terça-feira, 13 de setembro de 2016

Filinto Elísio (Poemas Recolhidos)

UNS LINDOS OLHOS, VIVOS, BEM RASGADOS

Uns lindos olhos, vivos, bem rasgados,
    Um garbo senhoril, nevada alvura;
    Metal de voz que enleva de doçura,
    Dentes de aljôfar, em rubi cravados:

Fios de ouro, que enredam meus cuidados,
    Alvo peito, que cega de candura;
    Mil prendas; e (o que é mais que formosura)
    Uma graça, que rouba mil agrados.

Mil extremos de preço mais subido
    Encerra a linda Márcia, a quem of'reço
    Um culto, que nem dela inda é sabido:

Tão pouco de mim julgo que a mereço,
    Que enojá-la não quero de atrevido
    Co' as penas, que por ela em vão padeço.

TEM A VIRTUDE O PRÊMIO

Tardio às vezes, sempre merecido,
    Tem a Virtude o prêmio aparelhado
    Ao profícuo talento, ao peito honrado,
    Que do dever o estádio tem corrido.

O Sábio, que dos louros esquecido
    Só no obrar bem os olhos tem cravado
    Inópino* também se acha c'roado
    Por mãos sob'ranas c'o laurel devido.

Útil à Pátria seja, as paixões dome,
    Seja piedoso, honesto, afável, justo;
    Que no futuro o espera ínclito* nome.»

Assim falou Minerva ao Coro augusto,
    Pondo no Templo do imortal Renome,
    De glória ornado, o teu prezado Busto.
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*Vocabulário
Inópino – Surpreendente 
Ínclito – notável por seus méritos e qualidades excepcionais; egrégio, celebrado, famoso, ilustre 
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SAUDADE EXTREMA

I
Gentil Rola, que sobre o ramo seco,
    Desse viúvo freixo, brandas queixas
    Espalhas toda a noite, e escutas o eco
    Repetir-te mavioso iguais endechas:

II
Não chores. Ouve a meu saudoso canto,
    Que excede quanta mágoa arroja a sorte:
    Ninguém, como eu padece extremo tanto,
    Que a ninguém roubou tanto a crua Morte,

III
Tu viste Márcia: a Márcia, oh Rola, ouviste,
    Quanta beleza, oh Céus! quanta doçura!
    Tem coração de bronze quem resiste
    À dor de a ver no horror da sepultura.

IV
Tu podes ter formosa companhia
    Terna e fiel. Filinto desgraçado
    Te perdeu a ‘sperança lisonjeira
    De achar Márcia em transunto inanimado.

SONETO

Estende o manto, estende, ó noite escura,
enluta de horror feio o alegre prado;
molda-o bem c'o pesar dum desgraçado,
a quem as feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, céu, que esta amargura
em que se agora ceva o meu cuidado,
gostará de ver tudo assim trajado
da negra cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,
rebente o mar em vão n'ocos rochedos,
solte-se o céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;
quero nutrir-me de arriscados medos,
quero saciar de mágoa a minha mágoa!

À MINHA MORTE

Sei, que um dia fatal me espera, e talha
    A minha vida o estame**:
Nem Prosérpina evita uma só frente.
    Sei que vivi: mas quando
Tem de soltar-se, ignoro, o vivo laço;
    E se claros, ou turvos
Se hão-de erguer para mim os sóis vindouros. —
    Pois, que ao sevo** Destino
Me é vedado fugir, fugi ao longe
    Roazes** Amarguras,
Que estes permeios anos minar vinheis.
    Rir quero — e mui folgado,
De vos ver ir correndo, de encolhidas,
    Escondendo na fuga,
As caudas dos medonhos ameaços.
    Quero, entre mil saúdes,
De vermelha, faustíssima alegria
    Ir passando em resenha,
Taça após taça, a lista dos amigos,
    E o coro das formosas,
Que a vida me entreteram com agrado.
    E reforçado e lesto**
C'o néctar da videira, as mãos travando
    Co'as engraçadas Musas,
Em dança festival, com pé ligeiro,
    Na matizada relva,
Cansar de tanto júbilo o meu sp'rito,
    Que se vá (sem que o sinta)
Continuar o baile nos Elísios)
    Entre o Garção e Horácio.
De lá, em novas Odes, que mais valham
    Que quantas fiz ‘té gora,
(Pois que emendadas pelo douto Mestre)
    Darei pasto à mania
De versejar, que me tomou bem tenro,
    Que zombou de remédios.
E de lá mandarei guapos modelos,
    Onde ávidos alunos
Bebam largas lições; — se achar Correio;
    Que deles se encarregue,
E refretando a barca de Caronte,
    Cá lhas recove** ao Mundo.
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** Vocabulário
Estame – decurso da existência 
Sevo – cruel 
Roazes – destruidoras, devastadoras 
Lesto – ágil, rápido, esperto 
Recove – transporta

USOS DESTE MUNDO

Nas praças uns perguntam novidades;
Outros dão volta às ruas, ao namoro;
Este usuras cobrar, esse as demandas
Lembrar corre ao Juiz que se diverte.

Ir de Jano aprender a ser bifronte,
De Mercúrio, no trato, a ser bilingue,
Franco no prometer, no dar escasso.
C'os olhos fitos no ávido interesse
Ser consigo leal, com todos falso
É ser homem capaz, home' entendido.

Assim, que vemos nós por este esconso
Mundo? Vemos logrões, vemos logrados;
Ninguém vês ir com cândido desejo
Aos Sénecas, aos Sócrates de agora
Perguntar as lições tão necessárias
De ser honrado, ser com todos justo.

Tão sobejos se crêem de honra e virtude,
Que cuida cada um poder de sobra
Mostrar na Ocasião virtude a rodo,
E chega a Ocasião, falha a virtude.

ODE À AMIZADE

Se depois do infortúnio de nascermos
Escravos da Doença e dos Pesares
Alvos de Invejas, alvos de calúnias
    Mostrando-nos a campa
A cada passo aberta o Mar e a Terra;

Um raio despedido, fuzilando
Terror e morte, no rasgar das nuvens
    O tenebroso seio
A Divina Amizade não viera
Com piedosa mão limpar o pranto,
Embotar com dulcíssono conforto
    As lanças da Amargura;

O Sábio espedaçara os nós da vida
Mal que a Razão no espelho da Experiência
Lhe apontasse apinhados inimigos
    C'o as cruas mãos armadas;

Terna Amizade, em teu altar tranquilo
Ponho — por que hoje, e sempre arda perene
O vago coração, ludíbrio e jogo
    Do zombador Tirano.

Amor me deu a vida: a vida enjeito,
Se a Amizade a não doura, a não afaga;
Se com mais fortes nós, que a Natureza,
    Lhe não ata os instantes.

Que só ditosos são na aberta liça
Dois mortais, que nos braços da Amizade,
Estreitos se unem, bebem de teu seio
    Nectárea valentia.

Tu cerceias o mal, o bem dilatas,
E as almas que cultivas cuidadosa,
Com teu suave alento aformosentam-se
    Medradas e viçosas.

Caia a Desgraça, mais que o raio aguda
Rebente sobre a fronte ao mal votada,
Mais lenta é a queda, menos cala o golpe
    No manto da Amizade:

E se desce o Prazer, com ledo rosto
A alumiar o peito de Filinto,
A chama sobe, e vai prender seu lume
    Na alma do fido Amigo.

ODE À ESPERANÇA

1
Vem, vem, doce Esperança, único alívio
    Desta alma lastimada;
Mostra, na c'roa, a flor da Amendoeira,
    Que ao Lavrador previsto,
Da Primavera próxima dá novas.
 2
Vem, vem, doce Esperança, tu que animas
    Na escravidão pesada
O aflito prisioneiro: por ti canta,
    Condenado ao trabalho,
Ao som da braga, que nos pés lhe soa,

3
Por ti veleja o pano da tormenta
    O marcante afoito:
No mar largo, ao saudoso passageiro,
    (Da ‘sposa e dos filhinhos)
Tu lhe pintas a terra pelas nuvens.

4
Tu consolas no leito o lasso enfermo,
    C'os ares da melhora,
Tu dás vivos clarões ao moribundo,
    Nos já vidrados olhos,
Dos horizontes da Celeste Pátria.

5
Eu já fui de teus dons também mimoso;
    A vida largos anos
Rebatida entre acerbos infortúnios
    A sustentei robusta
Com os pomos de teus vergéis viçosos.

6
Mas agora, que Márcia vive ausente;
    Que não me alenta esquiva
C'o brando mimo dum de seus agrados,
    Que farei infeliz,
Se tu, meiga Esperança, não me acodes?

7
Ai! que um de seus agrados é mais doce
    Que o néctar saboroso;
É mais doce que os beijos requintados
    Da namorada Vênus,
A que o Grego põe preço tão subido.

8
Vem, vem, doce Esperança, que eu prometo
    Ornar os teus altares
Co'a viçosa verbena, que te agrada,
    Co'a linda flor, que agora,
Enfeita os troncos, que te são sagrados.

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