quinta-feira, 10 de julho de 2025

Renato Benvindo Frata (Outonal)


Camisa suada, relógio para mais de dez, palmas de mãos doloridas, eu rastelava folhas do quintal e, estando sob o imenso abacateiro a juntá-las em meio ao monte farfalhento, inadvertidamente olhei para o céu de nuvens. Eram muitas, esgarçadas, que quaravam ao sol de sábado de fim de outono.

Algo me chamou à atenção: parecia que alguém com mãos invisíveis lá em cima imitava meus gestos e as recolhia, fazendo delas também um grande monte, como as do chão. Eram tufos viandantes de algodão a compor um bloco. Bem acima de mim, a me chamar a atenção.

Ao refletir sobre o que admirava, imaginei que ventos vindos de direções diversas convergiam juntos para aquele ponto no céu e as empurravam, juntando-as. Seria coincidência essa comparação louca?

Minhas mãos doloridas e já maculadas por pequenas bolhas, pediam repouso e então, ficando de cócoras e encostado ao pé da árvore, saboreei por instantes o trabalho dos rasteleiros do céu, compenetrados naquele serviço, para notar o trabalho cuidadoso que os ventos fazem quando rasteiam nuvens sem as ferir, tão leve é a alteração de suas formas. Mas fiz mais: meu espírito parecia ter se desprendido em voo para atravessar quimeras até alcançar subindo rápido à imensidão, e ali ele se perdeu de mim. Eram ventos que vindos do norte, do nordeste, do sudeste, do sul, sudoeste, do oeste e noroeste compunham uma espetacular rosa dos ventos em que todos, de uma só vez, unidos em uníssonos assobiares, burilavam ao seu jeito as sedosas nuvens aproximando-as, acumulando-as como se juntassem ovelhas num pasto azul em um cercado celestial.

Não sei se naquele momento entrei em um breve ressonar, e mesmo tendo inconscientemente fechado os olhos, devo ter sonhado: a maravilha que vi só pode existir em sonhos. O fato é que o espírito viajante ao presenciar de perto o espetacular ajuntamento, notou que as nuvens, ao se reunirem, ganhavam formas diversas, transformavam-se em baleia, elefante, árvore, uma grande boca sorrindo, uma torre de cata-ventos e outras várias a me deixarem maravilhado, de onde concluí que os ventos quando se abraçam, assemelham-se a um encontro de uma grande família com crianças em algazarra que, ao brincarem, compõem com massinhas mil travessuras de formas abstratas, e ficam nessa festa até que uma nuvem adulta e sisuda a quem reputo a tia solteirona e brava que passa o dia a limpar assoalho, chegue para as repreender.

E desfaça a tão gostosa brincadeira.

Pois foi assim que se deu.

Inesperadamente, essas nuvens mansas sofreram ação de outros ventos, dessa vez mais fortes, bravos, nervosos. Eram os convectivos ascendentes que ao chegarem, desfizeram rapidamente aquelas figuras, ganharam massa enegrecida e volume descomunal. Incorporaram-se e se transformaram logo em carrancudas cumulus congestus, para se compactarem e se escurecerem mais em cúmulus-nimbus, com direito a barrados escuros e carrancas no céu.

Os simpáticos assobiares de segundos antes transformaram-se em pigarreares violentos que se alvoroçaram fazendo tremer o ar cuspido junto a trovões e raios que me tiraram da sonolenta abstração, instante em que uma lufada vigorosa invadiu o meu recanto e bateu com tanta força sobre o monte de folhas que juntara que as distribuiu a esmo por todo o quintal.

Claro que não gostei de ver meu sonho de velho cansado interrompido, e de ter perdido todo o trabalho feito à mercê de incômodos corporais, o suor se excedendo em bica e as mãos cravejadas de bolhas. Porém, considerando que sempre haverá quem se preste a estragar prazeres, tenho a certeza de que não faltarão momentos para que a paz de espírito num dia qualquer de outono, e sob um abacateiro do quintal, leve-nos ao enternecimento, oferecendo-nos a visão, o sentimento e a comunhão sobre quão sábia e bela é a natureza para meditarmos, motivo justo para que aprendamos a nunca a maltratá-la.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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