domingo, 18 de setembro de 2016

Sinclair Pozza Casemiro (Mundo Guarani e Literatura) Parte I

RESUMO: O mundo Guarani, por ser poético, se confunde com literatura, arte, ao tempo em que superam essas e quaisquer classificações. Tipologias serão apresentadas, tendo em vista as produções culturais Guarani, respeitando a sua singularidade ao colocarem nelas, os Guarani,a própria alma, a verdade, a partir do sentido que a palavra nhë’e (palavra-alma) possui para sua cultura. Já existe uma significativa produção escrita de Literatura Guarani, em que autores indígenas vêm se destacando, como o Guarani Jekupe, que propõe o entendimento da Literatura,ao tratar das produções indígenas, em duas divisões:a Literatura Nativa, escrita pelos próprios indígenas e a Literatura Indígena, escrita por não indígenas. Também se destaca Munduruku em Contos Indígenas Brasileiros(2005): ao apresentar o valor da Palavra- que encanta e dá direção à cultura indígena, sinônimo de Verdade para essa cultura, de poesia e encantamento, por meio de seus mitos,faz um apanhado deles em várias aldeias do Brasil e os denomina Contos Indígenas Brasileiros. A Palavra, espiritualizada e cosmogônica, empresta a culturas indígenas, desenfornadas e livres de preocupação com classificações, a constituição de sua própria identidade.

Introdução


Quando lemos as narrativas que os Guarani contam, ou que são contadas por autores não indígenas a partir do que deles ouvem, transcritas em diferentes aportes textuais, percebemos a dúvida na indefinição de sua tipologia: mito, lenda, fábula, conto, poesia. Ocorre que essas denominações são utilizadas na perspectiva não indígena do entendimento do mundo Guarani. Na perspectiva Guarani, tais narrativas têm um sentido cosmogônico, de Verdade, como diz Munduruku (2005). Mesmo quando ficcionais, seus objetivos são de encaminhar as vivências tradicionais, dirigir a sua espiritualidade, continuar essa tradição na resistência material e espiritual de sua cultura ou mesmo marcar sua identidade e subjetividade no convívio multiétnico da sociedade nacional. A tipologia de mitos, contos, lendas, etc., fruto da racionalidade ocidental e aprendida no contato, é recurso a que se apegam para equacionar a comunicação, adequá-la, tornar possível suas leituras no universo literário não indígena, porém isso não interfere no sentimento que experimentam ao vivenciá-las enquanto estruturas não apenas de textualidade, mas da própria vida. E, por outro lado, essa tipologia, de perspectiva não indígena, tem uma razão que extrapola os limites dessa adequação. Isso tem razões históricas, que resultam da concepção política
que orientou até então o contato entre as culturas indígenas e não indígenas.

O autor Guarani Jekupé (2010) esclarece a diferença entre Literatura Indígena e Literatura Nativa, partindo principalmente do critério de autoria: a Literatura Indígena é aquela contada e escrita pelo não indígena sobre o que ouviu dos indígenas. E a Literatura Nativa é aquela contada e escrita pelos próprios indígenas, são autênticas e partem de sua vivência, mesmo sendo narrativas de ficção.

Após a Constituição de 1988, que finalmente reconhece o indígena como sujeito autônomo, que reconhece as culturas indígenas como constitutivas da realidade nacional, ou seja,reconhece uma nacionalidade brasileira plural e multiétnica, legitima tardiamente, muito embora, a voz indígena na sua autonomia, singularidade. O que, então, significa dizer que suas tradições de contar, tradição de saberes, de narrativas envoltas num sagrado e espiritualizado, num poder de magia que encantam e que as diferenciam radicalmente, sejam manifestadas sem restrição alguma, sem equações ou adequações ao dizer não indígena, salvo por desejo criativo e/ou recurso poético do autor indígena, livre para se posicionar, imaginar e contar a quem, como, quando e por que quiser. Assim, conhecer um pouco do mundo Guarani e da sua Literatura Nativa, toda ela poética, se faz necessário para entendermos o que, por trás dela, se omite: uma cultura outra, autônoma, que muito tem a enriquecer o universo brasileiro e a Literatura nacional com a sua diferença, mas que permanece pouco conhecida.

Convidamos a essa reflexão e sugerimos pensar em sentidos livres,que não descaracterizem o valor de Verdade que seu discurso carrega. Uma denominação que seja apropriada, nesse intento, para abordar o conceitual de suas narrativas e seus demais discursos, numa unidade de sentido que leve essa Verdade na sua mensagem única e singular, para além das fragmentações tipológicas da perspectiva não indígena. Mas, sentimos, principalmente pelo dizer de autores indígenas como Jekupé, Cacique Benite, Munduruku e pela vivência no tekoha Verá Tupã’i de Campo Mourão-PR, que essa preocupação vai além da cultura indígena Guarani, ela vale para as culturas indígenas em geral. E extrapola a diversidade de tipologias, porque o sentido que possuem é totalizante, sendo manifestado numa unidade conceitual em que apenas a Palavra compreendida de forma cosmogônica e mágica pode dar suporte. Dessa forma, pensamos compreendê-los como saber indígena.

Por saber indígena entendemos as narrativas e demais produções discursivas indígenas, ficcionais ou não, de conhecimentos práticos ou não, de conhecimentos científicos e tecnológicos próprios, conhecimentos cosmogônicos, que são tradicionalmente contadas nas aldeias como valor constituinte de sua cultura, que dão direção e sentido a toda a sua vivência. E que são contadas aos não indígenas por outros objetivos, sendo que esses não indígenas, como estudiosos, pesquisadores e seus representantes legais ou mesmo como visitantes, repassam à sociedade não indígena como um todo. Entre os indígenas há narrativas que nem sempre são permitidas à divulgação seja na oralidade ou na escrita. Entre os Guarani, por exemplo, algumas dessas narrativas só são permitidas dizer e ouvir no seu espaço sagrado que é a Casa de Reza –Opy. E é ali onde apenas eles e apenas aqueles não indígenas-juruás, dignos ou aceitos pela sua cultura podem escutá-las pela voz do Xamoí. São esses discursos, esse saber que permitiram e permitem a continuidade de suas existências, de suas culturas.

1. Mitos, Fábulas, Lendas, Contos, Poesia

    Não raras vezes uma mesma narrativa indígena é transcrita para a Literatura não Indígena como Mito ou Lendaou Conto ou Fábula ou Poesia. Vamos brevemente fazer uma apresentação dessas tipologias. Mito etimologicamente vem do grego, mythus, “fábula”, pelo latim mythu (CUNHA, 1982,p.525;AURÉLIO, 1974, p.931). Para o etimologista Cunha:“sm. ‘narrativa, geralmente de origem popular, sobre seres que encarnam simbolicamente as forças da natureza, aspectos da condição humana´’fábula’ ‘representação idealizada de um estado da humanidade em um passado remoto ou num futuro fictício”. Etimologicamente, pois, mito e fábula se confundem num traço de não realidade. Na atribuição geralmente de origem popular, a definição atribui diferenças entre culturas erudita e popular, deixando entrever um traço hierárquico entre ela se creditando esse tipo de narrativa à última em especial. Quanto ao tempo, é passado ou futuro a representação que o mito traz e ela é fábula sempre idealizada, metafísica por entidades não definidas: seres que encarnam simbolicamente a natureza e a condição humana. Ou seja, contempla a dimensão humana fragmentariamente (aspectos da condição humana) e a condição metafísica; o tempo é nãopresente, não-real e fábula, como seu sinônimo, traz um traço de não-verdade.

Para o dicionarista Aurélio (1974,p.931), mito é narrativa de tempos fabulosos ou heroicos, de significação simbólica, geralmente ligada à cosmogonia e referente a deuses encarnadores da força da natureza e/ou aspectos da condição humana, representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição popular, enfim, mito traz também traços de um tempo que não é este, de uma realidade que não é esta, de uma não verdade para os critérios de nosso mundo da razão. Quando fala em mito da caverna, na filosofia, de Platão, define o mito como figurando o processo pelo qual a alma passa da ignorância à verdade.

Enfim, o que percebemos é uma disjunção da razão, da objetividade com relação à imaginação, à subjetividade, contemplando-as de forma opostas, contraditórias e atribuindo ao racional, objetivo aspectos de uma cultura superior - a erudita em detrimento de uma cultura popular, o que também se faz de forma disjuntiva.

Mircea Eliade (2010), mitólogo, apresenta o seguinte conceito:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros temos, o mito narra como, graças à façanha dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.

O mitólogo remete ao sagrado e a um tempo passado, de princípio,em realidades totais ou fragmentadas e mesmo institucionais. Lévi Strauss, como antropólogo que estudou diversas comunidades indígenas na América do Norte e na América do Sul (no Brasil), apresenta um conceito mais historicizado, sem perder a ideia de origem: “O mito é a história de um povo, é a identidade primeira e mais profunda de uma coletividade que se quer explicar.” LEVY-STRAUSS, 2010).

Na definição da psicanalista Fragoso, o mito tem também a marca de origem e é tradutivo da forma como cada civilização se entende e se interpreta assim como entende e interpreta outras civilizações: “O mito constitui uma realidade antropológica fundamental, pois ele não só representa uma explicação sobre as origens do homem e do mundo, em que vive, como traduz, por símbolos ricos de significado, o modo como um povo ou civilização entende e interpreta a civilização” (FRAGOSO, 2013).

A fábula - mithu em latim, que levou ao grego o sentido de mythus, para Cunha (1982,p.342) e Aurélio (1974, p.604) tem o sentido explícito de alegoria, imaginação com fins morais e via de regra com personagens animais, trazendo como sinônimos lenda, mito. Há também outra origem etimológica: do lat. Fari (falar) e do gr. Phaó (dizer, contar algo), que traz a mesma definição.

A lenda em Aurélio (1974,p.829) tem a etimologia de “coisas que devem ser lidas” e a tradição popular. Cunha, em seu dicionário etimológico (1982,p.469) remete diretamente ao verbo ler, onde a define como narrativa, conto, legenda. Na literatura,as lendas inicialmente contavam histórias de santos, mas ao longo do tempo o conceito se transformou em histórias que falam sobre a tradição de um povo e que fazem parte de sua cultura. Narrativas transmitidas oralmente com o objetivo de explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Assim, há mistura de fatos reais com imaginários, história e fantasia; vão sendo contadas ao longo do tempo e modificadas pela imaginação do povo.

A definição de conto é apresentada pelos dicionarista Aurélio (1974,p.174) como uma forma deverbal de contar e o autor remete conto a uma narração falada ou escrita, um engodo, embuste, mentira, invenção, peta, puerilidade. O etimologista Cunha (1982,p.211) remete conto a contar(p.210), como relatar e narrar. Para os literatos, a tipologia conto tem sem sempre uma definição convergente. Duarte (2013), assim o define:
Perfaz-se de todos os elementos que compõem a narrativa, ou seja, tempo, espaço, poucos personagens, foco narrativo de 1ª ou 3ª pessoa, corroborando em uma sequência de fatos que constituem o enredo, também chamado de trama.. É um dos fatores de total relevância, é que o enredo apresentase de forma condensada e sintética, centrado em um único conflito. Tal característica tende a criar o que chamamos de unidade de impressão (DUARTE, 2013).

Essa definição marca uma tipologia estruturada em conflito e busca de resolução, nem sempre presente, algumas vezes a se complementar pelo leitor.O conto remete geralmente à realidade presente, mas também se marca pela narrativa de um passado histórico, real, ou mesmo irreal, surreal. Porém, sempre em torno do conflito único, de poucos personagens e de forma sintética.

Conforme percebemos, as definições de mito, fábula, lenda e conto apresentam em comum a disjunção entre o que é real e imaginário, o que pertence ao tempo primordial, de origem e o que pertence ao tempo histórico.

Ainda o sentido de realidade se procura separar entre o que é pertencente a uma dimensão do mundo real, surreal, físico e o que é pertencente ao mundo sagrado, metafísico, entendidos esses últimos como sendo uma dimensão não racional, não própria do mundo objetivo, terreno. Os dicionaristas remetem a destinação dessas tipologias geralmente à cultura popular, fazendo também uma disjunção entre as culturas como sendo erudita ou popular. Nesse sentido, o mitólogo, o antropólogo e a psicanalista divergem do dicionarista e etimologista, pois nenhum deles, ao definirem mito, hierarquiza as culturas, fica implícito ou não o sentido de civilização. Fábula e conto trazem o sentido, no dicionarista, a não verdade, o engodo, muito mais em conto, embora esse sentido esteja presente também em mito,lenda e fábula para o dicionarista e o etimologista. Para o literato, conto é narrativa de ficção.

Na perspectiva indígena Guarani, a Palavra é cosmogônica e leva a essas denominações um sentido totalizador, misterioso e com magia traduz a sua vivência, sem fragmentação. A Palavra, sendo sagrada, é mística e está em primeiro plano para a sua cultura, acima dessas denominações tipológicas.

Munduruku (2005,p.4), ao apresentar os mitos de várias etnias indígenas brasileiras que selecionou para narrá-los como contos, em Contos Indígenas Brasileiros, esclarece que para a cultura indígena em geral o que importa é a magia e o encantamento que ela, a Palavra, revela e a que ela conduz “Mesmo vivendo numa época em que a tecnologia impera e coloca a Palavra – aqui como sinônimo de Verdade – em segundo plano...” Mais adiante (p.5),assim se manifesta:
Muitos dos personagens que por aqui passam não são criação de uma mente insana, mas são personagens vivos de uma realidade repleta de mistérios com seus seres, espíritos, duendes, encantados, bruxas; seres com os quais as pessoas se relacionam, aprendem, crescem, brincam, brigam; seres que metem medo nas crianças e adultos; seres que embalam a fantasia e alimentam os mistérios da própria existência. Ou seja, a vivência indígena se povoa de mistérios e misteriosos seres, encantamentos, o poético está em sua Palavra e em sua existência real.

Por fim - continuando as tipologias -, a poesia, na perspectiva não indígena é conceituada como: “a arte de escrever em versos, aquilo que desperta o sentimento do belo” (CUNHA, 1982, p. 617). A segunda parte dessa definição vale para a perspectiva indígena em geral. E vale especialmente para o Guarani, considerando a sua língua como um todo, já que toda ela é poética,melódica e sagrada, bela, pela própria definição de linguagem: nhë’ e – palavra-alma e que se intensifica nas suas intenções continuadas conforme a autoria de quem as pronuncia: nhë’e – palavra-alma; nhë’eporä – belas palavras; ayvuporä- palavras sagradas, enfeitadas. Quem se deixa destituir danhë’e - palavra-alma se torna um tekoachykoe – o que confunde a natureza e o sobrenatural, que se torna um jaguar, um ser animalizado (Clastres, 1978,p.94). O sobrenatural para os Guarani fica entre a natureza e a cultura (id. p.29). Para os Nhandeva de Laranjinhas-PR, o tatu simboliza esse animal sob o qual o abusante se transmuda quando perdido de sua palavra-alma (CASEMIRO, 2013).

Dessa forma, percebemos que a palavra, para a perspectiva indígena, espiritualizada e cosmogônica, sinônimo de Verdade e que dá direção e sentido a sua cultura, como escreveu Munduruku, não se deixa aprisionar sob o signo das classificações racionalizadas e enformadas em tipologias da cultura não indígena. As tipologias da cultura não indígena, como as conhecemos, não foram pensados para esse discurso Guarani, que permanece inteiro e totalizante na relação palavra-alma/alma-palavra, por isso cheio de poesia, encantamento, verdade e imaginação, mistério. Contendo a sua verdade, o seu mundo, discurso essencialmente espiritualizado. A tentativa de aprisioná-lo resulta risco. O sentido maior de Literatura enquanto Arte, porque poética, inesgotável fonte de sentidos pode tentar estabelecer alguma aproximação possível à compreensão desse saber indígena. Não dizível, o sentido da Literatura Nativa Guarani, do discurso Guarani em nossos dias, permanece sagrado, intocável, porque poético na sua essência e natureza.

Mesmo após tantos séculos de tentativa de subjugação cultural, o seu discurso, a sua Literatura Nativa, como escreveu Jekupe, não se deixou apropriar, não se domesticou nem se acomodou, não se colonizou, resistiu e não se assimilou ao racionalismo não indígena. O que significa dizer que a sua alma nunca foi roubada: o Guarani, pois, pela sua Palavra, continua livre...
________________
continua
_______________________

Fontes:
Anais do I Encontro de diálogos literários: um olhar para além das fronteiras. Campo Mourão: Fecilcam, 2013. 453 p.
Imagem = www.vermelho.org.br
____________________________________
    Sinclair Pozza Casemiro é graduada em Letras Anglo Portuguesa pela Universidade Estadual de Maringá [UEM] (1976), mestrado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (1995), doutorado em Letras, Área de Filologia e Lingüistica Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho [UNESP] (2001) e pós-doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo [USP].
         Coordenadora de Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Caminho de Peabiru na COMCAM – NECAPECAM, com sede em Campo Mourão, pesquisadora pelo CNPq da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão – FECILCAM. Foi diretora e vice-diretora da Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, FECILCAM.

Nenhum comentário: