sábado, 3 de setembro de 2016

Voltaire (Memnon, o Filósofo)

Memnon, certo dia, meteu na cabeça ser um grande filósofo. Poucos homens há que não tenham, nesta ou naquela ocasião, concebido o mesmo projeto insensato. E diz Memnon de si para si:

“Se quiser ser um perfeito filósofo, e naturalmente gozar de perfeita felicidade, nada terei a fazer senão despir-me inteiramente de todas as paixões e, nada mais fácil, como todo mundo sabe. Em primeiro lugar, jamais amarei, porque, quando avistar uma mulher bonita direi comigo mesmo: aquelas faces murcharão um dia, vermelhos e lacrimosos se tornarão aqueles olhos, flácidos, cairão aqueles seios, e aquela cabeça tornar-se-á calva. Isto é, bastar-me-a imaginar o que será ela no futuro, e certamente não haverá rosto bonito que me vire a cabeça.

Em segundo lugar, serei sempre moderado. Em vão me tentarão seduzir com bom petisco, delicioso vinho, ou os encantos da sociedade. Será suficiente que me figure as consequências do excesso, uma dor de cabeça, a indigestão, a perda do juízo, da saúde e do tempo. Comerei, pois, apenas para suprir os gastos da natureza, permanecerá estável a minha saúde, e minhas ideias serão sempre luminosas e puras. É tudo tão fácil que mérito algum há de consegui-lo.

É preciso, – ainda diz Memnon – pensar um pouco no dinheiro: meus desejos são moderados, minha riqueza está entregue ao Recebedor Geral de Finanças de Nínive, tenho que viver independente e esta é a maior das bênçãos. Nunca me encontrarei na cruel necessidade de bajular a corte, não invejarei ninguém, e ninguém me invejará, todavia, isto é fácil de conseguir. Tenho amigos, continuou ele, e conserva-los-ei, pois me farão diferença, não levarei a mal o que eles disserem ou fizerem, e da mesma forma se comportarão eles comigo. E não há dificuldade neste particular.”

Estabelecido desse modo o seu modesto plano filosófico, Memnon aproximou-se da janela e olhou para a rua. Viu duas mulheres que caminhavam sob os plátanos próximos de sua casa. Uma era velha, e dir-se-ia não pensar em nada, e outra, bonita, parecia muito agitada, suspirava, chorava, e com tudo isso tornava-se ainda mais bonita. Comoveu-se o nosso filósofo, não, é claro, com a formosura da senhora (era forte sua deliberação de não se deixar levar por tais emoções), mas sim com o desgosto que no rosto dela se estampava. Desceu a escada e interpelou a jovem , no intuito de levar-lhe o consolo da filosofia. A adorável criatura contou-lhe então, com ar de grande simplicidade, e de maneira afetuosíssima, as injúrias que sofria de um tio imaginário, da manha com que a despojara ele de seus bens imaginários, e das violências que fingiu sofrer. “Vejo ser o senhor – disse depois – homem de tamanha sabedoria, que se condescender em seguir-me até a minha casa e examinar de perto a minha situação, estou convencida de que me livrará dos cruéis sofrimentos de que sou vítima.” Não hesitou Memnon em acompanhá-la, a fim de filosoficamente examinar-lhe os problemas íntimos e dar-lhe avisado conselho.

Conduziu-o a aflita senhora a um quarto perfumado, e polidamente fê-lo sentar-se com ela num largo sofá, onde ambos se colocaram em posição de conversa, um em frente do outro, as pernas cruzadas, uma, ansiosa por contar a própria história, o outro, pronto para escutá-la com atenção devota. A senhora falou com os olhos baixos, dos quais uma ou outra vez deslizava uma lágrima, e quando se aventurava a erguê-los, se encontravam sempre com os do sábio Memnon. Cheio de ternura foi o discurso dela, e redobrava de meiguice toda vez que seus olhos se encontravam. Memnon acolheu em seu coração, com excessivo ardor, os lamentos da senhora, e a cada instante mais e mais inclinado se sentia a servir uma tão virtuosa e infeliz criatura. Aos poucos, com o calor da conversa, deixaram de sentar-se um diante do outro, aproximaram-se mais, e já não tinham as pernas cruzadas. De tão perto a aconselhava Memnon, e com tão suave exortação, que pouco depois não falavam mais de aflições e não sabiam o que tinham ido ali fazer.

Nesse interessante momento, como bem pode ser imaginado, quem chegou se não o tio? Vinha armado da cabeça aos pés, e a primeira coisa que disse foi que sacrificaria imediatamente, como era justo, o sábio Memnon e a própria sobrinha, a última a afirmar foi que estava disposto a perdoar mediante polpuda quantia. Memnon foi obrigado a comprar a própria liberdade com todo o dinheiro que possuía no momento. Naqueles dias se conhecia a felicidade da fácil libertação. A América não fora descoberta, e as senhoras aflitas não eram tão perigosas quanto são as de hoje.

Coberto de vergonha e confusão, retirou-se Memnon para sua casa; lá encontrou um convite para jantar com um de seus amigos íntimos. “Se eu ficar só em casa, pensou ele, ficarei todo o tempo a martirizar o espírito com esta triste aventura, não serei capaz de comer migalha, e acabarei doente. É prudente, pois, que eu vá ver os meus amigos e partilhe com eles de um frugal repasto. Esquecerei, com os encantos da companhia, a tolice que tive, a fraqueza de praticar hoje de manhã”. E foi à festa. Lá sentiu-se indisposto, e pediram-lhe para beber e pôr de parte os cuidados. Um pouco de vinho, bebido com moderação, conforta o coração de Deus e do homem, assim raciocinou o filósofo Memnon, e acabou embriagado. Depois da refeição, alguém propôs o jogo. Um joguinho com amigos íntimos é inofensivo passa tempo. Jogou e perdeu tudo o que tinha na carteira, e quatro vezes mais, sob palavra. Em dado momento do jogo, surge uma discussão, os contendores se acaloram, e um dos amigos íntimos atira-lhe à cabeça uma caixa de dados, além de esmurrar-lhe um olho. Embriagado e sem níquel, levam para casa o filósofo Memnon que sentia ainda o desfalque de uma vista.

Dorme ele a sua orgia, e quando sente mais lúcido o entendimento manda o criado à casa do Recebedor Geral das Finanças de Nínive, a fim de sacar pequena importância com que pretende pagar a dívida de honra assumida com os amigos íntimos. Volta o criado e diz-lhe que naquele mesmo instante fora o Recebedor Geral declarado em falência fraudulenta, e que com isso tinham sido reduzidas à pobreza e ao desespero centenas de famílias. Memnon, quase fora de si, põe um emplastro no olho e uma petição no bolso, e corre à justiça para pedir intervenção do rei contra o falido. No palácio encontra-se com inúmeras senhoras em excelente disposição de espírito, todas vestidas de saias de arcos de vinte e quatro pés de circunferência. Uma delas, que o conhecia, olha-o de soslaio e brada:

“Oh! Que monstro horrível!” E outra, mais bem relacionada com o filósofo, chega-se a ele com estas palavras. “Bom dia, sr. Memnon. Folgo em vê-lo tão bem disposto. Ah! Como perdeu o olho, sr. Memnon?” E girando no calcanhar afastou-se sem esperar resposta.

Memnon escondeu-se num canto e esperou a hora de atirar-se aos pés do monarca. Chegou enfim o momento. Três vezes beijou o chão, e entregou o seu requerimento. Sua Majestade recebeu-o muito favoravelmente, e passou o papel a um dos sátrapas, para que lhe desse seu parecer. O sátrapa agarra Memnon, leva-o para o lado, e diz-lhe com ar altivo e um arreganho satírico:

“Ouça, seu caolho, você me parece um grande impertinente, para dirigir-se ao rei em vez de falar comigo, e mais ainda por se atrever a pedir justiça contra um honesto falido, a quem protejo, e que é sobrinho da dama de companhia de minha senhora. Não se envolva mais neste negócio, meu bom amigo, se quiser poupar o olho que lhe resta”.

Memnon, que, havia pouco no seu quarto, renunciara às mulheres, aos excessos da mesa, ao jogo e às controvérsias, e que especialmente determinara jamais ir à corte, no espaço de vinte e quatro horas fora ludibriado e roubado por sedutora dama, embebedara-se, jogara, numa querela perdera um olho, e comparecera à corte, onde o insultaram e maltrataram.

Petrificado de estupefação, o coração varado de mágoas, voltou Memnon para casa, em desespero. Ia entrar, quando foi repelido por oficiais de justiça que lhe carregaram a mobília para compensação dos credores: deixou-se cair sob um plátano, quase sem vida. Encontrou aí a linda mulher da aventura matinal, a qual conversava com seu estimado tio e ambos explodiram em gostosa gargalhada ao avistar Memnon com o emplastro. Caiu a noite, e Memnon preparou seu leito num monte de palha perto de sua casa. Atacou-o a febre intermitente, e ele adormeceu num dos acessos, quando lhe apareceu em sonho um espírito celestial.

Era todo resplandecente: tinha seis asas vistosas, mas nem pés, nem cabeça, nem cauda, não havendo nada com que ele se assemelhasse.

– Quem és? – perguntou Memnon.

– O teu anjo da guarda – replicou-lhe a aparição.

– Devolve-me então o meu olho, minha saúde, a fortuna e o entendimento que perdi – implorou Memnon, e contou-lhe como tudo perdera em um só dia.

– São aventuras que nunca nos esquecem no mundo onde vivemos. – disse o espírito.

– E que mundo habitas? – perguntou o aflito homem.

– Minha terra natal – replicou seu interlocutor – fica a quinhentos milhões de léguas distante do Sol, numa pequenina estrela perto de Sírius que daqui se pode ver.

– Encantador país – exclamou o filósofo. – E não há realmente mulheres vis para enganar um pobre diabo, nem amigos íntimos que nos roubem o dinheiro e nos arranquem os olhos a murros, nem falências fraudulentas, nem sátrapas que escarneçam de nós ao mesmo tempo que nos negam justiça?

– Não, – disse o habitante da estrela – nada disso que falaste temos lá. As mulheres não nos ludibriam, porque as desconhecemos, à mesa não cometemos excessos, porque jamais comemos ou bebemos, não sabemos o que são falências, porque não possuímos ouro nem prata, nem nos podem arrancar os olhos a bofetadas porque não temos, como os teus e, por sermos todos iguais, não existem lá sátrapas, que nos façam injustiças.

– Senhor! – atalhou Memnon – Sem mulheres e sem comer, como passais o tempo?

– A vigiar – disse o gênio – os outros mundos que nos são confiados, e eu aqui estou para consolar-te.

– Ai de mim! – lamentou-se o filósofo – Porque não vieste ontem para impedir que eu praticasse tantos despautérios?

– Estive com Hassan, teu irmão mais velho. – replicou a celestial criatura. – Ele merece muito mais piedade do que tu. Sua Majestade benevolentíssima, o Sultão das Índias, em cuja corte ele tem a honra de servir, mandou-lhe arrancar os dois olhos por insignificante indiscrição, e está agora num calabouço, mãos e pés cobertos de grilhões.

– É de fato uma felicidade – disse Memnon – ter-se na família um anjo bom, quando um irmão é cego de um olho, e outro de ambos: um a dormir na palha, jogado o outro num calabouço.

– Tua sorte mudará. – declarou o animal da estrela. – É uma verdade que nunca mais recobrarás a vista, mas afora isto, serás suficientemente feliz se tirares da cabeça a ideia de ser filósofo perfeito.

– É isso, então, coisa impossível? – indagou o outro.

– Tão impossível quanto a sabedoria perfeita, a força, o poder ou a felicidade perfeitos. Nós, ao menos, estamos longe disso. Há em verdade um mundo onde tudo é possível, mas nos cem mil milhões de mundos dispersos no espaço tudo caminha gradualmente. Há menos filosofia e menos prazeres no segundo do que no primeiro, menos no terceiro de que no segundo, e assim até o último da escala, onde são todos completamente loucos.

– Receio – disse Memnon – ser o nosso pequeno globo terráqueo o manicômio desses cem mil milhões de mundos dos quais tive a honra de ouvir referências.

– Não é bem assim – respondeu o espírito – mas é quase. Tudo deve estar no seu devido lugar. – Mas certos poetas e filósofos não têm então razão quando nos dizem que tudo está pelo melhor no melhor dos mundos?

– Eles têm razão – respondeu o filósofo celestial – mas quando consideramos as coisas relativamente ao universo inteiro…

– Oh! Pois nunca mais acreditarei em nada disso, enquanto não recuperar o olho perdido – replicou o infortunado Memnon.

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