segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Sinclair Pozza Casemiro (Mundo Guarani e Literatura) Parte II

2. O mundo Guarani e um pouco do seu saber tradicional: a palavra-alma, a palavra poética

Estudiosos do Guarani, como Hèlène Clastres, que viveu entre os Guarani do Paraguai em 1963 e entre os Guarani do Brasil em 1966, deixaram um legado importante ao registrar sua cultura, o que permite um olhar mais crítico sobre a realidade atual. Esses estudiosos ouviram o Guarani de seu tempo, sua língua, seus costumes, suas crenças,registraram essas informações. Fundamentando-nos em seus escritos e na vivência com indígenas Guarani do estado do Paraná, passaremos a apresentar algumas discussões sobre a Palavra Guarani na busca de entendimento de sua Literatura e do seu mundo.

A palavra, como vimos, é sagrada para o Guarani: nhë’ e –palavra-alma define a linguagem Guarani, em que o sentido místico é parte intrínseca de sua significação.Quem a nega se torna um jaguar – tekoachykoe-jaguar (Clastres, 1978,p.96); ou tatu (CASEMIRO, 2013). E há ainda a categoria das palavras nhë’eporä, as belas palavras numa dimensão ainda mais elevada de espiritualidade, e ayvuporä- as palavras sagradas, enfeitadas, reservadas aos Xamoíe Caraíe à Opy- Casa de Reza. Mas, o sentido de enfeitada não é simples metáfora, maneira de dizer que se sobrepõe como uma máscara ao sentido da coisa: é a própria coisa. Ou seja, em Guarani o adjetivo porä qualifica o enfeite, a beleza do que é enfeitado. No dicionário de Montoya Tesoro de La lengua guaraní, segundo Clastres (1978, p.91) se registra o termo como Póràng:hermoso, ornato. Assim, não é natural esse sentido, de enfeitado, é algo que foi elaborado com a intencionalidade de ter beleza, adornado: a forma poética da composição das palavras em expressões, em discurso, o seu arranjo sonoro no redobrar das vogais ao ser pronunciada, acentuando a sua musicalidade. O ornamento das palavras é necessário para se falar com justeza, o belo e o verdadeiro estão unidos, amalgamados no sentido do sagrado que a que elas servem, ou mais que isso, que elas são (CLASTRES, 1978, p.86).

Existem distinções a serem respeitadas e seguidas entre os Guaraninas suas lideranças e uso das palavras, ou dos cantos, que são sacralizadas por sua cultura, cujas presenças foram atestadas por missionários e viajantes do período colonial. Essas lideranças são imbuídas do poder da palavra-alma em diferentes níveis de autoridade.Nimuendaju (apud Clastres, 1978, p.34,35,36) também as atestou na convivência que teve com os Apopocuvas- Guarani desde as primeiras décadas de 1900. Ainda hoje essa presença pode ser atestada, entretanto, entre os Guarani, resguardando-se as mudanças que se fizeram necessárias no tempo e na territorialidade pelas condições de contato com a sociedade não indígena, difíceis, que inviabilizam muitas vezes a prática fiel de suas tradições mais antigas e mais caras.

De qualquer modo, adaptam-se aos novos tempos e permanece o prestígio do Caraí, do Xamoí, do Cuidador das Ervas (homem-medicina) bem como se identifica o abusante - aquele que duvida ou não crê na Terra Sem Mal a quem, portanto, não se autoriza o discurso. Costumam dizer, hoje, os Guarani, quando perguntados sobre as migrações à Terra Sem Mal, dantes uma prática vivida com as facilidades da liberdade de ir e vir numa territorialidade absolutamente livre de não indígenas, que a vivem no coração. E alguns não escondem o desejo de repetirem essa possibilidade real de migração, adaptando-a às condições modernas. Também presenciamos em nossas visitas aos Guarani do Paraná que, quando não conseguem construir sua Opy ou vivenciarem-na, dizem que a levam no coração. Pudemos atestar esse fato na nossa convivência entre os Guarani de Laranjinhas, YvyPorä, Verá Tupã’i, Ocoy, Tamarana, do Paraná.

Interessante descrever a experiência de Nimuendaju (apud Clastres, 1978), o que pode trazer entendimento para o contexto atual dessas lideranças e na construção do discurso Guarani em dias atuais. O autor relata que se podem perceber quatro categorias no que chamou de dons xamanísticos, e que, na verdade, abrange toda a população Guarani, como se vê em seu relato, desde os não crentes aos mais crentes: a primeira, negativa, reunindo aqueles que não possuem nenhum cântico, ou seja, os que não receberam ou que ainda não receberam inspiração: a maior parte dos adolescentes, alguns raros adultos decididos a não se comunicarem com os espíritos, que nunca poderiam dirigir as danças(Nessa categoria, hoje, pelas nossas experiências entre os Guarani do Paraná, existem ainda as divisões entre aqueles que ainda não a receberam por serem crianças ou adolescentes e aqueles que a negam. Esses últimos são hoje conhecidos como abusantes, conforme depoimento de Vó Almerinda (que é Xamoí), sobre o Caminho Sagrado para a Terra Sem Mal. A segunda categoria compreende todos aqueles que possuem um ou vários cânticos, homens ou mulheres, mas, isoladamente, sem o poder de utilizá-los em fins coletivos. Alguns desses até podem eventualmente dirigir algumas danças, são os que se aproximam mais da terceira categoria (Também já observamos essa realidade no tekoha Verá Tupã’i). A terceira categoria é a dos capazes de dizer as palavras enfeitadas, as belas palavras- nhë’eporä, de curar, de prever, de descobrir o nome dos recém-nascidos, são os Xamãs para Nimuendaju (hoje conhecidos como Xamoí), os Pajés. A essa categoria pertencem homens e mulheres com direito ao título de Ñanderu ou Ñandesy (Hoje se escreve Nhanderu e Nhandesy) – nosso pai, nossa mãe. À quarta categoria pertencem a dos grandes xamãs, cujo prestígio vai além da comunidade e apenas os homens podem a ela ascender. Além de possuírem as palavras enfeitadas, as belas palavras - nhë’ e porä, ainda só eles podem dirigir a cerimônia do batismo, conhecida como Nimongaraí (hoje falado Nhemongarai), a mais importante festa Apapocuva.

(Hoje ainda se pode observar essa prática, é ainda a sua maior festa, mas, as mulheres também podem pertencer a essa categoria, Vó Almerinda é uma delas, visita e reza em todos os tekoha e dirige o Nhemongarai. Esse quadro revela alguns dados sobre a autoria do discurso Guarani.

Em primeiro lugar, o significado de nhë’ ë para o Guarani é, para quaisquer indivíduos, palavra-alma. É um significado que remonta à sua narrativa de criação, na qual Nhamandu se pôs ereto e pronunciou as palavras das quais surgiram todos os homens e mulheres e toda a criação. A partir dela, toda cultura Guarani se constitui: a criança é desejada e, antes do nascer, já possui um espírito guia que se vai revelar quando essa criança se puser ereta e que vai lhe indicar o que será: um Xamoí, um Cuidador de Ervas, etc., conforme a direção de onde esse deus veio: zênite, leste ou oeste. E é na cerimônia que descrevemos acima - do Nhemongarai que essa revelação ocorre, por meio dos cânticos e rezas do Xamoí. Ou seja, todo o Guarani pode receber seu nome, está incluído nesse ritual, por pertencimento ao grupo, é apto ao discurso da ñe’e (palavra-alma). E quando o Xamoí não consegue a revelação é porque a criança não irá sobreviver. Mas, como vimos, há a categoria dos abusantes–tekoachykoe, daqueles que não acreditam na Terra Sem Mal.

Esses não portadores da palavra sagrada, não são autorizados ao seu discurso, aos cânticos, estão na condição de animalidade. Podemos, pois, perceber que a autoria das palavras é permitida de acordo com a posição ou condição espiritual do Guarani: pode ser autorizado a cânticos, a pronunciar as palavras nhë’ee também as belas palavras nhë’eporä eventual e solitariamente, como pode ser autorizado a discursos coletivos, de grandeza circunscrita ao tekoha ou ainda de maior grandeza, em discursos de uma coletividade maior, que abranja número maior de tekoha. Ou destituídos da nhë’e, os tekoachykoe, os abusantes. Os discursos sagrados e discursos sobre temas sagrados sofrem ainda outras restrições, como a de lugar-só podem ser tratados na Casa de Reza- Opye diante de Guarani. Diante de juruá apenas quando aceito pelo Xaoi como digno de ouvi-lo nesse espaço, de fazer parte de sua cultura.

Falantes e alegres, ruidosos, brincalhões, sempre risonhos entre si, emudecem diante dos não indígenas ou de indígenas abusantes. O silêncio Guarani, compreensível diante das contínuas perdas que lhe infringiram a sociedade não indígena, adquire significados próprios, que não merecem sequer ser especulados, mas respeitados. Pelo histórico que descreve Nimuendaju, entre outros que, como ele, com eles viveram experiências de longos anos, muito desse silêncio está ligado ao sagrado e ao modo como se constituem os seus discursos, como se produzem, para quê e para quem, de que lugar, sempre a partir de uma perspectiva mitossimbólica advinda da sua cosmovisão.

No contato inevitável e cada vez mais constante com a sociedade não indígena, outros discursos, com outras condições de se produzirem se fizeram necessários. Mas, de qualquer forma, a palavra para o Guarani sempre se revestiu e reveste de Verdade e beleza, é poética por natureza.

Tratando-se de autoria diante da sociedade não indígena e extrapolando o universo Guarani, a questão vem sendo, inclusive, polemizada, em termos de propriedade do que se diz, das consequências desse dizer pelos próprios indígenas.Costuma-se atribuir a autoria de um discurso indígena a toda a coletividade, como se um falasse por todos. E essa autoria se mascara na designação de informante. Assim, uma narrativa contada por um Guarani de determinado tekoha será creditada a seu grupo, desse tekoha. Isso, principalmente, quando se destinam direitos autorais, mesmo valorizando o indígena que se manifestou, a sua fala é como que creditada e distribuída a todo o grupo, também na questão de benefícios que dela possam surgir. E o termo informante (ou similar) decorre da prática conservadora de se considerar o indígena objeto de pesquisa e não sujeito de pesquisa. A pesquisa não é dele, é do sujeito que o interpela. Tal situação vem gerando algumas dificuldades e está sendo questionada. Sgambatti relata a seguinte cena, provocada pelo CaciqueGuarani Olívio Jekupe, da aldeia Krukutu, no Estado de São Paulo:

Essa é minha mulher – me disse Olívio Jekupe.
E lhe perguntou:
- Você sabe ler?
E ela respondeu:
- Não.
E continuou:
- Você sabe escrever?
E ela:
- Não.
Então ele voltou-se para mim e perguntou:
- Mas se você vier à nossa aldeia, ela te contar uma história, uma lenda ou algo de Nossa cultura e você como um antropólogo registrar essa história tal e qual ela te contou em um livro, quem é o escritor, você ou ela?
Eu fiz cara de: pois é…
E ele concluiu:
- Não é porque ela não sabe escrever em português ou guarani que ela não pode ser uma escritora. Tem alguns índios em nossa aldeia que só falam e escrevem guarani, não é porque sou eu, o cacique ou outro índio que escrevemos o texto deles em Português que somos os autores da história deles, não é mesmo? (SGAMBATTI, 2009)

Olívio Jekupe é escritor de livros infantis e juvenis, viaja por todo o Brasil divulgando a cultura Guarani. Como autor de livros, ele se assume como sujeito enunciador e de direito,indígena, possuindo os mesmos direitos que qualquer outro cidadão brasileiro, mas questiona quanto ao discurso da sua cultura, quanto à autoria desse discurso conforme seria,na cena citada, o da sua mulher, que não domina a escrita e se concedesse uma narrativa ao pesquisador, como informante.

Jekupe não fez esse questionamento inocentemente. E nem inocentemente Sgambatti fez cara de: pois é.... Ambos sabiam que falavam de autoria numa implicação muito mais complexa. Formado em Filosofia pela PUC, São Paulo, ele compreende, na condição de professor e intelectual reconhecido, a condição outra da maioria dos indígenas brasileiros. Sujeitos constitutivos da nacionalidade brasileira, não passam em muitos casos de meros informantes, objetos de pesquisa sobre o conhecimento que trazem.

Essa cena que Jekupe provocou nos faz pensar sobre a condição de autoria, de sujeito, não apenas do discurso narrativo de suas origens, cosmogônicos, como teria sido o caso, que recebem a tipologia de mitológicos,mas do discurso constitutivo da nacionalidade como um todo. Do discurso de pertencimento, capaz de interagir nas interlocuções sociais que decidem os seus próprios destinos dentro e fora da aldeia. Que possui implicações políticas sobre a voz indígena e propriedade intelectual de seus conhecimentos tradicionais, de seu saber. Um pouco dessa questão vamos discutir no próximo item.
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continua
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Fonte:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br

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    Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
         Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.

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