3. Um pouco do histórico sobre a autoria e a produção discursiva indígena
Pela incapacidade de se compreender que os índios não são incapazes, mas culturalmente diferenciados, em 1916 foi promulgada uma lei chamada Código Civil (Lei 3.071/16), afirmando que "todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil", considerando, no entanto,que algumas pessoas não tinham a mesma capacidade de exercer seus direitos. O art. 5º dessa lei afirmava são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade. E também que eram relativamente incapazes para certos atos os maiores de 16 anos e menores de 21, os pródigos (pessoas que assumem comportamentos irresponsáveis) e os silvícolas, ou seja, os índios. E, como considerava que os índios não eram totalmente capazes de exercerem seus direitos, esta lei determinava que eles fossem tutelados até que estivessem integrados à civilização do país. Essa tutelagem implicou a negação de sua autoria e do próprio uso de seus conhecimentos tradicionais, sendo suas criações apresentadas sob a tutela de pesquisadores e/ou responsáveis legais como representantes e tradutores do seu dizer e do seu saber.
Na época em que se escreveu esse Código Civil, a sociedade não indígena acreditava que os índios seriam extintos e que, portanto, não precisariam de direitos. Índio significava passado, mesmo no presente remetiam à ideia de não pertencimento a essa sociedade. Imaginava-se que os índios eram seres primitivos que iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até se integrarem de vez à sociedade brasileira, deixando de ser índios.
A Constituição de 1988, no entanto, em seus Artigos 231 e 232, ao reconhecer os direitos e a autonomia das culturas e territorialidades indígenas, estabeleceu que apolítica de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois uma outra concepção a fundamentou: eles viveriam para sempre índios, independente do acesso que tivessem ao mundo da sociedade envolvente. E assim deveriam ser respeitados e considerados pela sociedade brasileira como tais, em sua língua, crença, seus usos, costumes, tradições, suas formas de vida e de organização.
Hoje os esforços são no sentido de que o governo dê proteção e apoio de que os índios precisam, para que possam tomar suas próprias decisões, ou seja, não sendo mais tutelados, nem considerados relativamente incapazes.
3.1 A propriedade intelectual indígena
Salvaguardando a autoria indígena e os direitos e proteção sobre os seus conhecimentos tradicionais, o Projeto de Lei 2.057/91(em decorrência da Constituição de 1988) e a proposta alternativa a ele, apresentada pelo Governo, não só garantem direito autoral ao indígena, a proteção ao conhecimento tradicional, a representação segundo seus usos e costumes, o direito de participação em todas as instâncias oficiais de discussão da questão indígena, a proteção aos recursos naturais como seu patrimônio legítimo, como consideram crime o uso indevido desses conhecimentos tradicionais.
Assim, a propriedade intelectual indígena se vê assegurada. A importância disso se dá especialmente pela característica singular de suas narrativas. Como vimos, a palavra tem, para o indígena, um valor de Verdade, assim,produções discursivas indígenas se destacam pela sua singularidade.
Há, em todas elas, um encantamento e uma valorização da palavra, do discurso, que não permite sua leitura despreparada. É preciso compreender esse sentido que a palavra, o discurso, empresta a essas culturas, interpretando-as com a solenidade que exigem, diante dos seus signos carregados dessa Verdade, ou seja, um novo dizer se autoriza no país, um dizer outro, marcado por radicais diferenças culturais. Falar por si representa a legitimidade dessa diferença e uma nova realidade jurídico-social para os indígenas e também para os não indígenas.
Mas, autores indígenas como Jekupé, reconhecido e premiado na Literatura Brasileira, vem desvelando, como vimos acima, a realidade política que está implícita no apagamento das vozes indígenas em seus discursos e o novo momento histórico para a autoria e uso do seu saber tradicional. E há hoje, além de Jekupé, vários escritores indígenas, nas mesmas condições autorais e levando o conhecimento de sua cultura a outras culturas indígenas e a toda a sociedade não indígena pelas suas obras. Há um centro de escritores indígenas, o Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas-NEARIM, do qualJekupé é Presidente.
Daniel Munduruku, diversas vezes premiado na Literatura Brasileira e mesmo internacional, da etnia Munduruku, das terras indígenas de Cayabi, Munduruku, Manduruku II, Praia do Índio, Praia do Mangue e Sai-Cinza, no sudoeste do estado do Pará; as terras indígenas Coaté-Laranjal e São José do Cipó, no leste do estado do Amazonas e a Reserva Indígena Apiaká-Kayabi no oeste de Mato Grosso percorre o mundo e leva sua mensagem de autonomia e amor à cultura indígena, à Palavra que lhe é cara:
As sociedades indígenas são movidas pela poesia dos mitos – palavras que encantam e dão direção, provocam e evocam os acontecimentos dos primeiros tempos, quando, somente ela, a Palavra, existia.
E foi por causa dela, de sua ação sobre o que não existia, que tudo passou a existir. Foi como um encantamento, um vento que passa ou o sopro sonoro de uma flauta, e... pronto...tudo se fez.
Assim é a palavra, que flui em todas as direções e sentidos e que influenciou e influencia todas as sociedades ao longo de sua história. Ela cria, enfeitiça, embriaga, gera monstros, faz heróis, remete-nos para nossa própria memória ancestral e dá sentido ao nosso estar no mundo. Mesmo vivendo na época em que a tecnologia impera e coloca a Palavra – aqui como sinônimo de Verdade – em segundo plano, percebemos que ainda há esperança, pois ela vivifica a poesia dos mistérios que nos emocionam e fazem buscar, dentro de nós mesmos, a certeza de que vale a pena colorir o mundo.
Foi com esta paixão e certeza que este livro foi escrito. Ele traz a magia dos mitos narrados pelos anciãos de cada povo aqui apresentado. E mesmo que não queira abraçar todo o universo da sabedoria indígena, ele traz uma grande amostra daquilo que tem guiado nossas sociedades até nossos dias. Mas, não sem desafios o novo momento histórico é vivenciado pelos indígenas. Sobre a dificuldade que tiveram e têm em se adequar à realidade bilíngue pela força da colonização, bem como a sua superação, sem perder a indianidade, a narrativa do Cacique Miguel KaraiTataxiBenite é esclarecedora (2009,pp 44,45). Falando dela e falando da língua aprendida na colonização, fala de si, fala do ser Guarani em nossa sociedade atual:
Vivi muitos anos com a língua entortada,
Porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
A palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava a inteligência,
Porque antes de gaguejar as palavras certas
Eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.
Uma língua nasceu comigo, no colo de minha mãe.
É a língua que expressa a alma guarani.
É a língua do tekoha, da opy.
O nome que tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai.
Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os peixes,
os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça.
Tudo isso com ela eu faço: rio e choro, rezo e canto.
Com ela, eu sou o que falo: guarani.
A outra língua que tenho é a que
Sobrou de uma guerra de muitas batalhas.
Ela trouxe a espada e a cruz, o livro e as imagens, o sermão, o
catecismo, a doutrina, as leis.
Ela me ensinou a aprisionar o som,
Como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no ajaka.
Com ela, aprendi a riscar as letras. E a desenhar as palavras
no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda.
Com ela, procuro escola e biblioteca,
Mercado e igreja, posto de saúde e hospital, cartório e tribunal.
É com ela que me comunico com índios de outras línguas.
Com ela navego na internet,
Descubro o pensamento do juruá,
Caminho pelas ruas, leio as cidades,
Entro nos ônibus,
Embarco e desembarco na rodoviária,
Vendo o artesanato e converso com as pessoas.
Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua,
Com um pouco de medo, como se
Fosse um caso de bigamia.
Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
Acham graça uma da outra fazem
Gozação e às vezes se zangam.
Afora isso, elas se dão bem que
Sonho nas duas ao mesmo tempo.
Às vezes, a palavra de uma soa
Engraçado na outra.
Às vezes, quando me perguntam
Numa, respondo na outra.
Às vezes fico com uma delas tão
Engasgada que se permaneço calado
Tenho a impressão de que vou explodir.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra, mas as
palavras se escondem de mim, fogem para bem
Longe e gasto muito tempo correndo atrás delas.
Ambas pensam, mas há partes do
Coração em que uma delas não
Consegue entrar e quando se
Aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras.
Cada uma foi professora da outra:
O guarani nasceu primeiro e eu me
Habituei a dormir embalado por sua
Suave sonoridade musical.
O guarani não tinha letra, é verdade, mas era o dono da palavra falada.
Ensinou ao português os segredos da Oralidade, guiando-lhe a voz.
Já o português, nascido na ponta dos meus dedos, ensinou o guarani a
Escrever, porque este nunca havia
Frequentado a escola.
Tenho duas línguas comigo. Duas
Línguas que me fizeram e já não vivo sem elas, nem sou eu,
sem as duas.A sua narrativa, toda ela poética, é um saber indígena contemporâneo. Se pretendêssemos situá-la na perspectiva não indígena, poderíamos afirmar que ela se realiza num misto de conto, mito, poesia e narrativa histórica. Conto, pois a sequência de fatos faz um enredo e traz um conflito, perfazendo-se de todos os elementos que compõem a narrativa, ou seja, tempo, espaço, trama. Possui apenas um personagem, escolhe o foco narrativo de 1ª pessoa e obedece a um dos fatores de total relevância para a tipologia conto, que é o enredo apresentado de forma condensada e sintética, centrado em um único conflito, o que é chamado de unidade de impressão.
Também se realiza no mito, pois fala da origem, dos símbolos de culturas diversas entre si significando o modo de vida atual, traduzindo uma realidade antropológica fundamental,na medida que não só representa uma explicação sobre as origens do mundo em que o autor está vivendo, como traduzindo, por símbolos ricos de significado, o modo como sua civilização entende e interpreta a civilização sua e a do outro.
E se realiza na poesia, pois se estrutura em versos e manifesta o belo pela forma, pela escolha de palavras,pelos jogos de linguagem como, entre tantos, catacreses (língua entortada), metáforas (a palavra que é o arco da memória), comparações (trocando de língua com um pouco de medo como se fosse um caso de bigamia), antropomorfizações ([as línguas] acham graça uma da outra, fazem gozação, às vezes se zangam) , pelos muitos sentidos figurados que provoca no seu descrever de fatos reais, históricos.
Nesse belo, traz o percurso da vida do Guarani, no percurso da sua linguagem sendo atravessada e finalmente parceira da língua do não indígena, colonizador. Traz a saga e o percurso da constituição da subjetividade do indígena Guarani, em que a cultura do outro se impõe e se interpõe pela língua estrangeira, que já então se faz necessária – já não vive sem elas (a sua e a do outro). Nesse sentido, é uma narrativa histórica.
O conjunto poético dessas tipologias emaranhadas no texto do Cacique Guarani Miguel Karai Tataxi Benite , pela polissemia que engendra e pelo amálgama que o constitui, produz um discurso próprio, singular. Diferente. Esse conjunto em que se notam marcas do conto, do mito, da poesia,revela algo único, indivisível, algo que se repete nas vozes indígenas em geral. É o seu modo de dizer, totalizante, como uma unidade de sentido cosmogônica como é o modo de ser indígena em qual tempo e lugar. Um modo de dizer singular que se pode compreender como saber indígena.
Considerações finais
O mundo Guarani e a Literatura se confundem, ao tempo em que vão ainda além, pela singularidade do discurso Guarani, poético, totalizante, cosmogônico e as tipologias que normalmente traduzem esse seu saber indígena não dão conta de traduzir os sentidos que os abarcam pela sua magia e subjetividade. Nhë’e – palavra-alma, linguagem Guarani e nhë’eporä, belas palavras, Ayvuporä, a bela linguagem, as palavras enfeitadas, encantadas produzem sentidos musicais e cheios de mistérios, únicos.
Escritores Guarani hoje divulgam seu saber, sua narrativa encantada, pela Literatura Nativa, como propõe o escritor Jekupé, diferenciando-a da Literatura Indígena. A primeira, de autoria dos próprios indígenas, a segunda, de escritores não indígenas. Essa divisão marca um novo tempo, o tempo da autoria, do reconhecimento dos seus conhecimentos tradicionais e da propriedade intelectual indígena, o que se materializa pelo Projeto de Lei 2.057/91. Independente desse projeto, a vida Guarani, sempre livre, porque sua palavra é alma, é eterna e intocável, indisciplinada e rebelde nos seus encantos, se faz ecoar pelas páginas da Literatura nacional, enriquecendo e tornando mais humana a convivência da nossa sociedade.
O mundo Guarani e a Literatura, assim como os mundos de todas as etnias indígenas do país estão por todos os cantos, distribuindo sua poesia na territorialidade que é tão sua. A sua poesia, pela Palavra –Verdade, como nos diz Munduruku, encantada, acostumada a povoar esse Brasil de seus mistérios, de seus encantos e personagens tão únicos, mesmo no silêncio a que foi submetida por longos séculos. E aquela Palavra, finalmente, poderá ser vivida de verdade, aquela que ainda não se ouviu, mas que a cultura indígena impõe na sua grandeza, singeleza e docilidade: alteridade.
REFERÊNCIAS
BENITE, Cacique Miguel KaraiTataxi. Duas línguas. In:Maino’ i rapé. RJ, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2009.
CASEMIRO, 2013. O mito do Tatu. Disponível em: www.caminhodepeabiru.com.br.Captado em 20.9.2013.
CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal – o profetismo tupi-guarani. São Paulo, Editora Brasiliense, 1978.
CUNHA, Antonio G. da.Dicionário Etimológico Nova Fronteira. RJ, Nova Fronteira, 1982.
DUARTE, Miguel B. Liceu Aristotélico. In:http://liceuaristotelico.blogspot.com.br/2010/02/contos-proibidos-iii.html. Captado em 20.9.2013.15h37.
ELIADE, Mircea. O mito e a Filosofia, 2010. In: http://ricardorose.blogspot.com.br/2010/08/o-mito-e-filosofia.html. Capatado em 20.9.2013. 17h50.
FRAGOSO, Vera M. Os mitos e a psicanálise: o debate. In: http://www.searchgol.com/?q=psicanalista+fragoso&babsrc=SP_ss&mntrId=F8 9100234D48917B&affID=121225&tl=gkn539325&tsp=5016. Captado em 20.9.2013.17h28
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio. RJ, Editora Nova Fronteira, 1974.
MONTOYA, Antonio R. de. Tesoro de lalengoa guarani. In: CLASTRES, Hélène. Terra Sem Mal – o profetismo tupi-guarani. São Paulo, Editora brasiliense, 1978.
MUNDURUKU, Daniel. Contos Indígenas Brasileiros. SP, Global Editora, 2005.
STRAUSS, Levi. O mito e a Filosofia, 2010. In: http://ricardorose.blogspot.com.br/2010/08/o-mito-e-filosofia.html. Captado em 29.9.2013.18h04
JEKUPE, Olívio. In: Literatura Indígena x Literatura Nativa (2010) http://www.youtube.com/watch?v=xGXcQ_Bb_7g.captadoem30.9.20137h31
SGAMBATTI, Milton Junior. Literatura Indígena. In: http://sgambatti.wordpress.com/2009/04/23/literatura-indigena. Captado em 20.9.2013.
InfoEscola. Mito ou Lenda? Disponível em: http://www.infoescola.com/redacao/mito-ou-lenda/02. Captado em 02.9.2013.12h30.
Fonte:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br
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Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.
Pela incapacidade de se compreender que os índios não são incapazes, mas culturalmente diferenciados, em 1916 foi promulgada uma lei chamada Código Civil (Lei 3.071/16), afirmando que "todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil", considerando, no entanto,que algumas pessoas não tinham a mesma capacidade de exercer seus direitos. O art. 5º dessa lei afirmava são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos, que não puderem exprimir sua vontade. E também que eram relativamente incapazes para certos atos os maiores de 16 anos e menores de 21, os pródigos (pessoas que assumem comportamentos irresponsáveis) e os silvícolas, ou seja, os índios. E, como considerava que os índios não eram totalmente capazes de exercerem seus direitos, esta lei determinava que eles fossem tutelados até que estivessem integrados à civilização do país. Essa tutelagem implicou a negação de sua autoria e do próprio uso de seus conhecimentos tradicionais, sendo suas criações apresentadas sob a tutela de pesquisadores e/ou responsáveis legais como representantes e tradutores do seu dizer e do seu saber.
Na época em que se escreveu esse Código Civil, a sociedade não indígena acreditava que os índios seriam extintos e que, portanto, não precisariam de direitos. Índio significava passado, mesmo no presente remetiam à ideia de não pertencimento a essa sociedade. Imaginava-se que os índios eram seres primitivos que iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até se integrarem de vez à sociedade brasileira, deixando de ser índios.
A Constituição de 1988, no entanto, em seus Artigos 231 e 232, ao reconhecer os direitos e a autonomia das culturas e territorialidades indígenas, estabeleceu que apolítica de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois uma outra concepção a fundamentou: eles viveriam para sempre índios, independente do acesso que tivessem ao mundo da sociedade envolvente. E assim deveriam ser respeitados e considerados pela sociedade brasileira como tais, em sua língua, crença, seus usos, costumes, tradições, suas formas de vida e de organização.
Hoje os esforços são no sentido de que o governo dê proteção e apoio de que os índios precisam, para que possam tomar suas próprias decisões, ou seja, não sendo mais tutelados, nem considerados relativamente incapazes.
3.1 A propriedade intelectual indígena
Salvaguardando a autoria indígena e os direitos e proteção sobre os seus conhecimentos tradicionais, o Projeto de Lei 2.057/91(em decorrência da Constituição de 1988) e a proposta alternativa a ele, apresentada pelo Governo, não só garantem direito autoral ao indígena, a proteção ao conhecimento tradicional, a representação segundo seus usos e costumes, o direito de participação em todas as instâncias oficiais de discussão da questão indígena, a proteção aos recursos naturais como seu patrimônio legítimo, como consideram crime o uso indevido desses conhecimentos tradicionais.
Assim, a propriedade intelectual indígena se vê assegurada. A importância disso se dá especialmente pela característica singular de suas narrativas. Como vimos, a palavra tem, para o indígena, um valor de Verdade, assim,produções discursivas indígenas se destacam pela sua singularidade.
Há, em todas elas, um encantamento e uma valorização da palavra, do discurso, que não permite sua leitura despreparada. É preciso compreender esse sentido que a palavra, o discurso, empresta a essas culturas, interpretando-as com a solenidade que exigem, diante dos seus signos carregados dessa Verdade, ou seja, um novo dizer se autoriza no país, um dizer outro, marcado por radicais diferenças culturais. Falar por si representa a legitimidade dessa diferença e uma nova realidade jurídico-social para os indígenas e também para os não indígenas.
Mas, autores indígenas como Jekupé, reconhecido e premiado na Literatura Brasileira, vem desvelando, como vimos acima, a realidade política que está implícita no apagamento das vozes indígenas em seus discursos e o novo momento histórico para a autoria e uso do seu saber tradicional. E há hoje, além de Jekupé, vários escritores indígenas, nas mesmas condições autorais e levando o conhecimento de sua cultura a outras culturas indígenas e a toda a sociedade não indígena pelas suas obras. Há um centro de escritores indígenas, o Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas-NEARIM, do qualJekupé é Presidente.
Daniel Munduruku, diversas vezes premiado na Literatura Brasileira e mesmo internacional, da etnia Munduruku, das terras indígenas de Cayabi, Munduruku, Manduruku II, Praia do Índio, Praia do Mangue e Sai-Cinza, no sudoeste do estado do Pará; as terras indígenas Coaté-Laranjal e São José do Cipó, no leste do estado do Amazonas e a Reserva Indígena Apiaká-Kayabi no oeste de Mato Grosso percorre o mundo e leva sua mensagem de autonomia e amor à cultura indígena, à Palavra que lhe é cara:
As sociedades indígenas são movidas pela poesia dos mitos – palavras que encantam e dão direção, provocam e evocam os acontecimentos dos primeiros tempos, quando, somente ela, a Palavra, existia.
E foi por causa dela, de sua ação sobre o que não existia, que tudo passou a existir. Foi como um encantamento, um vento que passa ou o sopro sonoro de uma flauta, e... pronto...tudo se fez.
Assim é a palavra, que flui em todas as direções e sentidos e que influenciou e influencia todas as sociedades ao longo de sua história. Ela cria, enfeitiça, embriaga, gera monstros, faz heróis, remete-nos para nossa própria memória ancestral e dá sentido ao nosso estar no mundo. Mesmo vivendo na época em que a tecnologia impera e coloca a Palavra – aqui como sinônimo de Verdade – em segundo plano, percebemos que ainda há esperança, pois ela vivifica a poesia dos mistérios que nos emocionam e fazem buscar, dentro de nós mesmos, a certeza de que vale a pena colorir o mundo.
Foi com esta paixão e certeza que este livro foi escrito. Ele traz a magia dos mitos narrados pelos anciãos de cada povo aqui apresentado. E mesmo que não queira abraçar todo o universo da sabedoria indígena, ele traz uma grande amostra daquilo que tem guiado nossas sociedades até nossos dias. Mas, não sem desafios o novo momento histórico é vivenciado pelos indígenas. Sobre a dificuldade que tiveram e têm em se adequar à realidade bilíngue pela força da colonização, bem como a sua superação, sem perder a indianidade, a narrativa do Cacique Miguel KaraiTataxiBenite é esclarecedora (2009,pp 44,45). Falando dela e falando da língua aprendida na colonização, fala de si, fala do ser Guarani em nossa sociedade atual:
Vivi muitos anos com a língua entortada,
Porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
A palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava a inteligência,
Porque antes de gaguejar as palavras certas
Eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.
Uma língua nasceu comigo, no colo de minha mãe.
É a língua que expressa a alma guarani.
É a língua do tekoha, da opy.
O nome que tenho, foi ela quem me deu na cerimônia do Nhemongarai.
Com ela nomeio as plantas, as flores, os pássaros, os peixes,
os rios e as pedras, o sol e a chuva, a roça e a caça.
Tudo isso com ela eu faço: rio e choro, rezo e canto.
Com ela, eu sou o que falo: guarani.
A outra língua que tenho é a que
Sobrou de uma guerra de muitas batalhas.
Ela trouxe a espada e a cruz, o livro e as imagens, o sermão, o
catecismo, a doutrina, as leis.
Ela me ensinou a aprisionar o som,
Como quem pega a fumaça com a mão e a guarda no ajaka.
Com ela, aprendi a riscar as letras. E a desenhar as palavras
no papel.
Quando saio da aldeia, é ela quem me ajuda.
Com ela, procuro escola e biblioteca,
Mercado e igreja, posto de saúde e hospital, cartório e tribunal.
É com ela que me comunico com índios de outras línguas.
Com ela navego na internet,
Descubro o pensamento do juruá,
Caminho pelas ruas, leio as cidades,
Entro nos ônibus,
Embarco e desembarco na rodoviária,
Vendo o artesanato e converso com as pessoas.
Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua,
Com um pouco de medo, como se
Fosse um caso de bigamia.
Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
Acham graça uma da outra fazem
Gozação e às vezes se zangam.
Afora isso, elas se dão bem que
Sonho nas duas ao mesmo tempo.
Às vezes, a palavra de uma soa
Engraçado na outra.
Às vezes, quando me perguntam
Numa, respondo na outra.
Às vezes fico com uma delas tão
Engasgada que se permaneço calado
Tenho a impressão de que vou explodir.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra, mas as
palavras se escondem de mim, fogem para bem
Longe e gasto muito tempo correndo atrás delas.
Ambas pensam, mas há partes do
Coração em que uma delas não
Consegue entrar e quando se
Aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras.
Cada uma foi professora da outra:
O guarani nasceu primeiro e eu me
Habituei a dormir embalado por sua
Suave sonoridade musical.
O guarani não tinha letra, é verdade, mas era o dono da palavra falada.
Ensinou ao português os segredos da Oralidade, guiando-lhe a voz.
Já o português, nascido na ponta dos meus dedos, ensinou o guarani a
Escrever, porque este nunca havia
Frequentado a escola.
Tenho duas línguas comigo. Duas
Línguas que me fizeram e já não vivo sem elas, nem sou eu,
sem as duas.A sua narrativa, toda ela poética, é um saber indígena contemporâneo. Se pretendêssemos situá-la na perspectiva não indígena, poderíamos afirmar que ela se realiza num misto de conto, mito, poesia e narrativa histórica. Conto, pois a sequência de fatos faz um enredo e traz um conflito, perfazendo-se de todos os elementos que compõem a narrativa, ou seja, tempo, espaço, trama. Possui apenas um personagem, escolhe o foco narrativo de 1ª pessoa e obedece a um dos fatores de total relevância para a tipologia conto, que é o enredo apresentado de forma condensada e sintética, centrado em um único conflito, o que é chamado de unidade de impressão.
Também se realiza no mito, pois fala da origem, dos símbolos de culturas diversas entre si significando o modo de vida atual, traduzindo uma realidade antropológica fundamental,na medida que não só representa uma explicação sobre as origens do mundo em que o autor está vivendo, como traduzindo, por símbolos ricos de significado, o modo como sua civilização entende e interpreta a civilização sua e a do outro.
E se realiza na poesia, pois se estrutura em versos e manifesta o belo pela forma, pela escolha de palavras,pelos jogos de linguagem como, entre tantos, catacreses (língua entortada), metáforas (a palavra que é o arco da memória), comparações (trocando de língua com um pouco de medo como se fosse um caso de bigamia), antropomorfizações ([as línguas] acham graça uma da outra, fazem gozação, às vezes se zangam) , pelos muitos sentidos figurados que provoca no seu descrever de fatos reais, históricos.
Nesse belo, traz o percurso da vida do Guarani, no percurso da sua linguagem sendo atravessada e finalmente parceira da língua do não indígena, colonizador. Traz a saga e o percurso da constituição da subjetividade do indígena Guarani, em que a cultura do outro se impõe e se interpõe pela língua estrangeira, que já então se faz necessária – já não vive sem elas (a sua e a do outro). Nesse sentido, é uma narrativa histórica.
O conjunto poético dessas tipologias emaranhadas no texto do Cacique Guarani Miguel Karai Tataxi Benite , pela polissemia que engendra e pelo amálgama que o constitui, produz um discurso próprio, singular. Diferente. Esse conjunto em que se notam marcas do conto, do mito, da poesia,revela algo único, indivisível, algo que se repete nas vozes indígenas em geral. É o seu modo de dizer, totalizante, como uma unidade de sentido cosmogônica como é o modo de ser indígena em qual tempo e lugar. Um modo de dizer singular que se pode compreender como saber indígena.
Considerações finais
O mundo Guarani e a Literatura se confundem, ao tempo em que vão ainda além, pela singularidade do discurso Guarani, poético, totalizante, cosmogônico e as tipologias que normalmente traduzem esse seu saber indígena não dão conta de traduzir os sentidos que os abarcam pela sua magia e subjetividade. Nhë’e – palavra-alma, linguagem Guarani e nhë’eporä, belas palavras, Ayvuporä, a bela linguagem, as palavras enfeitadas, encantadas produzem sentidos musicais e cheios de mistérios, únicos.
Escritores Guarani hoje divulgam seu saber, sua narrativa encantada, pela Literatura Nativa, como propõe o escritor Jekupé, diferenciando-a da Literatura Indígena. A primeira, de autoria dos próprios indígenas, a segunda, de escritores não indígenas. Essa divisão marca um novo tempo, o tempo da autoria, do reconhecimento dos seus conhecimentos tradicionais e da propriedade intelectual indígena, o que se materializa pelo Projeto de Lei 2.057/91. Independente desse projeto, a vida Guarani, sempre livre, porque sua palavra é alma, é eterna e intocável, indisciplinada e rebelde nos seus encantos, se faz ecoar pelas páginas da Literatura nacional, enriquecendo e tornando mais humana a convivência da nossa sociedade.
O mundo Guarani e a Literatura, assim como os mundos de todas as etnias indígenas do país estão por todos os cantos, distribuindo sua poesia na territorialidade que é tão sua. A sua poesia, pela Palavra –Verdade, como nos diz Munduruku, encantada, acostumada a povoar esse Brasil de seus mistérios, de seus encantos e personagens tão únicos, mesmo no silêncio a que foi submetida por longos séculos. E aquela Palavra, finalmente, poderá ser vivida de verdade, aquela que ainda não se ouviu, mas que a cultura indígena impõe na sua grandeza, singeleza e docilidade: alteridade.
REFERÊNCIAS
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Fonte:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br
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Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.
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