sexta-feira, 8 de novembro de 2024

José Feldman (O brilho dos antigos Carnavais [ou a falta dele])

Ah, o Carnaval! Essa época mágica do ano em que, por alguns dias, as regras sociais parecem ser colocadas de lado, e a fantasia toma conta das ruas. Mas, se você der um passo atrás e olhar para os carnavais dos tempos antigos, vai perceber que o clima era bem diferente do que encontramos nas festas modernas. 

Vamos fazer uma viagem no tempo, entre confetes, serpentinas para entender o que aconteceu com essa celebração tão rica.

Imagine-se no século XVIII, em uma pequena cidade do Brasil colonial. O Carnaval era uma explosão de cores e sons, com a população se reunindo para celebrar antes do jejum da Quaresma. As pessoas se fantasiavam, mas não era apenas para esconder a identidade; era uma oportunidade de quebrar as barreiras sociais. O rico se misturava ao pobre, o senhor ao escravo, todos dançando em harmonia enquanto o som dos tambores ecoava pelas ruas.

Era uma época em que a folia tinha um significado profundo. O Carnaval era quase uma válvula de escape, um momento em que as tensões sociais eram temporariamente dissolvidas. As pessoas podiam rir de seus problemas, zombar das autoridades e se sentir livres, mesmo que por um breve instante. Os pierrôs e as colombinas, representações de amor e desamor, dançavam sob os olhares divertidos da multidão, enquanto as máscaras escondiam não apenas rostos, mas também as frustrações do cotidiano.

Por outro lado, se você olhar para os carnavais contemporâneos, vai notar que, embora a festa ainda tenha seu brilho, algo parece um pouco… diferente. Hoje, o que vemos são escolas de samba competindo por prêmios, trios elétricos arrastando multidões e fantasias que custam mais do que meu salário mensal. E o que aconteceu com aquele espírito de união e liberdade? Ah, esse parece ter sido deixado em casa, ao lado da fantasia que nunca foi usada.

Nos tempos antigos, as pessoas se reuniam em praças para dançar, cantar e celebrar a vida. Não havia uma marca patrocinando cada bloco, nem uma equipe de marketing planejando como fazer o evento “viralizar” nas redes sociais. O que havia era uma alegria genuína, uma sensação de comunidade que fazia cada um se sentir parte de algo maior. As pessoas não precisavam de um "influencer" para lhes dizer como se divertir; elas já sabiam.

E não vamos esquecer do humor! Os antigos carnavalescos eram mestres na arte de fazer rir. As sátiras e as brincadeiras eram uma forma de crítica social, uma maneira de expor as hipocrisias da sociedade. Hoje, corremos o risco de levar tudo muito a sério. Se alguém decide se fantasiar de abacaxi, pode ser que acabe em uma discussão acalorada sobre apropriação cultural! Cadê o tempo em que a única preocupação era se o confete estava colado na fantasia ou se a serpentina ia acabar antes do final da festa?

Ah, e as músicas! As marchinhas de antigamente, com suas letras engraçadas e críticas sociais sutis, faziam todo mundo cantar junto. Hoje, você ouve uma batida eletrônica que não dá tempo nem de entender a letra. E, se você perguntar sobre o significado da música, a resposta provavelmente será: “É o ritmo, meu amigo! O importante é dançar!” Certamente, dançar é importante, mas um pouco de letra inteligente não faria mal a ninguém.

Além disso, o Carnaval antigo possuía uma capacidade única de refletir e criticar a sociedade. As pessoas se vestiam de figuras caricatas, fazendo sátiras de políticos e celebridades, enquanto hoje, muitos preferem se fantasiar de personagens de filmes ou séries da moda. O riso como forma de protesto foi substituído por um “like” nas redes sociais, onde a crítica é feita em 280 caracteres e a reflexão, muitas vezes, fica pelo caminho.

Por fim, é essencial reconhecer que, apesar das mudanças, o Carnaval ainda tem seu valor. A festa moderna continua a reunir pessoas, a promover a cultura e a celebrar a diversidade. No entanto, talvez seja hora de resgatar um pouco daquela essência dos antigos carnavais. Que tal trazer de volta o humor, a crítica e a verdadeira união?

Quem sabe, um dia, as pessoas voltem a se misturar nas ruas, não apenas para dançar, mas para se divertir, rir e refletir sobre a vida. Afinal, no fundo, o que importa é a alegria genuína, a conexão com o próximo e, é claro, a liberdade de ser quem você realmente é — mesmo que isso signifique se vestir de abacaxi. 

Que venha o Carnaval!

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem = criação por JFeldman com Microsoft Bimg

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 30

 

Anderson Almeida Nogueira (Vazio)

Uma dor angustiante
 sufoca seu peito. Há tempos está assim, mas agora chegou ao limite. Grita internamente. Seu urro é silencioso para os que com ela convivem, mas seus tímpanos parecem arrebentar com os ecos de seus lamentos agudos. Não suporta mais, é chegada a hora de acabar de vez com tudo. há um vazio em sua alma...

Não dormiu naquela noite. Insone, planejou cada passo. Por vezes desistiu, por outras teve certeza. Coragem, covardia, sensatez, insanidade, tudo misturado na noite fria do inverno na metrópole indiferente aos que vivem ali. Amanhece, é chegada a hora...

Atravessa as ruas, os quarteirões, as calçadas a pé, em ritmo cada vez mais acelerado. Não pode vacilar, se for devagar dá tempo de pensar, dá espaço à dúvida que não quer ter mais. Há um vazio em seu coração...

Entra no prédio alto de 30 andares, adentra o elevador lotado de pessoas que se distribuirão pelos corredores empilhados entre o térreo e a cobertura. 

Tem pressa, a cada nova parada de andar em andar se agita. Suor frio nas mãos, as batidas de seu coração parecem nos ouvidos, na garganta. 15o. andar, 18o., 21o., 25o., 28o. andar. Não aguenta, desce ali mesmo e sai em disparada escadas acima, quer chegar logo ao seu destino. Há um vazio em seu olhar..

Chega, enfim, ao seu destino. A corrida intensa é, por uma fração de segundos, um pouco contida. Mas logo retorna com a velocidade que os pulmões ofegantes lhe permitem. Corre em direção ao horizonte que vê ali do alto, separados apenas pelo muro baixo. O dia começa a amanhecer. Corre na direção da alvorada.

Salta por cima do muro. Há um vazio em seu entorno...

Na fração de 5 segundos entre o salto e a escuridão fatal, observa pelas janelas o cotidiano das pessoas c:onversando, rindo, gesticulando. O moço do café, o executivo engravatado, a mulher elegante, os casais apaixonados, as crianças brincando, tudo parece tão normal na vida das outras pessoas. 

Por que não foi assim comigo, pergunta-se? Por que não consegui ser feliz assim? 

O longo trajeto chega ao fim. Por um instante, pareceu tão longo, mas chegou tão rápido. Escuridão! Não há mais vida ali. Só resta um corpo vazio...

(Este conto obteve o 4. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

Vereda da Poesia = Márcia Jaber (Juiz de Fora/MG)


 

José Feldman (Cuchulainn* e Danned Dur)

Nota: Cuchulainn, nome do herói mitológico irlandês que aparece nas histórias do Ciclo de Ulster, bem como no folclore escocês e da Ilha de Man. O resto é ficção.
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Em tempos antigos, quando as lendas eram contadas ao redor das fogueiras e os deuses caminhavam entre os homens, havia um herói chamado Cuchulainn, da terra de Ulster. Ele era conhecido por sua coragem indomável e força sobre-humana, mas o que muitos não sabiam era que sua verdadeira força vinha de uma amizade profunda com um cão chamado Danned Dur (dentes de aço), um animal leal que sempre esteve ao seu lado.

Desde pequeno, Cuchulainn e Danned Dur eram inseparáveis. O cão, de pelagem dourada e olhos brilhantes, era mais do que um simples companheiro; era um guardião e amigo. Juntos, eles exploravam as florestas densas da Ulster, enfrentando desafios e desvendando mistérios. Danned Dur sempre estava lá, seja em momentos de alegria ou de tristeza.

Cuchulainn, ao crescer, passou a treinar com os mais valentes guerreiros e, durante suas aventuras, conquistou muitos inimigos poderosos. Mas Danned Dur estava sempre ao seu lado, defendendo seu mestre em batalhas e alertando-o sobre perigos iminentes. A conexão entre os dois era tão forte que muitos acreditavam que eles compartilhavam uma alma.

Certa manhã, enquanto Cuchulainn treinava nas margens do rio, uma voz ecoou em sua mente. Era a Deusa Morrigan, que se manifestava na forma de uma corvo negro. “Cuchulainn, herói de Ulster, um grande desafio se aproxima. Você deve preparar-se, pois os inimigos de sua terra estão a caminho, e você será o único a impedi-los.”

Ele sabia que o chamado da deusa não era em vão. Com Danned Dur ao seu lado, Cuchulainn preparou-se para a batalha, enfrentando não apenas guerreiros, mas também criaturas místicas que ameaçavam a paz de Ulster. Ele lutou bravamente, sua espada cortando o ar com precisão, e Danned Dur atacando ao seu lado, feroz e destemido.

A batalha culminante ocorreu em uma vasta planície, onde os inimigos de Ulster se reuniram em grande número. Cuchulainn, com a força dos deuses correndo em suas veias, enfrentou um inimigo de proporções titânicas, um gigante chamado Ferchtne, que vinha para desferir o golpe final em sua terra.

Durante a luta, Danned Dur lutou ao lado de Cuchulainn, atacando ferozmente, mas o gigante era forte. Em um momento de desespero, quando parecia que tudo estava perdido, Cuchulainn fez um sacrifício. Ele usou uma técnica secreta ensinada a ele por Morrigan, transformando-se em uma forma ainda mais poderosa, mas a um custo: seu corpo ficaria vulnerável após a transformação.

Com um grito de guerra, Cuchulainn derrotou Ferchtne, mas a vitória teve um preço alto. Danned Dur, ferido gravemente na batalha, caiu ao lado do herói.

A dor de perder Danned Dur foi insuportável. Cuchulainn, que havia enfrentado exércitos inteiros, agora se sentia completamente derrotado. Ele segurou a cabeça do cão em seu colo, lágrimas escorrendo pelo seu rosto. “Você foi mais do que um amigo, Danned Dur. Você foi minha alma gêmea. Sem você, estou perdido.”

Com o coração partido, Cuchulainn construiu um túmulo para Danned Dur nas margens do rio onde costumavam treinar. Ele fez um voto diante da sepultura: “Nunca esquecerei sua lealdade. Eu lutarei em sua memória até meu último suspiro.” As estrelas começaram a brilhar intensamente, como se os deuses estivessem chorando junto com ele.

Nos dias que se seguiram, Cuchulainn mergulhou em uma tristeza profunda. Ele abandonou a espada e se isolou, incapaz de enfrentar o mundo sem seu fiel amigo. Foi então que a Deusa Morrigan apareceu novamente, em um sonho envolto em névoa e mistério.

“Cuchulainn,” disse ela, sua voz suave como a brisa, “a dor que você sente é real, mas não deve deixá-la consumir você. Danned Dur é um espírito livre agora, e ele sempre estará ao seu lado, mesmo que você não o veja.”

Cuchulainn se levantou, a luz da deusa penetrando em sua tristeza. “Mas como posso viver sem ele? Ele foi minha força, minha luz.”

“Você carrega o espírito dele em seu coração. Lute não apenas por Ulster, mas por Danned Dur. Ele viverá através de suas ações, em cada batalha que você travar. A honra dele deve ser preservada, e sua memória deve ser celebrada.”

A sabedoria de Morrigan ressoou em Cuchulainn. Ele entendeu que não poderia permitir que a dor o paralisasse. Com um novo propósito, ele se preparou para a próxima batalha que se aproximava. A memória de Danned Dur agora o guiava, como uma luz nas trevas.

Na batalha seguinte, Cuchulainn lutou com uma fúria renovada. Ele se movia como uma tempestade, cada movimento carregando a força de seu companheiro perdido. Ele gritou o nome de Danned Dur em cada golpe, cada ataque, e a presença do cachorro parecia estar com ele, lutando ao seu lado.

Ao final da batalha, quando a poeira assentou e os inimigos foram derrotados, Cuchulainn ergueu sua espada em homenagem a Danned Dur. “Você não está perdido, amigo. Você vive em cada vitória, em cada lembrança que guardo.”

Com a bênção de Morrigan, Cuchulainn aprendeu a equilibrar sua dor com sua coragem. Ele sabia que a vida continuaria, mas a memória de Danned Dur sempre estaria presente em seu coração. As lendas de Cuchulainn se espalharam ainda mais, agora não apenas como um herói, mas como um homem que conhecia a dor e a perda, e que encontrou força na amizade e no amor.

E assim, entre as histórias de bravura e batalhas, o nome de Danned Dur tornou-se parte da lenda, eternamente ligado ao de Cuchulainn, o grande herói de Ulster, que nunca esqueceu o amigo que o acompanhou em cada passo de sua jornada.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Varal de Trovas n. 616

 

Ana Caroline de Oliveira (As sombras do que foram memórias)

Esticou o braço para os lençóis do outro lado da cama. Frio. Assustado, abriu os olhos. Ainda não era de manhã, já não era noite; uma suave luz da aurora penetrava pela janela do quarto, criava formas abstratas no teto. Mas sua mente vagava por outros caminhos. 

Sua esposa não estava ali. O frio dos lençóis não era normal, e nem o silêncio mórbido que ele sentiu pairar pela casa. Aquelas horas, os filhos o acordariam para fazer café; eles gostavam de ver o sol nascer e depois voltavam a dormir. Chamou pelos nomes de todos, e sua voz ecoou no silêncio.

Devagar, começou a caminhar pela casa. Não chamou por mais ninguém; de repente, ficou com medo de que o som dos seus nomes os arrancasse subitamente de uma realidade longínqua. Passou pela porta do quarto das crianças; as camas pequeninas estavam arrumadas, e não havia ninguém. Continuou andando pelos corredores à meia luz do amanhecer. Passou pela cozinha deserta, onde a filha mais nova às vezes se sentava por horas, encarando o padrão dos azulejos, pensando que passava despercebida. 

Olhou pela janela da sala, aquela que dava para o jardim, o jardim do qual sua mulher cuidava metodicamente todos os dias, logo depois do café da manha; não havia nem sinal dela ao redor das plantas. Andou pela sala, já desperto e deprimido, abrindo caminho para sair pelo restante da propriedade; num dos velhos sofás vermelhos e pesados, o garoto mais velho gostava de ficar lendo com a cabeça encostada no pelo do cachorro. O cachorro dormia ali sozinho, roncando alto, sem se incomodar com sua busca lamentável.

Lá fora, o céu se coloria de azul e rosa, cada vez mais brilhante. E ali, não havia ninguém. Estremeceu com o gelo da grama úmida sob seus pés. já não sabia há quanto tempo estava acordado e por quanto tempo estava procurando; sentia que ficou horas encarando cada cômodo escuro. A luz dos primeiros raios de sol tocou seus olhos, como num clarão de lucidez, e ele se lembrou. Não havia ninguém, porque não poderia haver.

Não era raro aquele esquecimento; surgia com essas ilusões na cabeça sempre que estava muito cansado, ou quando estava muito escuro para distinguir luz e sombras. A mulher e as crianças já haviam partido há algum tempo; perguntou-se por onde estariam agora. 

Passou a mão no rosto e voltou para dentro de casa, esgueirando-se entre a tristeza. Poderia dormir mais um pouco antes de o sol subir completamente, e refazer o dia em sua memória.

(Este conto obteve o 3. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus

Vereda da Poesia = Maria Lúcia Spadarotto Neves



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José Feldman (Pafúncio no lançamento de um livro)

Era uma vez, em uma cidade onde a fofoca corria mais rápido que o vento, um jornalista chamado Pafúncio. Ele trabalhava para a renomada revista de fofocas "Fuxico & Fofocas", conhecida por suas histórias exageradas e manchetes que faziam até as pedras rirem. Pafúncio, um homem baixo e gordinho, tinha uma habilidade especial: ele conseguia transformar qualquer evento mundano em uma comédia tragicômica.

Um belo dia, a revista recebeu um convite para o lançamento do novo livro de um escritor famoso, o aclamado autor de romances, Aureliano Cabrito. O evento prometia ser o maior do ano, e Pafúncio estava determinado a ser o primeiro a descobrir todos os segredos por trás da obra. Com seu bloco de notas e caneta de tinta permanente (que estava mais permanente do que o próprio Pafúncio gostaria), ele se preparou para o grande dia.

No dia do evento, o salão estava repleto de celebridades. Havia atores, cantores e até aquele influenciador que ficou famoso por postar vídeos de gatos fazendo yoga. Pafúncio, com sua camiseta da revista e uma calça que parecia ter sido escolhida por um toureiro, se espremeu entre os convidados. Ele tinha um plano: entrevistar Aureliano e descobrir se ele realmente escrevia seus livros enquanto fazia malabarismos com laranjas, como alguns diziam.

Quando finalmente encontrou o escritor, ele estava cercado por fãs e jornalistas. Pafúncio, com sua voz de locutor de rádio, gritou: “Aureliano! Como você lida com a pressão de ser um autor tão famoso?” 

O escritor, surpreso, olhou para ele e respondeu: “Com muito café e algumas doses de solidão.”

Pafúncio, em sua mente, transformou isso em uma manchete: “Aureliano Confessa: Café e Solidão São Seus Melhores Amigos!” Mas ele não parou por aí. Com um olhar astuto, decidiu que era hora de fazer perguntas mais inusitadas. 

“E se você tivesse que escolher entre escrever um livro ou dançar tango com um gato, o que você escolheria?” Aureliano, sem saber se ria ou chorava, respondeu: “Bem, eu acho que o gato tem mais ritmo!”

Pafúncio, já rindo da sua própria piada, decidiu que precisava incluir o pato na matéria. Em um momento de pura inspiração, ele começou a imaginar como seria a capa da próxima edição da revista: “Aureliano e Seu Pato: A Revolução Literária da Dança!”

Mas a situação ficou ainda mais extravagante quando a assistente de Aureliano, uma mulher alta e elegante chamada Serena, decidiu que era hora de fazer a tradicional leitura de trechos do livro. Enquanto ela se preparava, Pafúncio avistou uma mesa com um bolo enorme, decorado com a imagem do escritor. 

Sem pensar duas vezes, ele se aproximou e, antes que alguém pudesse impedi-lo, cortou um pedaço generoso do bolo com uma colher de sopa.

Enquanto devorava o bolo, ele ouviu Serena começar a ler um trecho profundo e poético sobre o amor. Com a boca cheia de glacê, ele não pôde conter uma risada alta, que ecoou pelo salão. Todos os olhares se voltaram para ele, e Pafúncio, em sua típica falta de jeito, tentou se justificar. “Desculpem, mas essa passagem é muito doce… assim como o bolo!”

A plateia, entre risadas e olhares de desaprovação, começou a aplaudir a espontaneidade de Pafúncio. Vanessa, sem saber se ria ou se ficava brava, continuou a leitura. Mas ele, agora inspirado, começou a fazer comentários entre os trechos, criando uma espécie de stand-up literário.

“E quando Aureliano diz que ‘o amor é como um pássaro que voa para longe’, eu só consigo pensar: será que ele também dança tango com um gato?” 

A plateia, em um momento de cumplicidade, riu alto e a tensão do evento desapareceu.

No final do lançamento, ele saiu do evento não apenas com um pedaço de bolo na mão, mas com a certeza de que, em meio a tanta seriedade do mundo literário, sempre há espaço para uma boa dose de humor e, é claro, um gato dançarino.

Assim, Pafúncio voltou para a redação, onde escreveu sua matéria com entusiasmo, transformando o lançamento em um dos eventos mais cômicos da cidade. E assim, o jornalista e seu espírito travesso continuaram a fazer história nas páginas da revista, sempre prontos para a próxima fofoca que brotasse como um bolo em uma festa.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 6 *


 

Jorge Ribeiro Marques (A Aurora que não veio)

Ninguém notou quando ele chegou com a mesma roupa surrada e seu saco de aniagem inseparável que lhe servia de travesseiro, sofá e armário.

Esgueirou-se por baixo da mesma marquise, recolheu-se num canto, colocou a muleta ao longo da soleira da loja, ajeitou o que lhe sobrara da perna direita e da garrafa pet de sempre e sorveu o último gole da branquinha.

Noite de Natal. Num frenesi eufórico, que beirava à histeria, pessoas vestidas em papel de presentes circulavam como se estivessem atrasadas, Inexplicável para um mês de dezembro fazer o frio que fazia, mesmo sendo São Paulo, e ainda não eram vinte e uma horas, como acusava o relógio da praça. Vez por outra uma lufada de vento mais forte renovava as folhas e os papéis espalhados de maneira disforme pelas ruas,

Num dos andares do prédio em frente, o pisca-pisca colorido, que parecia marcar o som alto, adornava simetricamente o pinheiro imperial num canto da sala. A todo esse minueto, Chico assistia com olhos de filmadora em câmera lenta, pneumonia mal curada, cíclica, coração débil, que a mendicância itinerante o tornava a cada dia mais fraco, com uma sensação esquisita de impotência. Tinha perdido a guerra contra a cidade grande. 

Tateou os bolsos rotos de sua farda diuturna, procurando uma guimba, sem encontrar. Com o frio aumentando, esgueirou-se melhor em si mesmo.

Invejou três rapazes, um pouco mais à direita, que fumavam um cigarro até aos dedos, de forma e cheiro estranho e de maneira sutil, parcimoniosa, apartando-se depois em meio à escuridão, companheira de suas noites.

Fechou os olhos e transportou-se até São José de Mipibu, viu Maria Rosa ao seu lado, curtindo as cores matizadas da aurora às margens do Rio Itaporanga, seu cachorro Fumaça e mais ninguém. 

A tosse de sempre e uma forte fisgada nas costas cancelaram a sua viagem, fizeram-no se encolher ainda mais e ficar inerte. O silêncio tinha preenchido os seus pensamentos.

O Bar da esquina tinha acabado de fechar para os clientes e Francisco de Assis Ferreira dos Santos, 61 anos, para a vida: Aurora-14 de setembro de 1958 - Ocaso- 24 de Dezembro de 2019.

(Este conto obteve o 2. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

Vereda da Poesia = Júlia Fernandes Heimann (Jundiaí/ SP)


José Feldman (Visitas ao Médico)

 Visitar o médico é uma daquelas experiências que pode ser tanto um drama quanto uma comédia, dependendo da sua perspectiva. A sala de espera, por exemplo, é um espaço que parece estar fora do tempo e do espaço, onde a normalidade dá lugar a um espetáculo de peculiaridades humanas.

Logo ao entrar, você é recebido por um cheiro familiar de desinfetante misturado com um toque sutil de ansiedade. A primeira coisa que se vê é a recepcionista, que tem a habilidade mágica de fazer a fila de espera parecer uma maratona. Ela é a guardiã da porta do conhecimento médico e, ao mesmo tempo, a porta-voz da boa e velha burocracia. Com um olhar que poderia congelar o mais corajoso dos pacientes, ela diz a frase que já virou um clássico: “O médico já vai atender”.

E ali está você, sentado em uma cadeira que parece ter sido projetada para torturar, cercado por uma variedade de personagens que poderiam facilmente ser protagonistas de um filme. 

À sua esquerda, uma senhora idosa que, com certeza, já passou por mais consultas do que você pode imaginar. Ela está equipada com um caderno e uma caneta, anotando tudo o que o médico diz, como se estivesse escrevendo um best-seller sobre “Como Sobreviver a Consultas Médicas”. A cada espirro e tosse, ela lança olhares severos, como se estivesse julgando a saúde de todos ao redor.

À sua direita, um jovem que parece recém-saído de uma festa “rave” tenta esconder o fato de que está ali por pura pressão social. Ele está com a cara de quem acabou de descobrir que o “mal-estar” que sentiu na noite passada não era apenas uma ressaca. Enquanto isso, ele observa nervosamente os outros pacientes, como se estivesse em um episódio de “Survivor”. A cada chamada do médico, ele dá um pequeno pulo, como se temesse que seu nome fosse o próximo.

E então, a conversa na sala de espera começa. O “Hipocondríaco” é o verdadeiro protagonista. Ele olha para o seu celular e faz uma pesquisa sobre os sintomas que não tem, mas que, se você perguntar, ele descreverá com detalhes que fariam qualquer médico levantar uma sobrancelha. 

“Você já sentiu essa dor estranha aqui?” ele pergunta, apontando para a parte mais improvável do corpo. Os outros pacientes, em sua maioria, tentam ignorá-lo, mas é impossível não se deixar levar pela espiral de paranoia que ele cria.

Quando o médico finalmente o chama, você tem a impressão de que a sala de espera inteira respira aliviada, como se um resgate tivesse ocorrido. 

Ao entrar no consultório, você se depara com o “médico zen”, que parece mais um guru do que um profissional de saúde. Ele está cercado por plantas, livros de autoajuda e um difusor de óleos essenciais que exala um aroma que poderia facilmente ser confundido com um spa. 

“Como você se sente hoje?” ele pergunta, enquanto você tenta encontrar as palavras entre a serenidade da sala e a ansiedade que lhe acompanha.

Enquanto você fala sobre seus sintomas, ele escuta com um olhar que mistura interesse genuíno e uma leve confusão, como se estivesse tentando resolver um quebra-cabeça. 

Quando você menciona que a dor é “como uma picada de abelha”, ele acena, como se tivesse acabado de descobrir a resposta para a última charada do jogo. 

“Vamos fazer alguns exames”, ele diz, e você se pergunta se isso significa que ele vai te transformar em um experimento de laboratório.

Após a consulta, você volta à sala de espera, onde o “Hipocondríaco” agora está em uma fase de autodiagnóstico avançado. Ele discute com a senhora idosa, que, para sua surpresa, parece estar concordando com suas teorias mirabolantes. É como assistir a um documentário sobre fauna e flora, mas com muito mais drama. A cada espirro, ele se inclina mais perto dela, em busca de uma validação que nunca chega.

Finalmente, chega a sua vez de sair do consultório. Você percebe que a sala de espera tem sua própria linguagem. Os olhares trocados entre os pacientes são como um código secreto que apenas eles entendem. Há um entendimento tácito de que todos ali estão enfrentando um mesmo desafio. E, enquanto você se despede do “Médico Zen” e sai do consultório, não consegue deixar de pensar que, apesar do estresse, a visita ao médico é uma verdadeira comédia humana.

Ao se encaminhar para a saída do consultório, você se depara com a recepcionista mais uma vez. Ela sorri, mas, ao mesmo tempo, parece estar esperando que você diga algo extraordinário. 

“E aí, tudo certo?” pergunta, como se a resposta pudesse mudar o curso da medicina. E você, em um momento de reflexões profundas, responde: “Sim, tudo ótimo, exceto por ter que voltar aqui na próxima consulta”.

E assim, você deixa o consultório, levando consigo não apenas receitas e conselhos médicos, mas também uma coleção de histórias. 

Visitas ao médico são, no fundo, uma mistura de comédia e drama, onde cada paciente é uma peça única no grande quebra-cabeça da saúde.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

domingo, 3 de novembro de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 60

 

José Feldman (Reflexões sobre a Solidão Coletiva)

Houve um tempo em que a solidariedade existia nas pequenas ações do cotidiano. Lembro-me de histórias contadas por meus pais sobre como as comunidades se uniam durante momentos difíceis. Os vizinhos se ajudavam, as portas estavam sempre abertas, e a empatia era uma norma não escrita. As desgraças alheias eram sentidas como se fossem próprias, e a coletividade era um valor inegociável.

Hoje, no entanto, vivemos em uma era marcada pela insensibilidade. A compaixão parece ter se esvaído, dando lugar a um egoísmo crescente. As desgraças que antes nos uniam agora são frequentemente ignoradas. Vemos imagens de catástrofes naturais, guerras, e crises humanitárias deslizando nas redes sociais, como se fossem apenas mais um item na lista interminável de conteúdos a serem consumidos. O coração, antes pulsante de solidariedade, parece ter se petrificado.

A falta de ação diante do sofrimento alheio é alarmante. O que poderia ser um chamado à empatia se transforma em um mero espetáculo. As tragédias se tornam cifras em estatísticas, e as pessoas, rostos anônimos em uma multidão. O “like” nas redes sociais substitui a verdadeira ação; compartilhar uma postagem é considerado um ato de solidariedade, quando, na verdade, é apenas um gesto vazio.

Enquanto a empatia se esvai, o que vemos na televisão e nos meios de comunicação é um festival de desavenças e baixarias. Programas que promovem a discórdia, que elevam o conflito ao status de entretenimento, se tornaram comuns. A audiência ri e se diverte com as provocações, enquanto a verdadeira conexão humana se perde em meio a gritos e insultos. O respeito ao próximo foi substituído pelo espetáculo da desgraça alheia, e a cultura da crítica feroz tomou conta.

Esses programas não apenas alimentam a insensibilidade, mas também moldam comportamentos. A banalização da hostilidade se infiltra no cotidiano das pessoas, que começam a ver a desavença como norma. As discussões se tornam debates acalorados, onde a razão dá lugar à ofensa. O diálogo, antes um espaço de construção, se transforma em um campo de batalha.

E, como se não bastasse, o som alto dos carros ecoa pelas ruas como um símbolo da falta de respeito. A música, que poderia ser uma forma de expressão e celebração, se transforma em uma arma de desrespeito. O barulho ensurdecedor invade o espaço público, desconsiderando aqueles que buscam paz e tranquilidade. Os motoristas, absortos em seu próprio prazer, ignoram os olhares de reprovação e os pedidos silenciosos por um pouco de silêncio.

Essa cultura do “eu primeiro” se reflete em todas as esferas da vida. As pessoas se tornam ilhas em meio a um mar de indiferença, cada uma preocupada apenas com seu próprio bem-estar. O respeito ao próximo, que outrora era um pilar fundamental das interações sociais, se torna uma relíquia do passado.

Vejo muitos poetas, trovadores e outros literatos que escrevem sobre fraternidade, sobre humanidade, sobre solidariedade, mas são palavras vazias por quem, ao contrário delas, só pensam em si mesmas, não movem um dedo em favor da empatia. Ficam simplesmente em cima do muro. Falam de respeito, mas não respeitam os outros. Lembro que meus pais sempre diziam, se você quer mudar o mundo deve primeiro mudar a si mesmo, seus pensamentos, suas atitudes, senão serão ações vãs. Ou como se diz: “O inferno está cheio de boas intenções”.

Entretanto, mesmo em meio a essa escuridão, há pequenas chamas de esperança. Existem aqueles que ainda lutam pela solidariedade, que se mobilizam para ajudar os necessitados, que se importam com o bem-estar do outro. Grupos comunitários, ONGs, e iniciativas locais são exemplos de que a empatia ainda vive em algumas partes do mundo. Essas ações, embora muitas vezes ofuscadas pelo barulho da indiferença, são fundamentais para reacender o espírito solidário que parece ter se perdido.

A reflexão sobre a falta de solidariedade do ser humano nos tempos atuais nos convida a repensar nossas próprias atitudes. Como podemos ser agentes de mudança em um mundo que parece se desumanizar? A resposta pode estar nas pequenas ações do dia a dia: um gesto de gentileza, um ouvido atento, um momento de silêncio respeitoso.

A solidariedade não é uma característica inata; ela deve ser cultivada. Cada um de nós tem o poder de transformar o ambiente ao nosso redor, de ser a mudança que desejamos ver. Ao olharmos para o próximo com olhos de compaixão, podemos começar a restaurar a conexão que foi perdida.

Assim, enquanto caminhamos por um mundo que muitas vezes parece indiferente, é essencial lembrar que a verdadeira força reside na solidariedade. O eco do egoísmo pode ser ensurdecedor, mas a voz da empatia, quando unida, pode criar um coro poderoso. Que possamos, juntos, redescobrir o valor da compaixão e do respeito, e que nossas ações sejam um lembrete de que a humanidade ainda tem um longo caminho a percorrer, mas que o primeiro passo começa dentro de cada um de nós.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Francisco Gabriel Ribeiro (Natal/RN)


Paulo Mendes Guerreiro Filho (Aurora e a sua cognata)

A casa dela fica na extremidade da areia, com o lago Guaíba, à direita, um píer, onde estacionam as canoas e os caiaques e, na varanda, uma rede. A paisagem d'alva não esfria o interior do veículo. Ironia uma moça cega morar na Ilha da Pintada.

- Obrigada por me levar ao show, eu sei que não é bem o seu estilo.

- Adorei o show. Já vai amanhecer. Eu te levo ate a porta.

- Espera... Me fala como é a Aurora?

- A cantora ou o sol nascente?

- A cantora, mas, agora, também quero saber o que você está vendo.

- Ok. A tintura do sol recai no lago em tons de bordô e rosa sobre um leve fundo azul...

- Assim não! Fala de uma forma que eu consiga entender.

Neste instante, eu pensei em esganar "Viktor Chklovski" e rasgar sua teoria.

- Antes do sol despontar, é igual ao silêncio que antecede o início do show. Então, o espetáculo se inicia calmo e delicado como a voz da Aurora em “It happened quiet”, e o céu é marinho-vento-frio de outono. Os primeiros raios surgem como um sorriso delicado em um cálice de um Bordeaux Carménère e rosa de All soft inside.

- Sim, eu estou conseguindo ver! A voz, o sorriso dela, e as cores do frio e do vinho.

- Agora, o sol invade o céu com sutileza em tons de amarelo, laranja e vermelho, irradiando todas as formas ao som de “Forgotten love”. É como se aquecer ao leve rebolar da fogueira.

- Você está falando dos quadris dela!? Safado! – diz Luísa ironizando e rindo.

- Não, estou descrevendo o sol nascendo nesta ordem: o amarelo e morno, o laranja é quente e o vermelho queima. – eu respondo rindo.

- São 7:07h, e o sol, em ascensão, conquista a noite com seu brilho amarelo, como o azul do olhar da cantora conquista os fãs, e a canção seria: “Queendom”.

- Sei não. Achei que os olhos dela fossem azuis. – Luísa ironiza.

- Os olhos são o céu, e o olhar é o sol, seria como tomar banho de água fria sob o sol quente. Agora vamos, já é dia.

Luísa sorri, dizendo;

- Espera! Descreve para mim o corpo dela...
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(Este conto obteve o 1. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

sábado, 2 de novembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 63: Confusão

 

José Feldman (O Mistério do Barco Celta)


Na pequena vila de Caerwyn, localizada na costa acidentada da Escócia, uma antiga lenda circulava entre os moradores. Falava-se de um barco celta perdido, que, segundo as histórias, trazia consigo uma maldição. Aqueles que ousassem tocá-lo eram impelidos a ir para o mar, como se as ondas o chamassem. A lenda, até então, era considerada apenas uma história para assustar crianças, até que uma equipe de arqueólogos decidiu investigar a costa em busca de vestígios da cultura celta.

A equipe, liderada pelo Dr. Angus McGregor, um renomado arqueólogo, chegou à vila em um dia nublado de primavera. Com um grupo de estudantes e assistentes, ele começou a escavar uma área próxima a uma enseada isolada. Após dias de trabalho árduo, uma tempestade repentina fez com que o grupo se abrigasse em uma caverna próxima. Enquanto esperavam a chuva passar, um dos estudantes, Lucas, notou algo brilhando sob a água turva da enseada.

Intrigado, ele e Angus decidiram investigar. Com a água ainda agitada, mergulharam e, para sua surpresa, descobriram um barco celta, perfeitamente preservado, encalhado entre rochas. A madeira estava coberta de musgo, mas os entalhes e desenhos que adornavam a proa eram claramente visíveis.

Assim que o barco foi descoberto, a equipe imediatamente começou a estudar o local. Angus, ciente das lendas que cercavam a embarcação, hesitou em tocá-la. No entanto, a curiosidade foi mais forte, e, com cuidado, ele estendeu a mão e acariciou a madeira fria e úmida.

No instante em que sua pele tocou a superfície do barco, uma sensação estranha o envolveu — um chamado suave, quase hipnótico, que parecia vir do mar. “É só a adrenalina,” pensou Angus, tentando se convencer. Mas, ao olhar para Lucas, viu que ele também estava enfeitiçado, seus olhos fixos no horizonte, como se estivesse ouvindo uma música distante.

Na manhã seguinte, enquanto a equipe se preparava para continuar as escavações, Lucas não apareceu. A princípio, pensaram que ele poderia ter decidido dormir mais um pouco, mas conforme as horas passavam, a preocupação crescia. Angus, sentindo uma inquietação crescente, decidiu investigar.

Após perguntar aos outros membros da equipe, ele seguiu em direção à enseada. Para seu horror, encontrou Lucas de pé, na beira da água, olhando para o mar com uma expressão sonhadora. “Lucas! O que você está fazendo?” ele gritou.

Ele virou-se lentamente, como se estivesse despertando de um transe. “Eu… eu não sei. Senti que precisava vir aqui,” ele murmurou, seus olhos ainda perdidos nas ondas.

Angus o puxou para longe da beira, mas a inquietação permaneceu. A maldição da lenda parecia estar se manifestando.

Preocupado, Angus decidiu se reunir com os moradores locais para pedir conselhos. Ele se encontrou com Mairead, uma anciã da vila, conhecida por sua sabedoria. Ao ouvir a história da descoberta do barco, Mairead balançou a cabeça com seriedade.

“Aquela embarcação não é apenas um artefato. É um portal,” disse ela. “Os antigos celtas acreditavam que os espíritos dos marinheiros mortos habitavam suas embarcações. Aqueles que tocassem o barco poderiam sentir o chamado do mar, como se fossem levados por aqueles que já partiram.”

Mairead advertiu Angus sobre os perigos de continuar a exploração. “Os que foram atraídos para o mar não voltaram. Você deve respeitar a vontade dos que vieram antes de nós.”

Apesar do aviso, Angus e sua equipe decidiram continuar suas investigações. Naquela noite, enquanto os membros da equipe se reuniam em volta de uma fogueira, mais uma pessoa desapareceu: Sarah, a assistente de Angus. Na manhã seguinte, sua mochila foi encontrada na areia, mas Sarah não estava em lugar algum.

Com o coração acelerado, Angus e os outros começaram a procurar na enseada. Quando finalmente a encontraram, Sarah estava novamente na beira da água, hipnotizada pelo mar. “Sarah, volte!” Angus gritou, mas Sarah não parecia ouvir.

Com esforço, conseguiu puxar Sarah de volta para a segurança da areia. “O que aconteceu?” perguntou, ofegante.

“Eu… eu não sei. Senti que precisava ir,” Sarah respondeu, com os olhos ainda vidrados.

Com a situação se deteriorando, Angus decidiu que era hora de confrontar o barco. Naquela noite, ele se aproximou da embarcação sozinho, determinado a entender o que estava acontecendo. Quando tocou a madeira novamente, a sensação do chamado se intensificou, quase irresistível.

“Atraí-los para o mar não é o que você quer!” ele gritou, desafiando os espíritos que habitavam o barco. “Respeito sua dor, mas não posso permitir que mais vidas sejam perdidas!”

Nesse momento, o vento começou a soprar com força, e as ondas rugiam. Angus sentiu uma presença ao seu redor, como se as almas dos marinheiros o observassem. “Libere-os!” ele implorou. “Deixe-os encontrar paz!”

De repente, as visões começaram a aparecer diante dele: imagens de marinheiros antigos, navegando em tempestades, lutando contra as ondas. Angus pôde sentir a dor e a perda desses espíritos, mas também a sua tristeza por não poder partir. Ele percebeu que o barco era um símbolo de esperança e um lembrete dos que haviam se perdido no mar.

Com uma determinação renovada, fez um ritual de despedida, falando em voz alta para os espíritos. “Vocês não estão sozinhos. Não precisam mais chamar os vivos. Em vez disso, sigam em paz!”

A tempestade começou a acalmar, e um silêncio profundo caiu sobre a enseada. Angus sentiu uma onda de alívio e compreensão, como se os espíritos finalmente fossem libertados.

Na manhã seguinte, após a tempestade, a equipe encontrou Sarah e Lucas acordados na praia, sem lembrança do que havia acontecido. Relataram que haviam sonhado com o mar, mas não tinham ideia de como haviam chegado ali.

Angus contou a eles sobre a noite anterior, e juntos decidiram que era hora de deixar o barco em paz. Com o apoio dos moradores da vila, fizeram uma cerimônia de despedida, envolvendo o barco em flores e agradecendo aos espíritos.

Embora a lenda do barco celta continuasse a existir, a experiência de Angus e da equipe trouxe um novo entendimento. O barco não era apenas uma relíquia; era um lembrete da conexão entre os vivos e os mortos, e da necessidade de respeitar o que havia sido.

Ao deixar Caerwyn, Angus olhou para o mar, sentindo-se em paz. A maldição havia sido quebrada, e os espíritos agora poderiam finalmente descansar. E assim, enquanto o sol se punha no horizonte, a equipe partiu, levando consigo não apenas uma história, mas também um profundo respeito pela herança dos que vieram antes deles.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho (Juiz de Fora/MG)



Aparecido Raimundo de Souza (Saudades)


 “A saudade é um momento único que não nos deixa voltar ao tempo em que a saudade, como um todo, não ia além de uma palavra vazia, que nada dizia à saudade que hoje nos atormenta a alma.” (Tompson de Panasco, morador de rua)

(Para a “Teusa”)

TENHO SAUDADE DAS BRIGAS, dos desencontros, das bobeiras e das suas ceninhas de ciúmes. Tenho saudade dos seus abraços, dos seus olhares de meiguice e benevolência. Saudade das palavras que não dissemos um ao outro e das coisas simples e corriqueiras que deixamos de fazer. Na verdade, eu não tinha tempo para me dedicar a você... talvez, por isso, tenha saudade do tempo em que você me ligava perguntando onde eu estava e a que horas chegaria do serviço. Saudade da mesa posta todos os dias, na hora do café, do almoço e do jantar. 

Saudade do seu esmero em fazer o melhor e dar o que havia de mais saudável em você. Apesar disso... eu não tinha tempo para me dedicar a seus mimos... e agora, repare, agora tenho saudade do amor que você nutria por mim, do “morzinho” dito às amigas, quando perguntavam por seu “namorido...” Saudades iguais das suas preocupações com as minhas roupas no roupeiro... lembro perfeitamente de cada detalhe, dos desvelos, dos resguardos, bem como da sua aplicação em cada dia fazer o melhor e me agraciar com o perfeito que emanava de dentro de seu interior.  

Mas, ainda assim, apesar disso tudo, eu não tinha tempo para me dedicar a você... tudo seguia nos trilhos, guardado com a fascinação do apuro diligente e ímpar. Tudo tão limpinho e asseado... cada coisa no seu devido lugar. Lembro-me das meias, das cuecas e dos lenços dobrados e passados com um prazer que brotava de dentro de você de forma tão cristalina e pura como água de nascente. Que saudade! E eu, cego, não tinha tempo para me dedicar a você... idêntica saudade da sua casa simples, que você batia o pé e dizia “nossa casa,” onde eu recebia uma felicidade perene, e desfrutava de uma paz acolhedora e, por conta disso, me sentia como se fosse senhor de tudo, tipo um rei diante de seu castelo. 

Mas meu tempo se fazia demasiadamente escasso e você... você sempre ficava em segundo plano... saudade das suas roupas simples, dos seus vestidinhos do tempo “do ronca,” saudade seu cabelo cortado curtinho, do par de brincos que nunca saia das suas orelhas... saudade das suas preocupações com a higiene dos cômodos da casa, tudo assim numa sincronia esmerada... saudade dos seus cuidados com o papagaio, com a comida e a água do coelho. E nem assim eu parava para dar um pouco de atenção a sua atenção... meu corpo estava ao seu lado, mas a minha mente... voava por devaneios inconstantes. Tenho saudade, igualmente, da sua simplicidade... 

Não somente dela, saudade do tempo em que dormíamos abraçados, de conchinha. Saudade do seu ronco, da sua implicância com o rádio alto e o tempo demasiado que eu passava sentado na frente do computador. Que bobo fui...  tenho saudade, grande saudade, acredite... saudade do seu perfil de mulher batalhadora, trabalhadora, que não deixava faltar o pão de cada dia. Saudade das suas ausências logo cedo nas manhãs de sábado, quando você se levantava em silêncio e ia para a feira com o carrinho de compras. 

Saudade de ir com você, de mãos dadas, cortar aquelas folhas perto da quadra do “Campo do Motivo” para levar para o restaurante onde você dava um duro desgraçado todo domingo, chovesse ou fizesse sol... saudade do seu cansaço... saudade da visão da perna que fazia você mancar em decorrência de seu ex-marido ter lhe espancado com severa brutalidade. Neófito, eu procurava por alguma coisa impossível e isso me fazia não enxergar a ternura da luz pulsante que estava bem ali ao meu lado... saudade da saudade que ficou quando você me mandou embora, alegando que um “antigo alguém com quem namorara reaparecera de repente.” 

Saudade de quando me levou até o portão e eu entrei no carro e você ficou me olhando, olhos compridos, silenciosos, como se interiormente, num repente intempestivo me pedisse perdão ou silenciosamente implorasse para que eu não partisse... saudade, imagine... saudade até de quando brigava com você e você queria se aconchegar ao meu lado e eu a empurrava e virava para o lado oposto da cama. Saudade do amor que não fizemos, dos carinhos que não permutamos, das lágrimas que não enxuguei quando lhe pegava chorando pelos cantos. 

Saudade do seu sorriso, saudade do seu rosto, da sua voz, do calor do seu corpo... saudades enfim, de não poder mais voltar e lhe dar um abraço, um beijo nos olhos e esperar pelo seu “tchau,” quando virava a esquina... quando também me dirigia para o escritório. Hoje, agora, carrego minhas dores todas juntas no mesmo lado do peito despedaçado. Essas saudades se avolumaram. Pior, me perseguem como sombras fantasmagóricas. E eu então me questiono terrivelmente, me indago até a exaustão: em que parte, em que ponto, em que momento da minha estrada incerta EU REALMENTE PERDI VOCÊ??!!

É quase madrugada,
não consegui dormir,
cabeça preocupada,
vontade de fugir.
Olhando no espelho
fica estampada
a solidão em mim

Depois de tanto tempo,
vivendo lado a lado,
não posso aceitar
que está tudo acabado,
não dá pra acreditar
que o desamor chegou,
agora é o fim...

Meu Deus! Ela reclama
de falta de atenção
e diz não ter espaço
no meu coração,
e tudo o que ela faz
pra mim não tem valor.
Só penso no Senhor...

Meu Deus! Ela não sabe
que a minha intenção
é ver a nossa vida
mudar de direção,
não sabe que é por ela
que eu peço todo dia
as bênçãos do Senhor...

Meu Deus! Vem dar um jeito
nesta amargura,
e tira do meu peito
a dor que não tem cura,
faz ela entender
que a história desse amor
não pode terminar assim...

O que o Senhor uniu,
ninguém vai separar,
é ela que eu amo
e sempre vou amar.
Escute esta oração,
estende as suas mãos
e salva ela pra mim.

Fonte: Texto enviado pelo autor