
Naquela fazenda, longe das cidades, nem tanto pela distância, mas pela lama ou poeira das estradas, não havia luz elétrica. Portanto, não conheciam a televisão, o videogame, o computador e todos esses outros instrumentos que, hoje em dia, mantêm as crianças longe da fantasia dos tempos de outrora.
Faziam seu próprios carrinhos, brincavam nos riachos e engoliam peixinhos vivos para aprenderem a nadar, faziam balanços nos galhos mais altos das árvores, percorriam longas distâncias atrás da borboleta mais bela, velavam os bichinhos que matavam durante suas experiências e preparavam-lhes enterros pomposos, com direito a oração e coroa de flores.
Protagonizavam histórias de príncipes e princesas, falavam com os animais, atormentavam os gansos, domavam os bezerros, montavam nos cavalos e fingiam que eles eram dragões.
Percorriam o milharal em busca da boneca mais bonita e escolhiam loiras, ruivas e morenas, que se transformavam em amigas queridas quando a mágica acontecia.
À noite, corajosos e destemidos, exploravam o escuro do terreiro entre as casas da colônia, na expectativa de um encontro com o saci-pererê ou a mula-sem-cabeça.
Entravam em casa só na hora do dormir, sob as ameaças das mães, que sempre lhe juravam a tal surra de vara de marmelo que eles ainda não tinham experimentado.
Noutras noites, mais poéticos que destemidos, buscavam os vagalumes e contavam estrelas, enquanto ouviam a sinfonia dos grilos e dos sapos do mundo do poço.
Quando chovia, ficavam sentados, concentrados, em volta da mesa da cozinha, sob a luz do lampião-de-gás, ouvindo o tio Darcy contar histórias de assombração vivenciadas por conhecidos seus daqueles e de outros tempos.
Um dia, apareceram por lá duas pás-carregadeiras, contratadas para fazerem uma represa nos fundos da fazenda.
Os dois não gostaram da invasão e não saíram de casa com medo daqueles monstros barulhentos, com armadura de aço, que, em plena luz do dia, comeram imensas quantidades de terra e deixaram um grande buraco por onde passaram.
Mas gostaram muito quando, em alguns dias, a chuva encheu o buraco, transformando-o em um grande lago.
Não tiveram dúvida:
– Vamos navegar!
Buscaram o velho caixote de preparar cimento, tocaram-no com a varinha mágica e transformaram-no em um lindo barco viking.
A menina, mais velha, ajudou 0 primo a subir no barco e o seguiu depressa, empurrando a margem com uma das pernas para que se afastassem para longe, com a força do pensamento e do remo improvisado.
Antes de alcançarem o centro do lago, tão grande para eles, a água invadiu rapidamente o barco e, nesse momento, um colono estragou a aventura das crianças, retirando-as, totalmente embarreadas, daquele mergulho até o fundo.
Naquele dia, sem entenderem as razões, experimentaram a varinha de marmelo, enquanto eram lavados com bucha e sabão de coco. Ficaram com marcas na bunda e nas pernas, mas a alma não entristeceu.
– Amanhã vamos voar!
Voaram. Algumas escoriações apenas e um corte na cabeça foi o saldo da primeira vez, mas voaram: e voavam cada dia melhor, mais alto, para mais longe.
Quando chegou a idade de irem para a escola, a família viu-se obrigada a se mudar para a cidade. Era preciso estudar os filhos para que eles tivessem uma vida melhor, pensava o pai.
Foi a cena mais triste que vi ou que vivi em toda a minha vida.
Não queriam ir e não havia espaço suficiente para os dois no caminhão da mudança, pois não conseguiam entrar levando tudo que lhes era imprescindível.
Os pais não pestanejaram. Não tiveram dó nem piedade: cortaram-lhes as longas asas.
Pelo vidro, lado a lado engaiolados, enquanto enxugavam as lágrimas, fitavam o monte de penas que embelezava o chão vermelho.
Mantiveram-se assim enquanto se distanciavam.
Mantiveram-se assim até que o vermelho do chão se misturou ao vermelho do pôr-do-sol, o branco das penas se misturou ao branco das nuvens e tudo se perdeu no horizonte para nunca mais sair da retina daqueles olhos, que um dia foram olhos de pássaros.
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Olga Agulhon, pedagoga, especialista em Literatura Brasileira e agricultora, nasceu em 1965, em Assis/ SP. Iniciou seus estudos em Maringá/PR. Em 1984 iniciou o curso de agronomia, na Universidade Estadual de Maringá, mas não o concluiu. Formou-se em Pedagogia. Em 1994 terminou o curso de Especialização em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras (UEM), fazendo a defesa da monografia com o título A fábula no livro didático. Participou de várias coletâneas e tem poemas, contos e artigos publicados em várias revistas e jornais literários. Autora de Delírios (poesias), As três estatuetas de bronze (infanto-juvenil), O tempo (poesias) e Germens da terra (contos). Foi Secretária Municipal da Mulher, em Maringá.
Fontes:
AGULHON, Olga. Germens da terra.Maringá,PR: Midiograf, 2004.
Imagem criada com Microsoft Bing
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