coração,
pois tudo em Deus se encaminha.
E, por isso, em gratidão,
eu divido a fé...que é minha!
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10º Lugar
Ana Lúcia Cordeiro
Belo Horizonte-MG

A fé, carrego no peito.
Na mente, amor infinito...
Esse mundo ainda tem jeito,
quando se pensa bonito!
 
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MENÇÕES ESPECIAIS
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11º Lugar
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão-PR

Eu sinto que a fé me traz
a bondade do Senhor,
porque creio, ela me faz
ter em mim o Criador!
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12º Lugar
Flavia Corrêa da Cunha
Jundiaí-SP

Como me deixa encantada
a pessoa que tem fé!
Pedindo, sempre ajoelhada,
as bênçãos de São José.
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13º Lugar
Júlia Fernandes Heimann
Jundiaí-SP

Uma fé inabalável
tenho em Deus, Nosso Senhor;
de existência inquestionável
é meu grande protetor!
– – – – – – – – – – – – – – – –
14º Lugar
Cláudia Maria Guimarães Suheth
Campos Dos Goytacazes-RJ

Na difícil caminhada
tem sobe e desce da vida,
com minha fé bem fincada,
sou, por meu Deus, percebida!
– – – – – – – – – – – – – – – –
15º Lugar
Davi Pereira  
Toledo-PR  

Eu disponho de recurso
se quiser seguir a pé,
para guiar meu percurso
no meu santo eu boto fé.
– – – – – – – – – – – – – – – –

VETERANO E NOVO TROVADOR

TEMA: SANTO (A)

(Humorísticas)


= = = = = = = = = = = = =
 VENCEDORES
= = = = = = = = = = = = =
 
1º Lugar
Francisco de Assis Bento de Souza
Parnamirim-RN

Tem gente devendo tanto
que não consegue pagar,
nem as promessas do santo
se o mesmo não parcelar.
– – – – – – – – – – – – – – – –
2º Lugar
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava-SP

Meu marido é quase um santo,
reza e reza toda hora...
– Para que ele reza tanto?
– Pra que minha mãe ... vá embora
– – – – – – – – – – – – – – – –
3º Lugar
Márcia Jaber
Juiz De Fora-MG

Tão briguento e aprontador,
armava tal confusão
que o seu santo protetor
só vivia de plantão.
– – – – – – – – – – – – – – – –
4º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo-SP

Pra ter proteção e tanto...
Diz um caipira, no ponto,
que não dá mais pinga ao santo:
- "Imagina nóis dois tonto"!...
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora-MG

Minha dona xinga tanto,
que detestando querela,
vou pedir para o meu santo
amansar o santo dela.
 
= = = = = = = = = = = = =
MENÇÕES HONROSAS
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6º Lugar
Renata Paccola
São Paulo-SP

- Meu time foi derrotado!
Não entendo, rezei tanto!
- É que o time do outro lado
rezou para o mesmo santo!
– – – – – – – – – – – – – – – –
7º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba-SP

Mostra o orixá seu espanto
diante da cena careta:
a mulher, que é "mãe-de-santo",
tem um filho que é um "capeta"!
– – – – – – – – – – – – – – – –
8º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba-SP

O mundo gira depressa,
tão depressa em seu girar
que, mal se fez a promessa,
o santo já vem cobrar!
– – – – – – – – – – – – – – – –
9º Lugar
Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas-MG

Que cachaça especial!
Boa assim nunca vi tanto!
Penso até que não faz mal,
tomar a parte do santo!
– – – – – – – – – – – – – – – –
10º Lugar
Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro-RJ

- Como é que tu bebes tanto
e encara a volta sozinho?!...
- Deixo isso aí com meu santo,
ele já sabe o caminho...
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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Sinclair Pozza Casemiro (Cinquenta Rosários)


Um célebre filósofo contemporâneo e ocidental, B. Mondin, em uma de suas obras mais conhecidas, "O Homem, quem é ele? – elementos de antropologia filosófica", discorre da natureza humana. Transcendente, o homem sempre quer mais, idealiza mais para si mesmo: ser mais bonito, mais virtuoso, mais sábio, mais... e por aí vai. Isso é da espécie humana, mesmo, em qualquer lugar do mundo e em qualquer circunstância, sempre aflorará o desejo, a propulsão que faz essa espécie, nunca satisfeita, buscar, buscar, sonhar, sonhar... eternamente buscar e sonhar. Muitas vezes, a gente vê isso ser provado em casos mais bizarros. Essa tal teoria acaba por dizer o mesmo da teoria do "jogo de espelho" que a retórica, desde Aristóteles até agora a nova retórica, de Perelman, por exemplo, apregoa: na busca do "ser mais" o homem se identifica com padrões, modelos idealizados que, consciente ou inconscientemente espelham,

Daí, um passo pra sedução dar vez à manipulação do discurso, da retórica, dos sofismas... e da busca incontrolável de nossos desejos, os mais estranhos, às vezes.

Interessante é notar que em qualquer circunstância, mesmo, isso pode ser flagrado. Ser mais belo pra uns, mais inteligentes pra outros... e até mais "bandido" pra muitos. Um causo me chamou a atenção, verdadeiro, que eu vivi, duma frustração profunda, dum personagem singular, da nossa região - a COMCAM, Este personagem está vendo a vida passar, agora, crente de que não vai mais alcançar o seu desejo, o seu "ideal" de jovem, tão sonhado. E, cá pra nós, ainda bem...

A visão é de romance nordestino, mas acontece é aqui mesmo, no coração do Paraná, lá pelas bandas de Barbosa, Corumbataí. Quem quiser ver, ainda consegue: está vivo e saudável o maior jagunço que resta na redondeza. Cavalga, no seu sempre companheiro Alazão, cavalo manso, prudente, acostumado aos imprevistos que o dono lhe arruma. A gente estava, na caminhonete, procurando pistas do velho trio dos índios, do Peabiru, muito famoso nas redondezas, mais famoso ainda como "o trio dos jisuíta". De repente, avistamos o cavaleiro, num marrom só, o cavalo troteando, sossegado, desvia a passagem, de pronto. O caboclo vestia uma capa suja, suja, não se sabe precisar a verdadeira cor, só prevalecia o encardido da estrada, que é hoje a continuação de seu lar. Na cabeça, o chapéu velho de couro, carcomido, encolhido e cheio de marcas que o tempo foi deixando, como na pele, que parecia continuar do chapéu, enrugada, marrom, tão judiada. A cena é, vista de longe – pelas costas, e bem de perto - de lado, geometricamente, como um losango marrom.

– Bom dia, seu Rufino!

– Ooua... Oi, tudo bom, homi. É seu Gancedo?

– Sou eu, mesmo, tá? Andando um pouco por aí?

- É, pois é. É o que resta, homi. Avivenu os tempu, qui num tem mais nada pra fazê, só trabaiá pra cume, qui é a sina...

– Tá vivendo sozinho?

– Ah, sim. Ali, naquele ranchinho... A muié perfeiru fícá cos fio, si foi. Os fío di hoji, homi, num arrespeita os pai, qué vive dum jeito qui num é certo, di arrespeitu. Falei; si quisé morá cumigo, tem qui mi arrespeitá. Vive nos mordi qui um homi veve, eis num quis sabe. Num arrespeitá pai, mais não. Num tem arrimo... Perferi dexá i. A muié foi tamém, perferiu os fio. Aqui vou vivenu... Vivo bem... Ali tá minha rocinha, minha casinha. O fazendero daqui, gente boa, num mexe cumigu, não. Meu Alazão me acumpanha,

– Pois é... Seu Rufino... Estava aqui falando para as professoras que o senhor já foi jagunço. Elas não acreditam,

Nessa hora o rosto impassível do cavaleiro estremece e um lance de olhar brilhoso desperta na face até então inalterada:

– Eu? Jagunço não. Seu Gancedo.... quisera fosse... Num cheguei a tanto, não, homi... Num tenhu a metade dum rusaru.

Agora é a professora que pergunta. Entendeu logo que o "status" de jagunço, a que o seu Rufino, pelo jeito aspirara, mas não lograra êxito, dependia do tal rusaru:

- Qui é rusaru, sinhora? A sinhora num reza? Num cunhece rusaru?

– Sim... sim... Mas...

– Pois, óie; jagunço mermo, jagunço, seu Gancedo, tem que tê feito cinqüenta rusaru. Eu feis nem deis... A sinhora cunhece cuma é o rusaru: tem o pai-nossso, as treis ave-maria, adispois mais pai-nosso, mais uma porção de ave-maria, num é? Pois, intão: jagunço dus bom, mermo, é qui compretô os pai-nosso e as ave-maria nuns cinqüenta rusaru. Mais eu num cunsegui, não... Uns deis... sifô.

– Mas não dá tempo, ainda de fazer cinquenta rosários, seu Rufino? Afinal, que rosário é esse?

– É rusaru dioreia, sinhora. Oreia di bugre. Bugre, índio, sinhora... Por aqui tinha tantu dus jagunçu, dus bom, qui mi dexaru na mão... Num restô bugre pra mi dá o gosto di sê um jagunço di verdade. O povo mi chama... Mais num sô, não. Farta munto rusaru... I cadê us bugre? Matado bom tinha essas banda, cabaru logu ca bugraiada, arguns abandonam tudu e fugiru, Us que ficava, morria, memo..

No silêncio da tarde, olhando a vastidão dos campos desnudos das matas, lar dos "bugres" desfeito tão selvagemente, pelos civilizados brancos, pensei não ter podido encontrar maior testemunho do que buscava naquelas andanças. E, levada pela imaginação vi o azulão da floresta escondendo as sagas daquela gente indefesa mais uma vez exposta à cobiça e aos sonhos dos novos bandeirantes deste século passado, encobertos pelas regras desse também novo tempo. E entendi bem como é fácil apagar a memória de tantas barbaridades consentidas por inescrupulosos indivíduos dessa nossa espécie (a escolhida?) que quer e sonha sempre mais... mais... não importa o quê.

Mais ... "rusaru"? Creio em Deus Pai, Ave-Maria! Chega de rusaru, Minha Nossa Senhora das Dores! O próprio Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo há de convir! O mais irônico é que muito provavelmente tenham se utilizado, para as suas proezas, os famosos jagunços, de resquícios do remoto Caminho de Peabiru - "o caminho que leva à Terra Sem Mal".

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Sinclair Pozza Casemiro (Maria e Maria)


Caminhoneiro feliz era o Tião. Não foi a vida que pedi pra Deus... mas já que ele me deu.... Um caminhão bem cuidado, as posses não lhe puderam conferir um novo, mas seu sonho por certo um dia viraria verdade e ele passearia pelas ruas de Campo Mourão com as Marias na boleia. Esse dia ia chegar, tão certo como o sol que me alumia, lhe agaranto, Maria. E Maria concordava, rindo. Era assim sempre aquela mulher. Sempre rindo, co'a filhinha ao colo. Mulher de caminhoneiro é também uma forte, Euclides. Não tem tempo ruim, sol, chuva, frio, calor, comida, fome, cobrador à porta, o silencio cumplicioso diante do credor indignado... e a vida vai-se indo...

Maria e Maria. Suas duas maiores fortunas que ele, sempre que podia, carregava junto. A filhinha não reclamava, gostava muito. Nem sabia se tinha outro jeito, é claro. A mãe não só não reclamava quanto gostava muito, também. Acompanhar Tião, seu homem. Valente, alegre, mal-humorado com quem não gostava e um doce, até estragado de tão doce, pra quem queria bem. Assim, a vida ia se indo.

Os botinas já tinham se acostumado de ver a família na boleia. Carona não pode, mas as Marias eram carona? Acho que não. Pelo sim, pelo não, uma cervejinha de vez em quando e o problema estava resolvido.

Assim a vida ia se indo, Maria sempre rindo. Tião, ia e voltava, frete não lhe faltava. A casinha, ali perto do 119, na saída pra Peabiru, era humilde. A cidade de Campo Mourão ainda não era assim asfaltada, com as comodidades de agora, mas já mostrava futuro. A vizinhança, pouca, muito rara mesmo, era pobre igual, ou melhor, mais pobre. Tião não era pobre. Era afortunado, tenho um caminhãozinho, uma família, vamo vivendo... Muita peça que quebra, pneu que estoura, recape que não aguenta, senão até que sobrava pra não dever nada. Mas... tá bom. A noite fazia esquecer os problemas junto do corpo quente e macio da Maria, sempre rindo...

A filhinha crescendo, já dando seus passinhos, entendia de um tudo. Gostava de passear no caminhão, parava pra isso qualquer birra ou tristeza, se é que havia.

A Maria era sua, só sua, a Maria, filhinha, era deles, só deles. Mas a fortuna eles dividiam com os amigos. A casinha, quando eles lá paravam, era sempre cheia de gente. E de causos, e de chimarrão, dava gosto. Maria, sempre rindo. Não gostava de ficar, queria ir com Tião, nem precisava chamar. Chegava, lavava, arrumava a casinha, preparava comida pras viagens, ajeitava as coisas. Ia de novo. Seu lar era mesmo a boleia.

Estavam todos na roda do chimarrão, naquela tarde meio chuvosa, quando chegou uma mudança. No barraco ao lado. Não para ninguém aí, esquisito. Já ouvi dizer que foi amaldiçoado, quando os pioneiros vinham pro lado do Santa Cruz, fazer as rezas na Gruta, uma mulher foi assassinada nesse rancho. Me contaram que foi de amor. O companheiro não aceitava que ela não lhe queria mais. E aquele filho, diziam, nem era dele, não. Então ele trouxe ela, mais o filhinho no rancho, e escondido de todo mundo, matou a infeliz. O filhinho, Tião? Ah, nem tinha como saber das coisas, era de colo. Cresceu, com parentes. Mas o ranchinho fica aí, assustando os outros. Diz que ela vem, de noite, procurar o filhinho,.. Diz que se escuta o choro dela e ela chamando o bebê. É... coração de homem é terra que ninguém pisa...

A roda, de repente, tem mais gente. Chega a dona nova da casa e o filho, rapaz de corpo bem feito, falador, bonito. Logo se enturma, aprecia o chimarrão. Muito bem feito, fazia tempo que não experimentava um igual, com essas ervas... Ervas daqui, do quintal, diz Maria. Pra gente usar. Quando quiser... A conversa se anima, vão terminar a mudança, vai que chove.,.

E choveu. Choveu tanto, que o ranchinho não serviu pra abrigo e os novos vizinhos foram procurar arrego no Tião. Como sempre, o caminhoneiro atendeu. Tratou o vizinho já como velho companheiro, o que só o caminhoneiro sabe fazer. As mulheres confabulavam, a Maria, filha, encantava com sua graça e esperteza. A noite chuvosa embalou a todos, até os desafortunados do novo lar, que não tinham mesmo o que fazer.

E assim a vida ia se indo. No outro dia, o moço arrumou o rancho, nem precisou mais de ajuda. Agradecido, só fez visita, na outra noite. Tião recebeu, Maria sempre rindo...

Os dias foram passando, Tião, Maria e Maria indo e voltando, os novos vizinhos se conversando... Tinha mesmo um barulho esquisito no rancho. Mas.,. arre! Tenho o corpo fechado, falava o moço, que achava bonito o jeito da Maria, sempre rindo...

Maria achava bonito aquele moço, sem medo, valente que nem o Tião.

Hoje não vou, Tião. Tenho que arrumar umas coisinhas. Tá bem, volto logo. E assim a vida ia se indo... Maria já nem sempre rindo... Já nem indo tanto mais, também, no caminhão com Tião.

Um dia, um amigo falou pro Tião que ele nunca que ia morar em casa perto de casa assombrada. Tragédia chama tragédia. Se fosse o Tião, mudava dali.  Ora! Pra mim, essas coisas? Desde quando, nunca me aconteceu nada! Eu, se fosse você, Tião, mudava dali. O ranchinho é coisa do tinhoso, nem é bom tá perto. Oras!!

Mas o amigo insistia... Reparando bem, era mesmo. Maria nem sempre ria mais, já não ia mais com ele como antes, andava aborrecida, doente. Doente? Mas tava mais bonita, cabelo sempre arrumado, batom, as unhas sempre pintadas... Não tinha que se preocupar, não. Que confusão, Meu Deus! Acho que o Pezão não é bem amigo, não. Deu pra me perturbar com coisas... Tião, você não merece. Tentei evitar, até te tirar de lá, mas... Você é muito bom, rapaz, não percebeu. Cuida da Maria e do moço bonitão.

Bastou. O coração bom de Tião se anuviou, ele mais nada viu. Depois, bem depois que a tonteira e o ódio amainaram, ele achou que não era verdade, era engano, era mentira, era pesadelo. E nessa ilusão conseguiu chegar. Estava igual seu cantinho, mas já não era o mesmo mais. Também Maria, já não sorria. Mas um fio de esperança contava pra ele que não, que era tudo ilusão, pesadelo. Tião despediu, da Maria e da Maria, vou viajar. Tinha um plano.

Chegou a Peabiru, como nunca antes, nem viu passar o tempo, a estrada. E, de lá, encostou o caminhão, voltou a pé. A peixeira na cinta, não ia ser preciso usar. Era tudo ilusão, pesadelo. Os passos iam fazendo ele se achar tolo, perda de tempo. A Maria era só dele, era, sim, como era quando ela sempre ria.

Na porta do seu cantinho, ele viu umas chinelas que não eram dele. No azul escuro da noite sem lua, Tião viu tudo claro, de repente. E, brusca, irrompidamente saltou ao leito onde dormiam os corpos descansados dos pecadores ingratos. Tião só viu massas de corpos nus, braços, pernas, gritos, molhados, em meio ao prateado fio. Depois, no tribunal, soube que foram muitas, perto de cinquenta. A Maria, filha, tadinha, estava muda. Os olhos sempre abertos, fugidios, corriam do Tião. A vida pra eles também se acabara. Não foi preso, que a Lei, naquele tempo, não condenava quem matava pra defender a honra. A pequena Maria, ficou sabendo que morrera também. Como os olhos não queriam mais ver, a boca não quis mais comer, o coração não quis mais viver. E naquele tempo, também era mais difícil remédio pra essas dores.

Até hoje, quem passa por aquela estrada, escuta no rancho e no cantinho do Tião, um choro e mais uns gritos. Conforme a hora, escuta também uma voz, principalmente quando se anuvia e o vento assobia, chamando longe... longe... "Mariinha, filhiiinha!..." O pai, esse vagueia, pelo rio 119, pela estrada pra Peabiru, como vagueou em vida até ser reconhecido, ainda quente, sob as rodas de um caminhão.

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Sinclair Pozza Casemiro (Mundo Guarani e Literatura) Parte II

2. O mundo Guarani e um pouco do seu saber tradicional: a palavra-alma, a palavra poética

Estudiosos do Guarani, como Hèlène Clastres, que viveu entre os Guarani do Paraguai em 1963 e entre os Guarani do Brasil em 1966, deixaram um legado importante ao registrar sua cultura, o que permite um olhar mais crítico sobre a realidade atual. Esses estudiosos ouviram o Guarani de seu tempo, sua língua, seus costumes, suas crenças,registraram essas informações. Fundamentando-nos em seus escritos e na vivência com indígenas Guarani do estado do Paraná, passaremos a apresentar algumas discussões sobre a Palavra Guarani na busca de entendimento de sua Literatura e do seu mundo.

A palavra, como vimos, é sagrada para o Guarani: nhë’ e –palavra-alma define a linguagem Guarani, em que o sentido místico é parte intrínseca de sua significação.Quem a nega se torna um jaguar – tekoachykoe-jaguar (Clastres, 1978,p.96); ou tatu (CASEMIRO, 2013). E há ainda a categoria das palavras nhë’eporä, as belas palavras numa dimensão ainda mais elevada de espiritualidade, e ayvuporä- as palavras sagradas, enfeitadas, reservadas aos Xamoíe Caraíe à Opy- Casa de Reza. Mas, o sentido de enfeitada não é simples metáfora, maneira de dizer que se sobrepõe como uma máscara ao sentido da coisa: é a própria coisa. Ou seja, em Guarani o adjetivo porä qualifica o enfeite, a beleza do que é enfeitado. No dicionário de Montoya Tesoro de La lengua guaraní, segundo Clastres (1978, p.91) se registra o termo como Póràng:hermoso, ornato. Assim, não é natural esse sentido, de enfeitado, é algo que foi elaborado com a intencionalidade de ter beleza, adornado: a forma poética da composição das palavras em expressões, em discurso, o seu arranjo sonoro no redobrar das vogais ao ser pronunciada, acentuando a sua musicalidade. O ornamento das palavras é necessário para se falar com justeza, o belo e o verdadeiro estão unidos, amalgamados no sentido do sagrado que a que elas servem, ou mais que isso, que elas são (CLASTRES, 1978, p.86).

Existem distinções a serem respeitadas e seguidas entre os Guaraninas suas lideranças e uso das palavras, ou dos cantos, que são sacralizadas por sua cultura, cujas presenças foram atestadas por missionários e viajantes do período colonial. Essas lideranças são imbuídas do poder da palavra-alma em diferentes níveis de autoridade.Nimuendaju (apud Clastres, 1978, p.34,35,36) também as atestou na convivência que teve com os Apopocuvas- Guarani desde as primeiras décadas de 1900. Ainda hoje essa presença pode ser atestada, entretanto, entre os Guarani, resguardando-se as mudanças que se fizeram necessárias no tempo e na territorialidade pelas condições de contato com a sociedade não indígena, difíceis, que inviabilizam muitas vezes a prática fiel de suas tradições mais antigas e mais caras.

De qualquer modo, adaptam-se aos novos tempos e permanece o prestígio do Caraí, do Xamoí, do Cuidador das Ervas (homem-medicina) bem como se identifica o abusante - aquele que duvida ou não crê na Terra Sem Mal a quem, portanto, não se autoriza o discurso. Costumam dizer, hoje, os Guarani, quando perguntados sobre as migrações à Terra Sem Mal, dantes uma prática vivida com as facilidades da liberdade de ir e vir numa territorialidade absolutamente livre de não indígenas, que a vivem no coração. E alguns não escondem o desejo de repetirem essa possibilidade real de migração, adaptando-a às condições modernas. Também presenciamos em nossas visitas aos Guarani do Paraná que, quando não conseguem construir sua Opy ou vivenciarem-na, dizem que a levam no coração. Pudemos atestar esse fato na nossa convivência entre os Guarani de Laranjinhas, YvyPorä, Verá Tupã’i, Ocoy, Tamarana, do Paraná.

Interessante descrever a experiência de Nimuendaju (apud Clastres, 1978), o que pode trazer entendimento para o contexto atual dessas lideranças e na construção do discurso Guarani em dias atuais. O autor relata que se podem perceber quatro categorias no que chamou de dons xamanísticos, e que, na verdade, abrange toda a população Guarani, como se vê em seu relato, desde os não crentes aos mais crentes: a primeira, negativa, reunindo aqueles que não possuem nenhum cântico, ou seja, os que não receberam ou que ainda não receberam inspiração: a maior parte dos adolescentes, alguns raros adultos decididos a não se comunicarem com os espíritos, que nunca poderiam dirigir as danças(Nessa categoria, hoje, pelas nossas experiências entre os Guarani do Paraná, existem ainda as divisões entre aqueles que ainda não a receberam por serem crianças ou adolescentes e aqueles que a negam. Esses últimos são hoje conhecidos como abusantes, conforme depoimento de Vó Almerinda (que é Xamoí), sobre o Caminho Sagrado para a Terra Sem Mal. A segunda categoria compreende todos aqueles que possuem um ou vários cânticos, homens ou mulheres, mas, isoladamente, sem o poder de utilizá-los em fins coletivos. Alguns desses até podem eventualmente dirigir algumas danças, são os que se aproximam mais da terceira categoria (Também já observamos essa realidade no tekoha Verá Tupã’i). A terceira categoria é a dos capazes de dizer as palavras enfeitadas, as belas palavras- nhë’eporä, de curar, de prever, de descobrir o nome dos recém-nascidos, são os Xamãs para Nimuendaju (hoje conhecidos como Xamoí), os Pajés. A essa categoria pertencem homens e mulheres com direito ao título de Ñanderu ou Ñandesy (Hoje se escreve Nhanderu e Nhandesy) – nosso pai, nossa mãe. À quarta categoria pertencem a dos grandes xamãs, cujo prestígio vai além da comunidade e apenas os homens podem a ela ascender. Além de possuírem as palavras enfeitadas, as belas palavras - nhë’ e porä, ainda só eles podem dirigir a cerimônia do batismo, conhecida como Nimongaraí (hoje falado Nhemongarai), a mais importante festa Apapocuva.

(Hoje ainda se pode observar essa prática, é ainda a sua maior festa, mas, as mulheres também podem pertencer a essa categoria, Vó Almerinda é uma delas, visita e reza em todos os tekoha e dirige o Nhemongarai. Esse quadro revela alguns dados sobre a autoria do discurso Guarani.

Em primeiro lugar, o significado de nhë’ ë para o Guarani é, para quaisquer indivíduos, palavra-alma. É um significado que remonta à sua narrativa de criação, na qual Nhamandu se pôs ereto e pronunciou as palavras das quais surgiram todos os homens e mulheres e toda a criação. A partir dela, toda cultura Guarani se constitui: a criança é desejada e, antes do nascer, já possui um espírito guia que se vai revelar quando essa criança se puser ereta e que vai lhe indicar o que será: um Xamoí, um Cuidador de Ervas, etc., conforme a direção de onde esse deus veio: zênite, leste ou oeste. E é na cerimônia que descrevemos acima - do Nhemongarai que essa revelação ocorre, por meio dos cânticos e rezas do Xamoí. Ou seja, todo o Guarani pode receber seu nome, está incluído nesse ritual, por pertencimento ao grupo, é apto ao discurso da ñe’e (palavra-alma). E quando o Xamoí não consegue a revelação é porque a criança não irá sobreviver. Mas, como vimos, há a categoria dos abusantes–tekoachykoe, daqueles que não acreditam na Terra Sem Mal.

Esses não portadores da palavra sagrada, não são autorizados ao seu discurso, aos cânticos, estão na condição de animalidade. Podemos, pois, perceber que a autoria das palavras é permitida de acordo com a posição ou condição espiritual do Guarani: pode ser autorizado a cânticos, a pronunciar as palavras nhë’ee também as belas palavras nhë’eporä eventual e solitariamente, como pode ser autorizado a discursos coletivos, de grandeza circunscrita ao tekoha ou ainda de maior grandeza, em discursos de uma coletividade maior, que abranja número maior de tekoha. Ou destituídos da nhë’e, os tekoachykoe, os abusantes. Os discursos sagrados e discursos sobre temas sagrados sofrem ainda outras restrições, como a de lugar-só podem ser tratados na Casa de Reza- Opye diante de Guarani. Diante de juruá apenas quando aceito pelo Xaoi como digno de ouvi-lo nesse espaço, de fazer parte de sua cultura.

Falantes e alegres, ruidosos, brincalhões, sempre risonhos entre si, emudecem diante dos não indígenas ou de indígenas abusantes. O silêncio Guarani, compreensível diante das contínuas perdas que lhe infringiram a sociedade não indígena, adquire significados próprios, que não merecem sequer ser especulados, mas respeitados. Pelo histórico que descreve Nimuendaju, entre outros que, como ele, com eles viveram experiências de longos anos, muito desse silêncio está ligado ao sagrado e ao modo como se constituem os seus discursos, como se produzem, para quê e para quem, de que lugar, sempre a partir de uma perspectiva mitossimbólica advinda da sua cosmovisão.

No contato inevitável e cada vez mais constante com a sociedade não indígena, outros discursos, com outras condições de se produzirem se fizeram necessários. Mas, de qualquer forma, a palavra para o Guarani sempre se revestiu e reveste de Verdade e beleza, é poética por natureza.

Tratando-se de autoria diante da sociedade não indígena e extrapolando o universo Guarani, a questão vem sendo, inclusive, polemizada, em termos de propriedade do que se diz, das consequências desse dizer pelos próprios indígenas.Costuma-se atribuir a autoria de um discurso indígena a toda a coletividade, como se um falasse por todos. E essa autoria se mascara na designação de informante. Assim, uma narrativa contada por um Guarani de determinado tekoha será creditada a seu grupo, desse tekoha. Isso, principalmente, quando se destinam direitos autorais, mesmo valorizando o indígena que se manifestou, a sua fala é como que creditada e distribuída a todo o grupo, também na questão de benefícios que dela possam surgir. E o termo informante (ou similar) decorre da prática conservadora de se considerar o indígena objeto de pesquisa e não sujeito de pesquisa. A pesquisa não é dele, é do sujeito que o interpela. Tal situação vem gerando algumas dificuldades e está sendo questionada. Sgambatti relata a seguinte cena, provocada pelo CaciqueGuarani Olívio Jekupe, da aldeia Krukutu, no Estado de São Paulo:

Essa é minha mulher – me disse Olívio Jekupe.
E lhe perguntou:
- Você sabe ler?
E ela respondeu:
- Não.
E continuou:
- Você sabe escrever?
E ela:
- Não.
Então ele voltou-se para mim e perguntou:
- Mas se você vier à nossa aldeia, ela te contar uma história, uma lenda ou algo de Nossa cultura e você como um antropólogo registrar essa história tal e qual ela te contou em um livro, quem é o escritor, você ou ela?
Eu fiz cara de: pois é…
E ele concluiu:
- Não é porque ela não sabe escrever em português ou guarani que ela não pode ser uma escritora. Tem alguns índios em nossa aldeia que só falam e escrevem guarani, não é porque sou eu, o cacique ou outro índio que escrevemos o texto deles em Português que somos os autores da história deles, não é mesmo? (SGAMBATTI, 2009)

Olívio Jekupe é escritor de livros infantis e juvenis, viaja por todo o Brasil divulgando a cultura Guarani. Como autor de livros, ele se assume como sujeito enunciador e de direito,indígena, possuindo os mesmos direitos que qualquer outro cidadão brasileiro, mas questiona quanto ao discurso da sua cultura, quanto à autoria desse discurso conforme seria,na cena citada, o da sua mulher, que não domina a escrita e se concedesse uma narrativa ao pesquisador, como informante.

Jekupe não fez esse questionamento inocentemente. E nem inocentemente Sgambatti fez cara de: pois é.... Ambos sabiam que falavam de autoria numa implicação muito mais complexa. Formado em Filosofia pela PUC, São Paulo, ele compreende, na condição de professor e intelectual reconhecido, a condição outra da maioria dos indígenas brasileiros. Sujeitos constitutivos da nacionalidade brasileira, não passam em muitos casos de meros informantes, objetos de pesquisa sobre o conhecimento que trazem.

Essa cena que Jekupe provocou nos faz pensar sobre a condição de autoria, de sujeito, não apenas do discurso narrativo de suas origens, cosmogônicos, como teria sido o caso, que recebem a tipologia de mitológicos,mas do discurso constitutivo da nacionalidade como um todo. Do discurso de pertencimento, capaz de interagir nas interlocuções sociais que decidem os seus próprios destinos dentro e fora da aldeia. Que possui implicações políticas sobre a voz indígena e propriedade intelectual de seus conhecimentos tradicionais, de seu saber. Um pouco dessa questão vamos discutir no próximo item.
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continua
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Fonte:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br

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    Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
         Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Trovando pelo Paraná


Almirante Tamandaré – Harley Stocchero
Meu amor sempre me espera
à tarde com um lanchinho,
mas eu fico na quimera
de tomarmos nosso vinho.

Apucarana – Fahed Daher
Cada um tem seu destino!
A pedra faz o castelo,
o bronze, a máquina e o sino,
o ferro faz o martelo.

Arapongas – Maria Granzoto
Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos,
que a todos acolhem cá!

Bandeirantes – Neide Rocha Portugal
Perdido na escuridão,
sem saber se é noite ou dia,
pede o cego na oração:
- Senhor, protege o meu guia!

Campo Largo – Áureo Baika
Eu curto todo momento
e não perco um só segundo.
Num minuto em pensamento
posso estar em outro mundo!

Campo Mourão – Sinclair Pozza Casemiro
Busca-se ainda o Caminho,
vive-se a doce ilusão
de um mundo feito carinho,
que ao fraco não negue o pão!

Castro – Hilda Koller
Saibamos as leis de cor,
Façamos do lar um templo,
mas nada educa melhor
do que o nosso bom exemplo.

Contenda – Hildemar Cardoso Moreira
Ao professor muito devo,
devo ao médico também.
Mas o livro é meu enlevo,
tudo que sei dele vem.

Curitiba – Vânia Maria de Souza Ennes
Descontraia sua testa,
sorrir é grande investida!
Quem transforma a vida em festa
vence tensão reprimida!

Ibiporã – Mauricio Fernandes Leonardo
Semblante santificado
cabeleira cinza escuro,
mamãe viveu seu passado
planejando meu futuro.

Irati – Mafalda de Sotti Lopes
Toda semente que eu planto
nos sulcos da minha dor,
germina regada em pranto,
mas, desabrocha em amor!

Ivatuba – Elidir D’ Oliveira
Volta, amor! – é o teu retorno
felicidade e prazer.
Teu corpo é um caminho morno
que eu adoro percorrer!

Joaquim Távora – Adilson de Paula
Pôr-do-sol, campos desertos,
e o pinheiro então parece
estar de braços abertos
a sussurrar uma prece.

Lajes – Maria Amélia Macedo Bertolini
Espanha, Ucrânia e Japão,
culturas de muitas graças!
Proporcionam diversão
em Curitiba, são praças.

Lapa – José Westphalen Corrêa
Nas águas mansas do lago,
nas verdes ondas do mar,
nas delícias de um afago,
vejo a mão de Deus pairar.

Londrina – Cidinha Frigeri
“Não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe...”
- Por mais que um ser nos perfure,
que nossa alma não desabe!

Maringá – Antonio Augusto de Assis
Neste planeta sofrido,
com tanto lixo fedendo,
há muito louco varrido,
pouca vassoura varrendo.

Morretes – Lúcio da Costa Borges
A primavera cantemos
anos juvenis, risonhos...
Além nós todos sabemos,
restarão só nossos sonhos!

Palmeira – Heitor Stockler de França
Confesso é no teu perfume
e no sabor do teu beijo,
que para mim se resume
a volúpia do desejo.

Paranaguá – Leôncio Correia
Se o beijo guarda o perfume
de estranha, esquisita flor
é porque o beijo resume
a vida e a glória do amor.
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Paranavaí - Dinair Leite
A trova quando é sentida
viaja em nossa emoção
Nos faz fiéis toda a vida,
une os povos, faz irmãos

Pinhais – Ligia Christina de Menezes
Meu girassol pobrezinho
saudoso, não resistiu.
Morreu olhando o caminho
por onde meu bem partiu...

Pinhalão – Lairton Trovão de Andrade
Todo filho vem dos pais,
vem o mel da flor silvestre;
não há dor sem dor nos ais
nem discípulo sem mestre.

Piraí do Sul – Vera Vargas
Contra mágoas, dissabores,
um santo remédio há.
Receita: Rua das Flores –
Curitiba – Paraná.

Piraquara – Horácio F. Portella
A saudade rasga o véu
do tempo e traz do passado
minha mãe, que lá do céu
sempre tem me abençoado.

Ponta Grossa – Amália Max
A esperança em nossa vida,
pelo valor que ela ostenta,
pode até ser resumida,
como o pão que nos sustenta.

Quatro Barras – Airo Zamoner
Nas noites da minha vida,
vida errada, vida certa,
cada estrela me convida
a uma nova descoberta.

Rio Branco do Sul – Sara Furquim
A vida é um mar de rosas
legando beleza e olor,
às criaturas bondosas,
que sabem semear o amor.

São Jerônimo da Serra – Déspita Perusso
Belo e vetusto pinheiro!
Tão alto... é grande a distância...
foi meu leal companheiro
nos doces anos da infância...

São Jorge do Ivaí – Hulda Ramos Gabriel
Tão suave é o teu carinho:
Há nele a calma de um lago...
- Tem a ternura de um ninho
e a paz de um materno afago!

São José dos Pinhais – Patrícia Cristiane de Siqueira
Esta estação é tão linda...
Cobrindo os campos de flores.
Que seja sempre benvinda!
Com alegria e muitas cores.

São Mateus – Gerson Cesar Souza
A frase dura que escapa
da boca de muitos pais
é tão cruel como um tapa
e, às vezes, machuca mais!

Tomazina – Cecim Calixto
Curitiba tem seus bares
com requinte de Paris,
Aos boêmios, seus altares,
e aos poetas, lar feliz.

Ubiratã – José Feldman
Paraná...terra de encantos...
Luz de um povo varonil!
A flora e a fauna são mantos
que engrandecem o Brasil.

União da Vitória – Hely Marés de Souza
Quero rever os meus pagos,
ouvir toda a velha história.
Quero sentir os afagos...
da minha União da Vitória!