sábado, 5 de julho de 2025

Newton Sampaio (Retorno à Fazenda)


Desde que partira para os estudos, não mais retornei à fazenda de meu tio.

Antigamente, quando era garoto, piscava de alegria os olhinhos gaiatos toda a vez que tio Manuel precisava vir à sede da comarca. Isso porque tinha certeza de uma coisa. Titio, casado há tempos, nunca tivera a sensação de ser chamado “papai”! Por isso mesmo gostava imensamente de crianças. Principalmente dos sobrinhos.

Não fizessem os irmãos oposição à sua vontade e voltaria ele à fazenda com toda a petizada.

Eu, de minha parte, era um choramingas de marca. Sempre que tio Manuel vinha visitar papai, levava-me consigo, na volta. E uma semana, no mínimo, tinha de passar sob o seu adular bonacheirão.

Depois que fui estudar na capital, porém, desapareceram as oportunidades. E anos havia (pobre de mim!) que não ingeria gordo leitinho, tirado na hora, nem praticava malabarismos em lombos de cavalo.

Naquelas férias vi a necessidade de um descanso em regra. Estava fraco. Sem cores. E, de uma hora para outra, escrevi uma carta a titio, comunicando o meu desejo e pedindo-lhe que mandasse um cavalo à estação, na quarta-feira seguinte, aquele branco, meu preferido antigamente, se é que não morrera ainda.

Tio Manuel, com aquela inalterável bonomia, cavoucou nos botões um argumento contraditório:

— Não. Onde já se viu tratar assim mal o Zezinho. Eu mesmo irei à estação. Mas de carroça. Ele já é quase doutor e não pode sofrer a ruindade de três quilômetros a cavalo.

E lá se foi rumo à estação final da linha.

Após algumas horas de viagem, pisei jubiloso a plataforma onde tantas vezes descera, quando menino. E vi logo o meu tio fazendeiro, de braços abertos para espalhafatoso cumprimento. Abraçamo-nos. Perguntas sobre perguntas. Depois:

— Cadê o cavalinho branco, tio Manuel?

— Tá em casa, mastigando um pouco de milho.

— Ué! Então como é que vamos embora?

O tio limitou-se a apontar a carroça, de bancos cobertos por macios pelegos.

Escondendo o desapontamento num sorriso, acomodei a mala.

— Toca pra casa, tio. Estou caído de saudades por tudo isto.

Estala uma chicotada no ar. Movimenta-se o rústico veículo.

— O café está pegando bem? E o milharal, desta vez, será que vai fazer presente de pamonhas gostosas?

— Já no jantar a Sinhana preparou umas surpresas para você.

— E as melancias, estão boas?

— Tudo, tudo, meu filho.

— Mas eu é que as quero colher.

— Como não? A fazenda é sua, Zezinho.

A carroça já deixara atrás o aglomerado de casas que cercavam a estação.

Padecendo os solavancos da carroça, e ainda assim com imenso contentamento, revia a conhecidíssima estrada.

Aqui, apesar da pujança emprestada às árvores pelo clima tropical, um guaretá exibia o tronco enfezado, de folhas parcas e mirradas. Ao lado, em irrisório contraste, a canelinha ostentava as folhagens espessas, quais archotes verdes esclarecendo o caminho, ao passo que varelas de lambe-papo, de contato aparentemente inofensivo, pareciam defender o arbusto raquítico, queimando a pele de quem dele se aproximasse.

Acolá, robusta pindaíba dispunha a ramaria em forma de urso, sem obstar, todavia, que os cipós se lhe espiralassem avidamente no tronco, como serpentes enfurecidas, dando dessa maneira a impressão fugace de empenhada luta entre dois seres hostis.

Pouco a pouco se foram minguando as variedades na vegetação, até não perceberem meus olhos senão as infindáveis retas dos cafezais.

Pontilhou-se, por fim, no meio de tudo isso a casa de tio Manuel.

Bateu-me com força o coração. Era o meu passado que revivia.

O veículo rodava agora intempestivamente no terreiro, entre o alarido dos guapecas.

Lá estava na porta, limpando as mãos no avental, a tia Sinhana.

Oh! Não mudara nada. A mesma tia Sinhana, de gestos bondosos, mas os olhos tão tristonhos...

— Então, titia? A senhora pensa que quem nasce no mato pode viver só na cidade?

Entramos na sala. As cadeiras espanadas, em linha.

E aquele baú, agora! Sempre atrás da porta... Que pertinácia!

A mesa, forrada com uma toalha muito alva, apresentava os pratos fumegantes.

— Ué, siá Chica. Você não morreu ainda?

— Pois é, nhonhô. Véia que não presta não morre.

Abracei com terna simplicidade a Chica. Ela me dedicava particular afeto, desde quando me carregava no colo, para me atalhar de manhas.

— O quê? Mas que barbaridade! Aqui não mudam nem as coisas nem as caras. Até o Zeca!

— Pronto para o servir, patrãozinho! Como cresceu, nhô Zezinho! Já aprendeu a curar gente, para ver se este preto aqui deixa de ter raiva de mulher?

Abraçava um. Apertava a mão de outro. Batia nas bochechas dos caboclinhos, mostrando não ter perdido as antigas maneiras.

— Que moço dado, este...

— Sente, menino. Seu quarto é aquele mesmo. Pode ir lavar as mãos pro jantar.

Durante a refeição multiplicaram-se as gentilezas.

— Olha este chouriço. Era o teu gosto antigamente.

— E o lombo, então. Está preparado que é uma delícia.

Sem pestanejar, eu ingeria toda aquela fartura de alimentos, a que os temperos ardidos davam um sabor especial.

A cada momento tinha de levantar-me. Os caboclos, de volta do serviço, já estavam inteirados da nova. E vinham logo me cumprimentar.

— Estou reconhecendo todas as caras. Parece até que estive aqui ainda ontem.

— Verdade?

— Mas... sinto falta de alguém. Oh! Memória...

— Deve ser a Veva, não?

— Ah! A Veva, aquela que uma vez quase esmagou a mão no monjolo e me fez passar acordado uma noite inteira, de horror?

— Justamente.

— E que fim levou a Veva?

Dos lábios de minha tia caiu apenas o vocábulo solitário, seco, rápido, como se exprimisse a coisa mais banal deste mundo:

— Morreu.

Silenciei. Meu coração estava mesmo preso àquela gente simples que me acompanhara os primeiros passos.

Depois da pausa:

— Tia Sinhana. Como é que a senhora se arranja agora sem a cabocla mais prestimosa da casa?

— Depois da morte de nhá Veva, aceitei no serviço a Nica.

— Nica? Que Nica?

— Você não se lembra. Ela era meninota naquele tempo. E pouco aparecia aqui.

Nesse momento, com as travessas de canjica nas mãos, entrava a cabocla que era o assunto da conversa.

— É essa a substituta da nhá Veva?

Envolvi-a num olhar perscrutador. Ela ficou embaraçada. O sangue lhe subiu às faces. E os olhos circunvagaram em derredor, à procura de apoio.

Tia Sinhana interrompeu o pequeno silêncio.

Percebi que a moçoila suspirava baixinho, desafogada.

— Estamos bem satisfeitos. Nenhuma queixa até agora.

Eu engolia a canjica sem atinar com o que se passava. Embevecer-me à frente de uma caboclinha? Eu, que andava com os olhos cheios de quanta mulher bonita havia em Curitiba... E ela? O enleio ingênuo da moça sertaneja a gente conhece logo. Mas quanto a Nica, ninguém me faria acreditar que a olhadela furtiva não fosse intencional.

O infalível cafezinho interrompeu meu pensamento.

— Então, meu caro tio, quer dizer que neste ano a safra lhe vai encher o pé de meia, não?

— É... É. Se as coisas continuarem a correr assim, e Nossa Senhora da Aparecida não desproteger o seu festeiro mais entusiasmado...

Para retirar os pratos Nica tinha de passar perto de mim, a todo o momento. Alongava os braços nus. Dava maneios ao corpo para não roçar em ninguém.

Ia e vinha. Mas sempre silenciosa. De olhos baixos. Ruborescida.

Fui dar umas voltas, depois, com titio. E revi, com olhos satisfeitos, tudo o que constituíra outrora o meu enlevo infantil.

De vez em quando, traiçoeiramente, a imagem da cabocla reconstituía-se em meu pensamento. Logo, porém, outra força alcançava o meu consciente e surdia, e encapelava-se, escorraçando as artimanhas da volúpia. À noite, uma cama fofa esperava-me.

Lembro-me bem que, antes de deitar, me pus a monologar: — É preciso respeitar a garota. É preciso. É preciso.

Nos dias que se seguiram, minha saúde progredia. Fugira já de mim aquela palidez antiga. A fisionomia deixara de ser encovada, abatida.

Em tudo e por tudo, integrara-me nos hábitos da fazenda.

O único momento em que Nica ficava a sós comigo era de manhã, quando ela me servia o café.

Olhava-a então à vontade. E ficava a considerar o magnetismo daquela carnação precoce, mas magnífica. Dezoito anos... que pensaria a pequena a meu respeito? Nessa idade os sentidos têm extraordinário poder de ampliação. E exageram todas as percepções, antes de as transmitir aos centros psíquicos. Quem sabe lá quanta coisa a sertaneja vivia a ruminar lá por dentro de sua cabeça saturada de preconceitos?

Mas... sem brincadeira, aquilo seria namoro, mesmo? Que tolice!...

O tempo ia passando. Por cartas, o pessoal de casa me aconselhava a prolongar a temporada, caso estivesse gostando. Era preciso refestelar o espírito de tanto estudo. E eu, mais que depressa, sorvia, beduinicamente, o retiro da fazenda.

Um dia Manuel recebeu um telegrama avisando a chegada, na mesma tarde, de uma irmã lá de Minas.

Casualmente eu não estava em casa, na ocasião. Quase sempre fazia sozinho os passeios, distraindo-me em palestras, aqui e ali, com caboclos. Era dos grandes prazeres meus. Penetrava na intimidade da alma sertaneja, compreendendo-a, auscultando-a, através das conversas tão espontâneas.

Ao voltar, surpreendi-me ao encontrar a moçoila sem companhia. E Nica me explicou. O pessoal, afobadamente, tinha ido à estação. E ela fora encarregada de tomar conta da casa e preparar o jantar.

Não havia mais tempo de alcançar o trem. Resolvi ficar. — Assim, você não ficará tão tristonha.

Fui ver do terraço os trabalhadores que voltavam, suarentos, cansados, de enxada ao ombro.

Deviam ser seis horas. E o que eu contemplava era fortemente sugestivo.

A barra do horizonte, tingindo-se de encarnado, era um contraste vivo com o alinhamento verde dos cafezais, a se perderem de vista nas requebras do monte.

O vento da tardinha, impregnado de frescor da natureza ressequida pelo sol, vinha brincar também com os cabelos da gente.

— O trem deve ter chegado com um pequeno atraso, pensei. Já era tempo do pessoal voltar.

Continuei no terraço. E comecei a notar, no fim de certo tempo, a modificação que se processava em tudo.

O vento foi ficando mais forte, mais forte, movendo com energia as copas das árvores. E erguendo o pó do terreiro. E revolteando-o em seguida em espirais ralas. Depois, já em redemoinhos mais espessos. No céu, inumeráveis nuvenzinhas escuras apareceram, avolumando-se logo. Deslocaram-se. Uniram-se. Compuseram outras maiores que em breve galgavam o firmamento, enegrecendo-o.

Sobre a gente pesava uma atmosfera de chumbo. No terreiro os camaradas corriam afoitamente, recolhendo uma coisa e outra. E antes que desse conta de tudo isso, desencadeou-se grossa carga de água, dessas que chegam sem muitos prenúncios, surpreendendo o sertão em sua costumeira pacatez.

— E agora? Como voltará o meu povo?

Fui à sala grande. Encontrei-a às escuras. Acendi os dois lampiões enfumaçados. Acotovelei-me na mesa, com um livro à frente.

Fora, o aguaceiro chapinhava as janelas, as paredes, o teto. A ramaria, vencida pelo vento que passava fortemente, assobiava em silvos tonalizados.

Desinteressei-me da leitura. O “chuá” contínuo da água tinha uma invencível monotonia.

Nica veio pôr a toalha alva.

— Creio que titio vai demorar um pouco. A chuva está muito forte, e a carroça dificilmente vencerá a lama.

Ela balbuciou um “é” tímido. E muito lentamente ia arrumando os pratos, os talheres...

Reparei: — Que cabocla tentadora. Quem pode resistir a uma coisa destas?

Rodei pelos bordos da mesa.

O hálito quente da cabocla tartamudeava, arquejante, afogueada, fez esbater em mim a noção do mundo. E por muitos minutos não ouvi o vento que soprava forte, a chuva que continuava a cair.

Tarde já, voltaram todos encharcados até os ossos.

— Barbaridade! Que verdadeira lástima. Logo hoje que o trem inventou de atrasar!

Aquela noite foi para mim de agonia. Qualquer rumor fantasticamente se ampliava.

Os conciliábulos da consciência são em verdade sinistros. Amanheci vexado. Oprimido. Com um peso no coração.

Jurava que a caboclinha não recebera jamais uma carícia de homem.

Positivamente, aquilo era uma indignidade. Que vontade de sair correndo para o sertão bruto, para uma parte do mundo onde ninguém me visse mais.

Pessoa alguma notou o meu estado de alma. Quando é preciso, a gente sabe ser comediante. E comediante finíssimo.

De noite, porém, todos os meus escrúpulos desapareceram. O homem é assim mesmo. Só abomina o abismo quando está longe. Perto dele, fundem-se quaisquer resistências. E os mais ousados chegam até a abençoá-lo. Os abismos atraem tanto...

... E a aventura foi continuando, foi continuando...

A situação tornava-se insustentável. Sussurrei a Nica o que pensava. Ela não me respondeu. Limitou-se a abandonar a boca sequiosa, como sempre.

Num domingo fui à estação. Lá estava a carta do colega, lembrando-me a amolação da matrícula. Comuniquei o fato. Titio reclamou. Por aquilo, agora? Podia ficar mais um pouco.

Passou-se um dia. E outro. E outro.

Certa tarde, tio Manuel andava de um lado a outro, furioso, apoplético.

— E os vagabundos desses empregados, que é que fazem que não limpam o mato de perto da casa? Desde não sei quanto tempo vivo a mandar, a mandar que matem duma vez esses malditos urutus para evitar que a gente seja mordido por essa praga. Preguiçosos. Maleiteiros do diabo. E agora, como é que se há de salvar a menina? Porque não se lembraram de chupar-lhe o sangue no ponto da mordedura, e apertar uma cordinha em cima e outra em baixo? Por quê? Não sabiam? Então, que adianta nascer no mato se não se aprende nem isso?

Ninguém podia compreender como a Nica se tinha descuidado tanto. Era simples evitar o envenenamento. Só mesmo se estivesse muito longe.

Resolvi deixar a casa de meu tio. Comecei a achar aquilo tudo detestável. Sem saber como, não conseguir admitir a hipótese de um simples acidente, apesar de todas as circunstâncias comprovantes do fato.

O sertão é, em verdade, muito traiçoeiro. Mas eu, também, fora tão mau.

Enfim...

…E numa resplandecente manhã de sol, depois de aconchegar tantos peitos amigos, subi ainda uma vez, a carroça de bancos forrados com pelegos macios.

Entre o alarido costumeiro dos guapecas, enérgica chicotada provocou o arranco dos animais.

E, para nunca mais retornar, passei novamente pela estrada larga, onde as árvores tinham o mesmo aspecto: — guaretás raquíticos, defendidos por varetas de lambe-papo. Canelinhas pletorando-se de folhas que verdejam nas orlas do caminho. E pindaíbas ricas, estertorando-se no serpenteio ávido dos cipós, como a expressão fugaz de dois seres hostis em empenhado conflito.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Asas da Poesia * 44 *

 


Poema de
LAIRTON TROVÃO DE ANDRADE
Pinhalão/PR

Saudade

"Dize-me, ó tu, que meu coração ama,
onde apascentas o teu rebanho?"
(Ct. 1.7)

A minh'alma está cheia de dor,
Dor perene de acerba saudade,
De saudade do mais puro amor...
Estou triste qual triste albatroz,
Não preciso escutar nada mais,
Pois ouvir eu nem posso a sua voz.

Este vento assobia lá fora...
Lentamente meu dia passou...
Vem a noite calada, agora,
Sufocar minha vida tristonha
Com o meu pensamento angustiado
- Pesadelo acordado que sonha.

Nem as cordas sonoras da lira
Inspirar melodias puderam;
Só lamento pungente se ouvira
De uma vida que vive o temor,
E, distante da face querida,
A saudade tem sulcos de dor.

Que saudade do seu rosto lindo,
Desses olhos que olharam pra mim;
Eu a vejo formosa, sorrindo,
- Primavera corando-se em flor...
Que saudade da face excitada,
Fascinando-me em taça de amor.

Quero vê-la de novo bem linda,
Com seus braços repletos de vida;
No meu lar seja sempre bem-vinda,
Casa cheia de dócil encanto;
Contagiado será seu viver,
Expulsando, co'amor, o meu pranto.
= = = = = = = = =  

Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

Inquietudes

Vejo em meu rosto as marcas esculpidas.
O espelho mostra a face insatisfeita
nessas manhãs de noites mal dormidas,
que sua ausência junto a mim se deita...

prevalecendo em vão, em nossas vidas,
há sempre um fio de esperança à espreita,
e um “nunca mais” em nossas despedidas
que o esperançoso o coração rejeita!

E neste emaranhado de quimeras,
passam-se os sonhos, vão-se as primaveras,
os dias passam, tudo passa e enfim...

num misto de regressos e tristezas,
envolto no universo de incertezas…
só este amor incerto é certo em mim!
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Fui na fonte apanhar água,
molhei a ponta do lenço;
o amor de muitos homens
da minha parte dispenso.
= = = = = = = = =  

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Da pele o inebriante apelo 
incita o chamamento dos lábios
num premente e ousado anelo
de beber da fonte o fogo.

Da pele rendidos à química reação
olhos em promessa reagente
deslumbradas mãos em tentação 
num afagar de sentidos sem remissão.

Da pele traça-se relevo mapeado
navegação ausente de pontos cardeais
conquista-se o desejo pela vontade
encanto que nega a breve saciedade.

Da pele essa audível sinfonia de afetos
corpos cegos pela iridescência da paixão
Náiade sulcando as margens do meu rio 
numa promessa de eterna inspiração.
= = = = = = = = =  

Haicai do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A noite sem sono
e, a lua cheia de luz,
sozinha no abandono!
= = = = = = = = =

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Ante a verdade pura e sem disfarce
(Maria Amélia de Carvalho e Almeida in "Ao Sabor das Marés", p. 192)

Ante a verdade pura e sem disfarce
Dos teus olhos interrogando os meus
O coração, nesse instante do adeus
Não logrou fazer mais do que entregar-se.

E vieram as lágrimas juntar-se
Nascidas dos meus olhos tão ateus
Ao enlace dos meus braços pigmeus
Onde o teu colo em dor veio aninhar-se.

O amor falou mais alto nessa hora
Em que tu desististe de ir embora
E voltaste a aquecer a nossa cama.

A lua deu lugar à luz do dia
Das trevas despontou uma alegria
E das cinzas nasceu uma outra chama.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Dança dos signos

Hoje bem cedo eu tive a curiosidade
de ler o horóscopo publicado no jornal,
e se o que está escrito ali for a verdade
o dia que começa vai ser sensacional.

Conhecerei muita gente interessante,
terei mil oportunidades de progresso,
viajarei com destino a um lugar distante
e provarei o sabor doce do sucesso.

Fico pensando se você também, feliz,
e lendo o mesmo horóscopo que eu
pede que ainda mais os astros contem.

E depois, sem conseguir nada que quis,
vai descobrir o que foi que errado deu:
o jornal que a gente leu era de ontem.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

Ipupiara

Cravada no Sertão, jardim de flores
nasceu uma cidade hospitaleira.
Seus campos coloridos, sedutores,
tornam a vida bela e corriqueira.

Berço de heróis, poetas, escritores,
produzem versos na cidade ordeira.
O clima é quente, bom e aviva as cores
da alegria que é sempre verdadeira.

Ipupiara é flor cheia de encanto,
cuja beleza inspira o bem, porquanto
as alegrias são puras e completas.

Há de brilhar no céu, mesmo à distância,
esta Terra de amor e de elegância,
pois tu és a cidade dos Poetas!
= = = = = = = = =  

Poeminha de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Serra-serra,
será dor.
Cessa a serra,
será flor.
= = = = = = = = =  

Poema de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

A janela encantada

Se a luz do dia revela
que a noite de amor é finda,
fecho, depressa, a janela
e pensas que é noite ainda!
* * * *

A casa pobre e singela,
um dia se enriqueceu
e os pais, cheios de alegria,
a chamaram de Maria
quando a menina nasceu.

Um quarto, a sala, a cozinha,
uma porta e uma janela...
Nessa casa pequenina
cresceu, em graça, a menina
que, aos poucos, tornou-se bela!

À tarde sai à janela,
sempre no horário marcado
a olhara rua!... Risonha,
a menina pobre sonha
com seu príncipe encantado!

E é na janela o namoro...
Pede, o moço apaixonado,
ao pai a mão de Maria
e, para sua alegria,
o casamento é marcado.

O tempo passou ligeiro...
Sem a cortina de renda,
a casa em ruínas, fechada,
hoje, a janela encantada
ostenta uma placa: À VENDA.
= = = = = = = = =  

Epigrama de
BOCAGE
(Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage)
(Setúbal, 1765 – 1805, Lisboa)

A uma velha muito feia

Não veio a morte buscar-te
Com o seu chamante robusto,
Porque receia ao encarar-te
Morrer a Morte de susto.
= = = = = = = = =  

Soneto de
ERIGUTEMBERG MENESES
Blumenau/SC

Paleta de sentimentos

Se a paleta de cores fosse o peito
E cada cor reflexo dos humores
Seriam os casais vistos nas cores
Dos sentimentos, cada um a seu jeito.

Somente o amor real seria aceito
E não havia ciúme ou rancores.
A vida era um universo de valores
Na arte de expor o par perfeito.

O casal de afeto fiel e franco
Com sentimentos puros era o branco,
A mistura das cores sem ter regra?

E o casal que engana, trai e mente
Teria do extrato reagente
Ao sulfato a cor que mais alegra?
= = = = = = = = =  

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/SP

Quando esta lua indiscreta, 
me traz lembranças sem fim 
eu choro o velho poeta 
que morreu dentro de mim.
= = = = = = = = =  

Poema de
JÉRSON BRITO
Porto Velho/ RO

Relicário
 
Do jardim retiraste a fragrância,
Lividez se alastrou, inclemente,
Não levaste, entretanto, a semente
Que me faz encurtar a distância.
 
Em mim mesmo encerrei tua essência,
Tua graça, teu jeito elegante,
Não me aparto sequer um instante
Desse alívio pra minha carência.
 
As delícias daquele cenário
Reuni numa doce memória…
Habitante do meu relicário
 
Apesar dos caminhos cinéreos,
Indelével no peito a história
Irradia sabores etéreos.
= = = = = = = = =  

Haicai de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/RJ

O clarão da Lua
ressalta a torre da igreja – 
sombra na pracinha.
= = = = = = = = =  

Soneto de
MILTON S. SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Escravidão

Fazes de mim o que bem quer... mas não consigo
mudar o rumo desta história complicada.
Sufoco mágoas, resisto, brigo contigo...
mas volto sempre a caminhar na mesma estrada.

Na escravidão desta paixão desenfreada,
sinto morrendo uns tantos sonhos que persigo.
minha alma, às vezes, quase explode, revoltada
por ver que faço sempre o oposto do que digo.

Mas este amor, repleto de contradições,
é força imensa que inventa as próprias razões
e faz a mente parar de raciocinar.

A minha vida mais parece um labirinto:
ando sem rumo, bato portas, choro, minto...
por mais que tente, nunca deixo de te amar.
= = = = = = = = =  

Sextilha de
HÉLIO PEDRO SOUZA
Caicó/RN

Bate forte um coração
quando um sonho é bem sonhado,
o caminho é mais florido
fica o céu mais estrelado,
e a lua aumenta o seu brilho
se o sonho é realizado.
= = = = = = = = =  

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Flutu...ânsias

Numa doce interferência do destino, 
nossos olhos... cristalinos...se encontraram
e o mundo se tornou tão  pequenino,
ante sonhos que os destinos  projetaram.

E havia tanto encanto em nosso olhar, 
tanto brilho em nosso mar de  poesia,
que nem mesmo a luz da Lua, a flutuar, 
conseguia ofuscar a fantasia.

Nosso amor, que  era tão  adolescente
e inocente em nossa linda ingenuidade,
transformou-se em lembrança... de repente.

repousando no brilho da mesma Lua, 
diluindo-nos, com  mansa  intensidade 
na  saudade que desperta... e que... flutua.
= = = = = = = = =

Trova de
ERCY MARIA MARQUES DE FARIAS 
Bauru/SP

Que bom se a gente pudesse
fazer tudo que não fez…
e a vida, a chance nos desse,
de ser criança outra vez!…
= = = = = = = = =  

Poema de
BENJÚNIOR
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)
Porto União/SC

Tarde azul

Olhando por esta janela antiga,
Nem mais sei 
O que eu sou.
Já não ouço mais
Meus blues,
Nem tenho tempo
Para ver o sol nascer.
Só restam lamentos
Nas minhas tardes azuis,
Uma tristeza profunda, 
Vontade de não mais ser...
Como um espantalho
levado pelo vento
vou seguindo a vida,
esquecido dos deuses,
ermo de amores,
carente de pensamentos,
distante de tudo,
crivado de dores...
Sou agora aquele que nunca foi.
Aquele que nunca ousou,
alguém que nunca amou...
= = = = = = = = =  

Trova de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

De esperanças carregada,
velejou por tantos portos;
hoje retorna a jangada,
trazendo meus sonhos mortos.
= = = = = = = = =  

Soneto de
BERNARDO TRANCOSO
(Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso)
Vitória/ES

Loucuras de amor (I)

Torcer por um amor insano, incerto,
É ser um sonhador, ter peito aberto
Pra suportar a dor, infernizante,
Que a insegurança traz a cada instante.

É ver a alma perdida num deserto,
Sedenta e entristecida; é estar tão perto
De ser feliz na vida e tão distante
Desta felicidade, desta amante.

Passa o tempo e o desejo permanece,
Mas o corpo envelhece. Penso, então,
Que a alegria se encontra em outro plano.

Sabendo disso, um ser novo aparece
E, pretendendo alçar seu coração,
Arrisco um novo amor incerto, insano. 
= = = = = = = = =  

Poetrix de
RENATO BENVINDO FRATA
Paranavaí/PR

Flores

Sensível, mas perfumada
chora a rosa
lágrimas de espinho.
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Poema de
POETA SILVAIS
(Manuel Joaquim Frades Carvalhal)
Évora/Portugal

Dedicado ao mensageiro
  
Mensageiro a Poesia
Está-te muito agradecida
E o Poeta dia a dia
Dá-te rimas que são vida
 
De tristeza já esquecida
Por carinho e simpatia
A pobreza enriquecida
Dá-te amor por cortesia
 
Do pai da mãe e da tia
Do primo do neto e avô
Quero que siga a “Dinastia”
Desta herança que te dou
 
O amar a quem te amou
E amanhã quem te amará
Daquilo que não estimou
Nunca nada te dará
 
Qualquer dia venho cá
E não é pra te agradar
Quem critica ajudará
Tua vida a melhorar
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Triolé* de
MACHADO DE ASSIS
(Joaquim Maria Machado de Assis)
Rio de Janeiro/RJ, 1839 – 1908

Flor da mocidade

Eu conheço a mais bela flor:
És tu, rosa da mocidade,
Nascida, aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor:
Tem do céu a serena cor
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor:
És tu, rosa da mocidade.
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* Triolé, pequeno poema de forma fixa. Originário da França (triolet), ao mesmo tempo em que o rondel e o rondó, com os quais é confundido; o triolé tem sua própria estrutura poética. Deschamps, poeta francês medieval, julgava-o igual ao rondel, e assim há quem o considere até hoje. Caiu em desuso (completo) no século XVI e foi reerguido, na metade do século XIX, pelos poetas parnasianos. Dentre os nossos que experimentaram o triolé, destaca-se um nome ilustre, Machado de Assis.

A estrutura do triolé consta do seguinte: uma oitava, ou mais, com duas rimas apenas, de modo que o primeiro verso repete no quarto, e os dois primeiros fecham a estrofe, como o sétimo e oitavo, assim: ABaAabAB (as maiúsculas representam os versos que são repetidos como estribilho).

Consta de estrofes de oito versos, em duas rimas, com a seguinte disposição: abaaabab. O 1.º, o 4.º e o 7.º versos são iguais.
(Ricardo Sérgio – Recanto das Letras)
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Wallace Leal V. Rodrigues (O boneco)


Um dia vovó comentou que os doces feitos por ela e minha mãe naquela manhã haviam desaparecido do armário. E não sabia o que tinha sido feito deles.

Embora nenhuma das duas parecesse de qualquer forma preocupada com a ocorrência, eu imediatamente disse:

- Foram roubados.

Elas me olharam surpreendidas, mas foi vovó quem estabeleceu conversação comigo.

- Você tem certeza? Ela perguntou.

- Tenho! sustentei. E foi o Pedrinho.

Pedrinho era um dos meus irmãos. Vovó insistiu:

- Você tem certeza?

- Se tenho! Foi o Carlucho quem me contou.

- Minha filha, disse ela tranquila, passando o seu braço pelo meu, venha até o meu quarto. Quero lhe mostrar uma coisa.

No quarto ela abriu a gaveta de uma cômoda e tirou, lá de dentro, um boneco que eu nunca tinha visto.

- Veja como está bem vestido!

Eu não estava entendendo. Aquilo nada tinha a ver com o caso dos doces. Ela prosseguiu:

- Vá dizendo o que mais lhe chama a atenção neste boneco.

- Tem uma bonita roupa, uma camisa linda! Respondi ao observar os punhos, o peitilho e o colarinho impecáveis.

Assim que terminei de falar, minha avó tirou o paletó do boneco. Cai na gargalhada quando vi que da impecável camisa só havia os punhos, o peitilho e o colarinho.

Mas, de súbito, compreendendo, me tornei muito séria.

E vovó, abraçando-me a sorrir, disse concluindo:

- Veja você como são as coisas. A gente só pode crer naquilo que vê. E do que se vê, muitas vezes é preciso acreditar apenas na metade. Você percebeu por que?

Já se passaram muitos anos... Mas, sempre que sou levada, por certa irreflexão tão comum nos seres humanos, a julgar fatos ou pessoas pelas aparências, vem-me à lembrança a impecável camisa daquele boneco da vovó...
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Wallace Leal Valentin Rodrigues nasceu em 1924, em Divisa/ES, foi para Araraquara, SP na década de 30. Estudou Ciências Econômicas em Ribeirão Preto. Foi ator e diretor de teatro, diretor de cinema, escritor, jornalista. Realizou seu primeiro filme em 1953: o documentário Aurora de uma Cidade. Foi diretor e ensaiador do TECA (Teatro Experimental de Comédia de Araraquara). Acompanhou e colaborou com a primeira escola de ballet da cidade: Escola de Ballet Mímica de Araraquara, desde sua fundação maquiando, e apoiando nos figurinos e cenários das apresentações por longo tempo. Coordenou, compôs, criou, orientou jovens e crianças em desfiles de modas ensinando como andar, sentar, colocação de mãos e pés, comportamento e postura de corpo e porte em passarela, um trabalho de alta qualificação, ensinamento europeu. Como escritor tem livros publicados no Brasil e no Exterior. Era poeta, compunha música e além do teatro, atuava junto ao grupo de rádio teatro. Em 1958 teve a ousadia de escrever, produzir e dirigir um filme: Santo Antonio e a vaca, rodado na região, sobre o folclore regional. Para tanto criou a Arabela Filmes. Além do indiscutível talento de Wallace para as artes culturais, merece nota seu trabalho na divulgação do Espiritismo, doutrina que ele assumiu aos 16 anos e divulgou por toda a sua vida. Se destacou como Redator-Chefe do jornal O Clarim e da Revista Internacional de Espiritismo. Na literatura espírita; foram dezenas de livros, uns de sua própria autoria, outros que ele traduziu e organizou. Em 1973,: passou a integrar o quadro de colaboradores da revista Planeta. Em 1973, lançou, na sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo, seu livro Remotos cânticos de Belém, No enredo da obra, Wallace juntou histórias e personagens e os colocou num avião que é sequestrado na véspera do Natal. A mensagem que ele passa é a de que a suave melodia do Natal faz-se sentir e abranda até mesmo situações extremamente graves, como a vivida pelos passageiros. Como autor: Remotos cânticos de Belém; Meimei; Vida e mensagem; A esquina de pedra; E, para o resto da vida; Katie King. Considerado pela crítica especializada como uma das pessoas mais cultas dos últimos anos em nosso país, aos 62 anos, Wallace teve seu estado de saúde comprometido e faleceu em 1988.

Fontes: 
Biografia = Federação Espírita do Paraná
Jornal Mundo Espírita - Abril de 2000.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Laé de Souza (Viagem do Armindalino)


Armindalino chegara em casa com a notícia de que estava tudo acertado para a viagem, no fim de semana, com os patrões para a praia. Chamou o Júnior e encheu a cabeça do garoto de conselhos e ameaças, desde corte de mesada a palmadas, se aprontasse alguma ou, então, irritasse o filho do patrão com pirraças, como era do seu feitio. Juanita saiu em defesa do moleque, avisando ao Armindalino que não era porque se tratava do filho do patrão que iria pisar no seu filho.

Aproveitou para comunicar que tinha de fazer uns gastos por conta de roupas de banho, bronzeador, protetor solar e algum vestido para sair à noite, ao que o Armindalino pediu que fosse devagar, mesmo porque os patrões eram pessoas simples e não gostavam de esnobar. 

Juanita irritou-se: “Não são? Pensa que eu não notei que as duas fulanas, no dia da festa de fim de ano, estavam em cochichos e reparando em tudo que era mulher e não tiravam os olhos de mim? Te aviso, Armindalino, que não vou que nem tonta e empregadinha, não.” 

Armindalino consentiu, mas que não exagerasse como da vez que saíram com amigos, em que ela se encheu de parafernália, numa exibição só, que deixou as coitadas das mulheres dos amigos envergonhadas diante de tantos badulaques e ostentação. Além do que, se a sua mulher estava com ouro para todo lado, o aumento pretendido por ele poderia ir por água abaixo. 

A mulher, que não era de engolir calada, retrucava, se era por isso, ele que esquecesse o aumento, porque ela não iria se apresentar para a viagem de qualquer jeito. Igual, ou melhor que as fulanas; abaixo, nem em sonho. Armindalino manifestou, levemente, a vontade de recusar o convite diante das circunstâncias, no que recebeu uma bronca da Juanita: “Nem pensar. Para depois elas ruminarem que eu estou dando uma de esnobe, recusando ou até pensarem que estou com vergonha e que me acho inferior a elas? De jeito nenhum, nós vamos nessa viagem, nem que seja toda a despesa por sua conta.” 

De nada adiantava Armindalino dizer que o motivo da viagem era somente diversão. “Fica quieto, que você não entende de society. Conheço bem esse pessoal”, dizia ela.

Ainda, ao colocar as malas no carro, Armindalino reclamava do peso e que, certamente, estava exagerando nas roupas que seriam usadas em um fim de semana e não em um mês. Melhor levar demais do que faltar ou passar constrangimento, resmungou Juanita.

Não demorou muito para Armindalino confirmar que fizera uma burrada e que aquele passeio não traria nenhum benefício ao seu pretendido aumento. A mulher não era de colaborar com os seus planos e parecia sentir prazer em mostrar-se superior e irritar as mulheres dos patrões.

Maldita hora em que resolveram jogar buraco. Juanita, nervosa por estar perdendo, não manteve a pose, quando percebeu que a mulher do patrão do marido dava uma roubadinha (coisa normal no jogo de buraco). Fez o maior escarcéu, deixando o pessoal atônito. Para ajudar, Júnior abriu um berreiro e chutou o filho do patrão que saía em defesa da mãe. O que salvou o emprego do Armindalino foram os pitos que deu na mulher, na vista de todo mundo, não dando bola para uma feminista. Embora não vá ter o pretendido aumento, por muito tempo, deu-se por feliz por ficar só nisso, porque, nestes tempos, não é hora de se perder o emprego.
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Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. 

Fontes:
Laé de Souza. Nos bastidores do cotidiano. SP: Ecoarte, 2018
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing