Antigamente, quando era garoto, piscava de alegria os olhinhos gaiatos toda a vez que tio Manuel precisava vir à sede da comarca. Isso porque tinha certeza de uma coisa. Titio, casado há tempos, nunca tivera a sensação de ser chamado “papai”! Por isso mesmo gostava imensamente de crianças. Principalmente dos sobrinhos.
Não fizessem os irmãos oposição à sua vontade e voltaria ele à fazenda com toda a petizada.
Eu, de minha parte, era um choramingas de marca. Sempre que tio Manuel vinha visitar papai, levava-me consigo, na volta. E uma semana, no mínimo, tinha de passar sob o seu adular bonacheirão.
Depois que fui estudar na capital, porém, desapareceram as oportunidades. E anos havia (pobre de mim!) que não ingeria gordo leitinho, tirado na hora, nem praticava malabarismos em lombos de cavalo.
Naquelas férias vi a necessidade de um descanso em regra. Estava fraco. Sem cores. E, de uma hora para outra, escrevi uma carta a titio, comunicando o meu desejo e pedindo-lhe que mandasse um cavalo à estação, na quarta-feira seguinte, aquele branco, meu preferido antigamente, se é que não morrera ainda.
Tio Manuel, com aquela inalterável bonomia, cavoucou nos botões um argumento contraditório:
— Não. Onde já se viu tratar assim mal o Zezinho. Eu mesmo irei à estação. Mas de carroça. Ele já é quase doutor e não pode sofrer a ruindade de três quilômetros a cavalo.
E lá se foi rumo à estação final da linha.
Após algumas horas de viagem, pisei jubiloso a plataforma onde tantas vezes descera, quando menino. E vi logo o meu tio fazendeiro, de braços abertos para espalhafatoso cumprimento. Abraçamo-nos. Perguntas sobre perguntas. Depois:
— Cadê o cavalinho branco, tio Manuel?
— Tá em casa, mastigando um pouco de milho.
— Ué! Então como é que vamos embora?
O tio limitou-se a apontar a carroça, de bancos cobertos por macios pelegos.
Escondendo o desapontamento num sorriso, acomodei a mala.
— Toca pra casa, tio. Estou caído de saudades por tudo isto.
Estala uma chicotada no ar. Movimenta-se o rústico veículo.
— O café está pegando bem? E o milharal, desta vez, será que vai fazer presente de pamonhas gostosas?
— Já no jantar a Sinhana preparou umas surpresas para você.
— E as melancias, estão boas?
— Tudo, tudo, meu filho.
— Mas eu é que as quero colher.
— Como não? A fazenda é sua, Zezinho.
A carroça já deixara atrás o aglomerado de casas que cercavam a estação.
Padecendo os solavancos da carroça, e ainda assim com imenso contentamento, revia a conhecidíssima estrada.
Aqui, apesar da pujança emprestada às árvores pelo clima tropical, um guaretá exibia o tronco enfezado, de folhas parcas e mirradas. Ao lado, em irrisório contraste, a canelinha ostentava as folhagens espessas, quais archotes verdes esclarecendo o caminho, ao passo que varelas de lambe-papo, de contato aparentemente inofensivo, pareciam defender o arbusto raquítico, queimando a pele de quem dele se aproximasse.
Acolá, robusta pindaíba dispunha a ramaria em forma de urso, sem obstar, todavia, que os cipós se lhe espiralassem avidamente no tronco, como serpentes enfurecidas, dando dessa maneira a impressão fugace de empenhada luta entre dois seres hostis.
Pouco a pouco se foram minguando as variedades na vegetação, até não perceberem meus olhos senão as infindáveis retas dos cafezais.
Pontilhou-se, por fim, no meio de tudo isso a casa de tio Manuel.
Bateu-me com força o coração. Era o meu passado que revivia.
O veículo rodava agora intempestivamente no terreiro, entre o alarido dos guapecas.
Lá estava na porta, limpando as mãos no avental, a tia Sinhana.
Oh! Não mudara nada. A mesma tia Sinhana, de gestos bondosos, mas os olhos tão tristonhos...
— Então, titia? A senhora pensa que quem nasce no mato pode viver só na cidade?
Entramos na sala. As cadeiras espanadas, em linha.
E aquele baú, agora! Sempre atrás da porta... Que pertinácia!
A mesa, forrada com uma toalha muito alva, apresentava os pratos fumegantes.
— Ué, siá Chica. Você não morreu ainda?
— Pois é, nhonhô. Véia que não presta não morre.
Abracei com terna simplicidade a Chica. Ela me dedicava particular afeto, desde quando me carregava no colo, para me atalhar de manhas.
— O quê? Mas que barbaridade! Aqui não mudam nem as coisas nem as caras. Até o Zeca!
— Pronto para o servir, patrãozinho! Como cresceu, nhô Zezinho! Já aprendeu a curar gente, para ver se este preto aqui deixa de ter raiva de mulher?
Abraçava um. Apertava a mão de outro. Batia nas bochechas dos caboclinhos, mostrando não ter perdido as antigas maneiras.
— Que moço dado, este...
— Sente, menino. Seu quarto é aquele mesmo. Pode ir lavar as mãos pro jantar.
Durante a refeição multiplicaram-se as gentilezas.
— Olha este chouriço. Era o teu gosto antigamente.
— E o lombo, então. Está preparado que é uma delícia.
Sem pestanejar, eu ingeria toda aquela fartura de alimentos, a que os temperos ardidos davam um sabor especial.
A cada momento tinha de levantar-me. Os caboclos, de volta do serviço, já estavam inteirados da nova. E vinham logo me cumprimentar.
— Estou reconhecendo todas as caras. Parece até que estive aqui ainda ontem.
— Verdade?
— Mas... sinto falta de alguém. Oh! Memória...
— Deve ser a Veva, não?
— Ah! A Veva, aquela que uma vez quase esmagou a mão no monjolo e me fez passar acordado uma noite inteira, de horror?
— Justamente.
— E que fim levou a Veva?
Dos lábios de minha tia caiu apenas o vocábulo solitário, seco, rápido, como se exprimisse a coisa mais banal deste mundo:
— Morreu.
Silenciei. Meu coração estava mesmo preso àquela gente simples que me acompanhara os primeiros passos.
Depois da pausa:
— Tia Sinhana. Como é que a senhora se arranja agora sem a cabocla mais prestimosa da casa?
— Depois da morte de nhá Veva, aceitei no serviço a Nica.
— Nica? Que Nica?
— Você não se lembra. Ela era meninota naquele tempo. E pouco aparecia aqui.
Nesse momento, com as travessas de canjica nas mãos, entrava a cabocla que era o assunto da conversa.
— É essa a substituta da nhá Veva?
Envolvi-a num olhar perscrutador. Ela ficou embaraçada. O sangue lhe subiu às faces. E os olhos circunvagaram em derredor, à procura de apoio.
Tia Sinhana interrompeu o pequeno silêncio.
Percebi que a moçoila suspirava baixinho, desafogada.
— Estamos bem satisfeitos. Nenhuma queixa até agora.
Eu engolia a canjica sem atinar com o que se passava. Embevecer-me à frente de uma caboclinha? Eu, que andava com os olhos cheios de quanta mulher bonita havia em Curitiba... E ela? O enleio ingênuo da moça sertaneja a gente conhece logo. Mas quanto a Nica, ninguém me faria acreditar que a olhadela furtiva não fosse intencional.
O infalível cafezinho interrompeu meu pensamento.
— Então, meu caro tio, quer dizer que neste ano a safra lhe vai encher o pé de meia, não?
— É... É. Se as coisas continuarem a correr assim, e Nossa Senhora da Aparecida não desproteger o seu festeiro mais entusiasmado...
Para retirar os pratos Nica tinha de passar perto de mim, a todo o momento. Alongava os braços nus. Dava maneios ao corpo para não roçar em ninguém.
Ia e vinha. Mas sempre silenciosa. De olhos baixos. Ruborescida.
Fui dar umas voltas, depois, com titio. E revi, com olhos satisfeitos, tudo o que constituíra outrora o meu enlevo infantil.
De vez em quando, traiçoeiramente, a imagem da cabocla reconstituía-se em meu pensamento. Logo, porém, outra força alcançava o meu consciente e surdia, e encapelava-se, escorraçando as artimanhas da volúpia. À noite, uma cama fofa esperava-me.
Lembro-me bem que, antes de deitar, me pus a monologar: — É preciso respeitar a garota. É preciso. É preciso.
Nos dias que se seguiram, minha saúde progredia. Fugira já de mim aquela palidez antiga. A fisionomia deixara de ser encovada, abatida.
Em tudo e por tudo, integrara-me nos hábitos da fazenda.
O único momento em que Nica ficava a sós comigo era de manhã, quando ela me servia o café.
Olhava-a então à vontade. E ficava a considerar o magnetismo daquela carnação precoce, mas magnífica. Dezoito anos... que pensaria a pequena a meu respeito? Nessa idade os sentidos têm extraordinário poder de ampliação. E exageram todas as percepções, antes de as transmitir aos centros psíquicos. Quem sabe lá quanta coisa a sertaneja vivia a ruminar lá por dentro de sua cabeça saturada de preconceitos?
Mas... sem brincadeira, aquilo seria namoro, mesmo? Que tolice!...
O tempo ia passando. Por cartas, o pessoal de casa me aconselhava a prolongar a temporada, caso estivesse gostando. Era preciso refestelar o espírito de tanto estudo. E eu, mais que depressa, sorvia, beduinicamente, o retiro da fazenda.
Um dia Manuel recebeu um telegrama avisando a chegada, na mesma tarde, de uma irmã lá de Minas.
Casualmente eu não estava em casa, na ocasião. Quase sempre fazia sozinho os passeios, distraindo-me em palestras, aqui e ali, com caboclos. Era dos grandes prazeres meus. Penetrava na intimidade da alma sertaneja, compreendendo-a, auscultando-a, através das conversas tão espontâneas.
Ao voltar, surpreendi-me ao encontrar a moçoila sem companhia. E Nica me explicou. O pessoal, afobadamente, tinha ido à estação. E ela fora encarregada de tomar conta da casa e preparar o jantar.
Não havia mais tempo de alcançar o trem. Resolvi ficar. — Assim, você não ficará tão tristonha.
Fui ver do terraço os trabalhadores que voltavam, suarentos, cansados, de enxada ao ombro.
Deviam ser seis horas. E o que eu contemplava era fortemente sugestivo.
A barra do horizonte, tingindo-se de encarnado, era um contraste vivo com o alinhamento verde dos cafezais, a se perderem de vista nas requebras do monte.
O vento da tardinha, impregnado de frescor da natureza ressequida pelo sol, vinha brincar também com os cabelos da gente.
— O trem deve ter chegado com um pequeno atraso, pensei. Já era tempo do pessoal voltar.
Continuei no terraço. E comecei a notar, no fim de certo tempo, a modificação que se processava em tudo.
O vento foi ficando mais forte, mais forte, movendo com energia as copas das árvores. E erguendo o pó do terreiro. E revolteando-o em seguida em espirais ralas. Depois, já em redemoinhos mais espessos. No céu, inumeráveis nuvenzinhas escuras apareceram, avolumando-se logo. Deslocaram-se. Uniram-se. Compuseram outras maiores que em breve galgavam o firmamento, enegrecendo-o.
Sobre a gente pesava uma atmosfera de chumbo. No terreiro os camaradas corriam afoitamente, recolhendo uma coisa e outra. E antes que desse conta de tudo isso, desencadeou-se grossa carga de água, dessas que chegam sem muitos prenúncios, surpreendendo o sertão em sua costumeira pacatez.
— E agora? Como voltará o meu povo?
Fui à sala grande. Encontrei-a às escuras. Acendi os dois lampiões enfumaçados. Acotovelei-me na mesa, com um livro à frente.
Fora, o aguaceiro chapinhava as janelas, as paredes, o teto. A ramaria, vencida pelo vento que passava fortemente, assobiava em silvos tonalizados.
Desinteressei-me da leitura. O “chuá” contínuo da água tinha uma invencível monotonia.
Nica veio pôr a toalha alva.
— Creio que titio vai demorar um pouco. A chuva está muito forte, e a carroça dificilmente vencerá a lama.
Ela balbuciou um “é” tímido. E muito lentamente ia arrumando os pratos, os talheres...
Reparei: — Que cabocla tentadora. Quem pode resistir a uma coisa destas?
Rodei pelos bordos da mesa.
O hálito quente da cabocla tartamudeava, arquejante, afogueada, fez esbater em mim a noção do mundo. E por muitos minutos não ouvi o vento que soprava forte, a chuva que continuava a cair.
Tarde já, voltaram todos encharcados até os ossos.
— Barbaridade! Que verdadeira lástima. Logo hoje que o trem inventou de atrasar!
Aquela noite foi para mim de agonia. Qualquer rumor fantasticamente se ampliava.
Os conciliábulos da consciência são em verdade sinistros. Amanheci vexado. Oprimido. Com um peso no coração.
Jurava que a caboclinha não recebera jamais uma carícia de homem.
Positivamente, aquilo era uma indignidade. Que vontade de sair correndo para o sertão bruto, para uma parte do mundo onde ninguém me visse mais.
Pessoa alguma notou o meu estado de alma. Quando é preciso, a gente sabe ser comediante. E comediante finíssimo.
De noite, porém, todos os meus escrúpulos desapareceram. O homem é assim mesmo. Só abomina o abismo quando está longe. Perto dele, fundem-se quaisquer resistências. E os mais ousados chegam até a abençoá-lo. Os abismos atraem tanto...
... E a aventura foi continuando, foi continuando...
A situação tornava-se insustentável. Sussurrei a Nica o que pensava. Ela não me respondeu. Limitou-se a abandonar a boca sequiosa, como sempre.
Num domingo fui à estação. Lá estava a carta do colega, lembrando-me a amolação da matrícula. Comuniquei o fato. Titio reclamou. Por aquilo, agora? Podia ficar mais um pouco.
Passou-se um dia. E outro. E outro.
Certa tarde, tio Manuel andava de um lado a outro, furioso, apoplético.
— E os vagabundos desses empregados, que é que fazem que não limpam o mato de perto da casa? Desde não sei quanto tempo vivo a mandar, a mandar que matem duma vez esses malditos urutus para evitar que a gente seja mordido por essa praga. Preguiçosos. Maleiteiros do diabo. E agora, como é que se há de salvar a menina? Porque não se lembraram de chupar-lhe o sangue no ponto da mordedura, e apertar uma cordinha em cima e outra em baixo? Por quê? Não sabiam? Então, que adianta nascer no mato se não se aprende nem isso?
Ninguém podia compreender como a Nica se tinha descuidado tanto. Era simples evitar o envenenamento. Só mesmo se estivesse muito longe.
Resolvi deixar a casa de meu tio. Comecei a achar aquilo tudo detestável. Sem saber como, não conseguir admitir a hipótese de um simples acidente, apesar de todas as circunstâncias comprovantes do fato.
O sertão é, em verdade, muito traiçoeiro. Mas eu, também, fora tão mau.
Enfim...
…E numa resplandecente manhã de sol, depois de aconchegar tantos peitos amigos, subi ainda uma vez, a carroça de bancos forrados com pelegos macios.
Entre o alarido costumeiro dos guapecas, enérgica chicotada provocou o arranco dos animais.
E, para nunca mais retornar, passei novamente pela estrada larga, onde as árvores tinham o mesmo aspecto: — guaretás raquíticos, defendidos por varetas de lambe-papo. Canelinhas pletorando-se de folhas que verdejam nas orlas do caminho. E pindaíbas ricas, estertorando-se no serpenteio ávido dos cipós, como a expressão fugaz de dois seres hostis em empenhado conflito.
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing
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