segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Monsenhor Orivaldo Robles (Ao filho de pais caretas)


Você não lembra, é claro. Nem teria como lembrar. Era muito pequeno. Eles o pegavam no colo. Abraçavam, apertavam, acontecia de mordê-lo. Por vezes, você acabava chorando, sufocado pelo excesso de um carinho que eles não sabiam dosar. Se conseguisse falar, você diria: “Parem com isso. Estão me machucando. Sou muito fraquinho”. Mas reclamar para quem? Os avós faziam pior. Parece que disputavam para ver quem judiava mais.

Você nunca pensou nisso, mas sua vinda foi muito esperada. Desde quando descobriram que estava a caminho, você tornou-se o centro da vida deles. Não havia assunto mais importante, preocupação maior. Tudo era para você, que ia chegar.

Você provocou grande transformação em sua mãe. Ela se tornou mais sensível, emotiva, meio dengosa. Chorava à-toa, parecia insegura, se irritava por nada. Voltou a ser, outra vez, uma adolescente. Ou quase. Seu pai sentiu-se meio perdido. De repente, passou a achar estranha a mulher com quem vivia.

Depois que você nasceu, complicou de vez. Vieram trapalhadas com sua higiene, alimentação, saúde... Em várias situações eles se perdiam. Vinha-lhes à mente perguntar: E agora, fazer o quê? Criança devia vir com manual de instruções.

Hoje você é forte, bonitão e se considera dono de um mundo que se abre aos seus pés. Capaz de tomar decisões, de resolver o que é melhor, o que vale a pena na vida. “Sei o que estou fazendo” diz, com uma segurança que talvez nem eles demonstrem. Você os olha com piedoso pouco caso, como se para outra coisa não servissem além de pegar no seu pé.  De vez em quando, não tem vontade de dizer, se é que já não disse: “Pô, velho(a), dá um tempo?”

Com vinte anos, você está quilômetros à frente deles, não? Eles nada sacam do que acontece hoje. Já tiveram a vez deles; agora é a sua. Por que tanta bronca com seu jeito, se assim fazem todos os seus amigos? Você não precisa de conselhos. Não acreditam que ninguém faz a sua cabeça? Que já é grande para decidir entre o certo e o errado? Que sabe escolher o que o fará feliz? Que sabe afastar-se do que vai prejudicá-lo?

Pois é. As desgraças do mundo, que você tanto condena, foram causadas por gente que julgava não precisar de conselhos. Achava que sabia tudo; os outros, sim, é que não passavam de um bando de tapados. “Foram adultos que construíram o mundo podre que está aí”, dirá você. Está coberto de razão. Adultos que, com a idade que você tem hoje, se comportavam como donos da verdade. Não aceitavam palpite nem admitiam mudar coisa alguma em sua vida.

Se amanhã você entrar numa roubada, daquelas que parecem não oferecer saída, sabe quem ficará do seu lado? Não vão ser os amigos que em tudo lhe dão razão, eu garanto. Nem a gata que só lhe diz aquilo que você gosta de ouvir.

Amar não é coisa de momento. Amor de verdade é para a vida inteira. Enquanto você viver, será amado pelos seus pais. Ainda que lhe custe acreditar. Amar não é concordar sempre e a propósito de tudo. É, muitas vezes, ter coragem de dizer não. Mesmo com lágrimas. Guarde esta verdade: lágrima de pai e mãe não sai dos olhos, sai do coração. Porque é com o coração que se ama. Você nem existia ainda e eles já o amavam.

Vereda da Poesia = César Torraca (Rio de Janeiro/RJ)



Renato Frata* (Sorriso de Algodão Doce)

O escritor Renato Benvindo Frata é de Paranavaí/PR
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Deem-lhe a forma que quiserem, cores que apetecerem e embalagens que imaginarem, o algodão-doce é e continuará como símbolo de alegria e terá sempre o formato do sorriso de criança ao descobrir a delícia.

Garanto que sua receita saiu da imaginação do mais requintado anjo, desses que fazem de um tudo quando estão de bem com a vida.

Eram momentos de espera quando, nas férias escolares, circos e parques de diversões aportavam na cidade. Criavam expectativa desde a montagem com homens movimentando peças e a grande lona, os extensos cordões incandescentes, até a bela iluminação da portaria a dizer a que veio.

Vivas eram dadas quando alguém aparecia com o indefectível carrinho de chapa esmaltada contornado de vidros e, de posse de uma corneta acionada a apertos de mãos, anunciava num megafone de lata o famoso doce. Havia também pipocas, balas, pirulitos, mas nenhum se igualava ao sabor indiscutível do algodão.

As buzinadas assanhavam lombrigas, enchiam de água nossas bocas, arregalavam nossos olhos movidos pela excitação que nos levava a buscar moedas nos bolsos dos pais, ou licença de mães para mexermos na caneca de trocados.

Um algodão-doce valia o dia! A semana! As férias inteiras. 

Eram instantes de agonia que encorajavam na fila reacendendo a fé, porque comer algodão-doce naquela época, só mesmo nessas ocasiões. Não havia as máquinas que hoje habitam shoppings, nem a gastura imposta pela medicina de que provoca cáries em crianças e diabetes em adultos. Ninguém ligava para isso. Médicos, dentistas, eram difíceis de encontrar e, quando se os encontravam, estavam na fila do algodão também.

Delícia era permanecer ali, uma verdadeira tourada à inquietação, até chegar nossa vez e acompanhar, encantados, a vibração do disco quente a produzir teias de fios finíssimos, que rapidamente se amontoavam e engrossavam ao redor de uma hastezinha de bambu inteirando-se em alvos e doces chumaços a adoçar nosso desejo, inquietação, harmonia e felicidade.

Nossos olhos se injetavam nas órbitas, esperando o momento da primeira bocada morna que rapidamente sumia derretida calcando na boca o sabor inigualável do açúcar queimado, para deixar fiapos incrustados ao redor da boca até o nariz que nos faziam estirar a língua para não perder um tico da gostosura... Coisas que produziam felicidade na simplicidade do algodão.

Ouso dizer que não conheço doce mais doce a se inventar, não com a doçura definitiva e inconfundível que trazia o bem-querer entre a transição da infância e puberdade.

Claro que cada um pode escolher qualquer doce que represente o sorriso.

O doce que escolho se esconde no açúcar trefilado por aquecimento e centrifugação em máquinas especiais, magicamente transformado em fios e estes em chumaços... como os que encontrávamos nas portas de circos e parques, no saudoso ontem.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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Paulo Cezar Tórtora* (Crônica de uma manhã de sol)


A janela aberta, no sétimo andar do hotel em uma cidade serrana, despeja para dentro do meu 
apartamento a exuberância da mata atlântica, a apenas alguns metros de distância. O sol matinal abraça a vegetação, celebrando a explosão de vida que grassa por entre o arvoredo.

Debruçado à janela reparo, tocaiado entre os arbustos, o menino. Silencioso, espreita sua caça. Tem nas mãos uma atiradeira, que retesa, apontando cuidadosamente para a copa das árvores mais altas. Os dedos que distendem os elásticos abrem-se, simultaneamente! Consigo ouvir a bolinha de gude partir como uma bala, "zásss!...", estraçalhando a folhagem em seu caminho até emudecer o canto de um sabiá, num baque surdo que arrebenta seu peito.

O menino corre a tempo de aparar a queda do corpo agonizante, antes mesmo que ele chegue ao chão. Assiste, impassível, ao último estertor da ave moribunda, em suas próprias mãos. Nem liga para o rubro do sangue que tinge seus dedos. Ao ver-me na janela a observá-lo, esboça um sorriso e some por entre as árvores.

Na sua inocência ignora que seu casto sorriso celebra a ignorância. Desconhece o que seja a covardia, a brutalidade gratuita e as mais elementares leis do convívio harmonioso entre homens, natureza e animais ditos irracionais. Terá pais que moldem seu caráter ainda na infância? Tornar-se-á um homem de bem? Quem poderá adivinhar os caminhos que lhe reservam os enredados fios do destino?...

Sem muita convicção, disse para mim mesmo que tudo daria certo, era preciso ser otimista. Afinal, era apenas um menino. Recolhi minhas dúvidas e apreensões. Fechei a janela. Fui para a rua. Lá fora a aurora me chamava.
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* O autor é Do Rio de Janeiro/RJ

(esta crônica obteve o 4. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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domingo, 24 de novembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 02

 

José Feldman (O Relógio das Memórias)

Em um futuro não muito distante, as pessoas começaram a perceber que o tempo não era apenas uma sequência de momentos, mas uma tapeçaria intricada de memórias. Em uma pequena cidade chamada Palatium, um inventor excêntrico chamado Victor criou um dispositivo revolucionário: o “Relógio das Memórias”. Este relógio tinha a capacidade de capturar e reproduzir memórias de forma vívida, permitindo que as pessoas revivessem momentos de suas vidas como se estivessem acontecendo novamente.

Victor, um homem de cabelos desgrenhados e olhos brilhantes, sempre acreditou que as memórias eram a essência da vida. Ele passou anos em seu laboratório, cercado por engrenagens e dispositivos, até que finalmente completou sua obra-prima. O Relógio das Memórias não apenas armazenava recordações, mas também as transformava em experiências sensoriais completas. As cores, os sons, os cheiros — tudo poderia ser revivido com um simples toque.

A cidade estava em polvorosa quando Victor apresentou seu invento ao público. 

“Imaginem, meus amigos!” ele exclamou. “Poder reviver os melhores momentos de suas vidas! Conhecer novamente aqueles que amamos, sentir a euforia da juventude, ou até mesmo corrigir erros do passado!” 

A multidão estava atenta, maravilhada com a ideia de ter suas memórias ao alcance da mão.

Entre os espectadores estava Clara, uma jovem professora de história. Clara sempre teve um amor profundo pelas memórias, especialmente as de sua infância, quando passava horas ouvindo sua avó contar histórias de tempos passados. Ao final da apresentação, Clara sentiu uma atração irresistível pelo Relógio. O desejo de reviver suas memórias mais queridas a levou até Victor.

“Posso experimentar?” perguntou Clara, sua voz trêmula de emoção.

“Claro!” respondeu Victor, ajustando os dials do relógio. “Escolha uma memória.”

Clara hesitou, mas logo decidiu: “Quero reviver o dia em que minha avó me contou sobre sua juventude.”

Assim que Clara tocou o relógio, a sala se iluminou e, em um piscar de olhos, ela se viu na cozinha de sua avó, o aroma de bolo de cenoura fresco no ar. As paredes estavam adornadas com fotos antigas, e o sol filtrava-se pelas cortinas, criando um ambiente acolhedor. Sua avó, com um sorriso caloroso, começou a falar sobre sua juventude e as aventuras que a vida lhe proporcionara.

Clara sentiu a alegria inundar seu coração. Ela riu, chorou e se lembrou do quanto amava aquelas histórias. O tempo passou, mas para Clara, tudo parecia tão real quanto antes. No entanto, quando a experiência terminou, uma tristeza profunda a envolveu. Ela percebeu que, apesar de reviver momentos felizes, não poderia alterar o que havia passado.

Com o passar do tempo, o Relógio das Memórias se tornou uma sensação na cidade. As pessoas começaram a usá-lo com frequência, cada vez mais dependentes das memórias que podiam reviver. No entanto, algo bizarro começou a acontecer. As pessoas estavam se tornando incapazes de viver no presente. Elas se isolavam, preferindo a segurança de suas memórias a enfrentar a realidade.

Clara, preocupada com o que estava vendo, decidiu confrontar Victor. 

“Victor, as pessoas estão se perdendo! Elas estão tão obcecadas por reviver suas memórias que esquecem de viver! O relógio se tornou uma prisão!”

Victor, que antes estava entusiasmado, agora parecia preocupado. 

“Eu não previ isso. A intenção era boa, mas talvez tenhamos aberto uma porta que não deveria ser aberta.”

Determinada a mudar a situação, Clara começou a pesquisar sobre o impacto das memórias e do tempo na vida humana. Ela descobriu que as memórias, embora belas, também podiam ser dolorosas. A idealização do passado impedia que as pessoas apreciassem o presente e planejassem o futuro.

Clara decidiu que precisava fazer algo radical. Junto com algumas pessoas da cidade, criou um movimento chamado “Viva o Agora”. As pessoas eram incentivadas a se desconectar do Relógio e a redescobrir a alegria de viver no presente. Era uma batalha difícil, pois o Relógio havia se tornado um símbolo de status e felicidade.

Em um evento público, Clara subiu ao palco e se dirigiu à multidão. 

“Amigos, o passado é uma parte de quem somos, mas não podemos deixá-lo nos aprisionar! Precisamos viver cada dia como se fosse um novo começo! O Relógio das Memórias pode ser uma ferramenta, mas não pode ser a nossa vida!”

Enquanto falava, Victor a observava, orgulhoso e triste ao mesmo tempo. Ele percebeu que havia criado algo que não só capturava memórias, mas também capturava as pessoas. Ele decidiu desativar o Relógio, mesmo que isso significasse perder sua invenção.

A decisão de Victor trouxe a cidade de volta ao presente. As pessoas começaram a se reconectar com suas vidas, a valorizar o que tinham agora, ao invés de viver no passado. Clara tornou-se uma líder na comunidade, ajudando as pessoas a entender o valor do presente.

O Relógio das Memórias foi desmontado e suas peças foram transformadas em arte. As pessoas começaram a criar suas próprias histórias e memórias, agora sem a ajuda de um dispositivo. Elas aprenderam a aceitar o tempo como um fluxo natural, onde cada momento, por mais simples que fosse, tinha seu valor.

Anos depois, em uma tarde ensolarada, Clara estava sentada em um parque, cercada por crianças rindo e brincando. Ela sorriu ao lembrar de sua avó e das histórias que tanto amava. Agora, Clara contava suas próprias histórias para as crianças, criando novas memórias.

E assim, a passagem do tempo tornou-se uma celebração da vida. As memórias não eram mais algo a ser revivido, mas uma parte de uma narrativa contínua. O Relógio das Memórias pode ter desaparecido, mas a essência do tempo, com todas as suas alegrias e tristezas, continuava a ser a verdadeira magia da vida.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Ronaldo Henrique Barbosa Júnior* (A um passarinho)


Mal pus os pés no chão, ouvi um barulho diferente vindo da janela da sala de estar. Eu ouvia periódicas batidas no vidro, no que me apressei em afastar as cortinas para descobrir a causa de tal barulho.

A manhã ainda guardava uma névoa da madrugada, e o sol era apenas uma fresta a dar um tom azul-grisalho para o céu, ostentando suas dimensões nas peculiaridades infinitas: cada canto era um novo sabor a inundar os olhos, alumiando as retinas recém-acordadas.

O visitante que batia no vidro tinha a beleza de uma pétala e a efemeridade de uma gota de orvalho: um canário vinha chamar a atenção nas vidraças repleto de fugacidade a ensolarar aquele pedaço de manhã.

Minha primeira reação foi de espanto; não se tratava de uma visita típica, e o sabor da primeira vez possui nuances de felicidade.

Desde então, recebo-o todos os dias por volta do mesmo horário, como se viesse a mando do sol para anunciar a vida, repleto da leveza e da altivez própria dos pássaros, sempre trazendo o aprazimento que incendeia o espírito com seus manifestos trilantes.

Tenho para mim que ele vem me visitar por uns versos: a inspiração bate asas e toca com o bico na janela de casa, voando para o fio com sua beleza fundamental quando me aproximo para lhe contemplar.

Eu, no entanto, dou-lhe esta prosa na esperança de que retorne na próxima manhã e me traga as boas-novas do dia, extraindo de mim um primeiro riso a caçoar do tempo, posto que o vento me traz um suspiro de enlevo a me tornar locupleto.

As aves são fascinantes; fico a observar os serelepes passarinhos a sobrevoar a praça; os inquietos cantores no alto das árvores; e até aqueles que, podendo voar, arriscam-se a passear no chão, em pulinhos sem rumo à procura de algo para beliscar.

Meu visitante é um desses tantos pequeninos – fragmento de natureza - a traduzir seus sentimentos em cantos, numa pureza intocável, vítima da selvageria cega, incapaz de poluir a própria alma com mazelas do mundo: ele absorve as misérias e as dissipa pelo universo, talismã que é.

Queria eu poder não ser notado para abrir a janela e observá-lo calmamente mais de perto, pois pedaços do céu não ficam por muito tempo: esvoaçam no primeiro olhar de um admirador terreno - mal sabe que o quero era liberdade!

Há quem não entenda a beleza das aves; presas em gaiolas, são bibelôs a simbolizar o cárcere, pois desconhecem os infinitos azuis e cantam pela alforria num divino lamento. Soltas, guardam latente o lirismo que traduz a alma, são versos insensatos a nos advertir sobre o valor da existência - basta ter ouvidos para suas batidas na janela.
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* O autor é de Campos dos Goytacazes/RJ

(esta crônica obteve o 3. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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Vereda da Poesia = Henriette Effenberger (Bragança Paulista/SP)



Sílvio Romero (O Sargento Verde)


Havia um homem rico que tinha uma filha muito formosa. Apareceu uma vez um moço que também era muito bonito, que quis casar com ela. Combinaram o casamento. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva, lhe apareceu e disse:

 — Minha filha, tu vais te casar com o cão. Quando for no dia do casamento, depois da festa acabada, teu marido há de querer te levar para casa dele; tu, então, deves dizer a teu pai que só queres ir no cavalo mais magro e feio de todos, e quando chegares a um lugar da estrada onde faz cruz, teu marido há de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela direita e mostrar-lhe o teu rosário para ele estourar e sumir-se para o inferno.

Passou-se o tempo. Quando foi no dia do casamento houve muita festa e divertimento, mas a moça estava sempre triste.

Quando chegou a hora da partida veio um cavalo muito bonito e muito bem arreado para a moça se montar. Ela disse ao pai que não queria aquele, e só o mais feio e magro. O pai se espantou muito e não quis concordar, mas afinal foi obrigado a fazer os gostos da filha. Partiram os noivos e quando estavam longe da casa havia no caminho uma encruzilhada, aí o cão quis botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Mas a moça disse:

 — Vá o senhor adiante que sabe do caminho de sua casa e não eu que nunca lá fui.

O cão se zangou, mas a moça tomou pela estrada da direita, mostrando-lhe o rosário. O cão estourou, e foi cair nas profundezas, e a moça seguiu a toda velocidade. 

Mais adiante ela cortou os cabelos e vestiu-se de homem, toda de verde. Chegando a um reino, foi servir na guarda do rei com o posto de sargento. Todos a chamavam de Sargento Verde. 

O rei tomou-lhe muita amizade, tanto que quase todas as tardes o convidava para ir passear com ele no jardim. A rainha ficou, em poucos dias, apaixonada pelo Sargento Verde. 

Uma tarde, depois de jantar, tendo-o o rei convidado para passear no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha, Sargento Verde, que lindos olhos, e que lindo corpo para me divertir contigo!

O Sargento respondeu:

 — Não sou falso a meu rei.

A rainha despeitada levantou-lhe uma injúria ao rei:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a subir e a descer as escadas de palácio montado no seu cavalo a toda a brida, dançando e atirando para o ar três limas, e todas três a caírem num copo.

O rei ficou muito admirado e mandou chamar o Sargento Verde, e contou-lhe o caso. 

O Sargento respondeu:
 
 — Saberá rei meu senhor que eu não disse tal; mas como a rainha minha senhora disse, eu vou fazer.

Saiu muito triste, e foi ter com o seu cavalo e lhe contou tudo. O cavalo disse que ele não se importasse, que no dia marcado fosse sem medo. 

No dia marcado, o Sargento Verde apresentou-se e andou pelas escadas a cavalo, correndo para cima e para baixo, dançando e atirando para o ar três limas e aparando todas três num copo. Houve muitos vivas, e a rainha ficou desesperada. 

Passaram-se vários dias, indo o rei passear de novo com o Sargento Verde no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha que lindos olhos e que lindo corpo para divertir contigo!

— Não sou falso a meu rei — foi o que ele disse.

A rainha, despeitada ainda mais, levantou-lhe outro acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que Sargento Verde disse que era capaz de plantar na hora do almoço uma bananeira no chão do palácio, e, quando fosse na hora do jantar, estar ela deitando cachos com bananas maduras.

O rei mandou chamá-lo e perguntou-lhe se ele se atrevia a tanto, e ele deu igual resposta à primeira e saiu vexado e foi ter com o seu cavalo, que o animou muito. 

No dia seguinte, na hora do almoço do rei, o Sargento Verde levou um broto de bananeira, que plantou e na hora do jantar estava caindo de carregado de bananas madurinhas. 

Houve muitos vivas e muita saúde, e a rainha ficou ainda mais desesperada. 

Passados mais alguns dias, houve novo passeio do rei e do sargento no jardim, e novo oferecimento da rainha, e igual resposta do moço. A rainha armou-lhe novo acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se animava a andar montado no seu cavalo no largo do palácio, por cima de duas fileiras de ovos sem quebrar um só.

Segue-se outra cena igual às precedentes. 

No dia seguinte o Sargento Verde caminhou diante de muita gente, por cima das fileiras de ovos sem quebrar nenhum. Houve muita festa. A rainha ainda mais apaixonada ficou. 

Passados alguns dias, ela armou-lhe nova falsidade, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a ir buscar no fundo do mar a sua irmã, a princesa encantada.

Chamado pelo rei, o Sargento Verde ficou triste, mas não negou, e foi falar com o seu cavalo que lhe disse:

 — Não tema nada, muna-se minha senhora de um garrafão de azeite doce, de um punhado de sal e de uma carta de alfinetes, monte em mim, chegue na praia, e com a sua espada corte as ondas em cruz, que as águas se hão de abrir; entre, bote a moça na garupa, e largue para trás a toda a pressa e bote sentido nas três palavras que a moça disser no caminho. Tenha cuidado com o bicho feroz que guarda a princesa, porque ele há de persegui-la atrás, largue-lhe o sal e a carta de alfinetes.

Chegado o dia, o Sargento Verde preparou-se e se pôs a caminho montado no seu cavalo, fez tudo como lhe disse o cavalo, servindo-se da espada para abrir, e do azeite para clarear o mar. Tirou a moça e largou-se para trás a toda a brida. Ao sair do mar a moça disse "Já!" — e o Sargento tomou nota. Estando um pouco adiante olhou para trás e avistou o bicho que vinha danado correndo, largou o sal e logo gerou-se no mundo um nevoeiro tamanho que o bicho não pôde romper. Continuou; adiante a moça encantada disse: "Bela!"


E ele tomou nota. Olhando para trás, lá vinha o bicho outra vez; largou a carta de alfinetes e gerou-se uma mata serrada de espinhos e a fera não pôde passar. Já perto do palácio a moça disse:

 — Tudo! — ele de novo tomou nota, e chegaram ao fim da viagem, havendo muita alegria e muitas festas, e a rainha ainda mais perdida ficou pelo Sargento Verde.

No entanto a princesa encantada não falava, estava muda. 

Em pouco tempo a rainha levantou um quinto acinte ao Sargento Verde, e foi dizer ao rei que ele se atrevia, segundo dissera, a dar fala à muda. O Sargento Verde foi, como sempre, ter com o seu cavalo, que lhe disse:

 — Não tenha medo, na hora do almoço dê com uma corda na moça, até ela dizer qual foi a primeira palavra que disse ao sair do mar, e o que ela quer dizer. No jantar faça o mesmo, e indague pela segunda e na ceia o mesmo e indague pela terceira, e a princesa ficará falando.

Assim fez ele. No almoço do dia seguinte meteu a corda na princesa com as palavras:

 — Fale, moça! Qual a palavra que disse ao sair do mar?

A moça calada, e ele a dar-lhe, até que ela disse "Já!"

— O que quer dizer?

A muito custo ela disse:

 — Já quer dizer “já estou livre de tantos trabalhos.”

No jantar houve o mesmo, e a princesa disse:

 — Bela! quer dizer “são duas donzelas, ela e o Sargento Verde que se chama Lucinda.”

Na ceia o mesmo, e ela disse a última palavra, que quer dizer:

 — Tudo! Se Lucinda fosse homem, há muito el-rei, meu irmão, seria logrado.

Houve muito espanto de tudo aquilo. 

O Sargento Verde voltou aos trajes de moça, a princesa ainda ficou no palácio e falando, e o cavalo do Sargento desencantou-se num lindo moço. 

Este se casou com a princesa desencantada, o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu amarrada em dois burros bravos, por ordem de seu marido.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado em 1883.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 23 de novembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 02

 

José Feldman (A Última Noite de Natal)

Era uma véspera de Natal na cidade. As luzes coloridas piscavam nas janelas, e as vitrines das lojas estavam adornadas com enfeites brilhantes e delicadas árvores de Natal, mas para João, um homem idoso de cabelos brancos e mãos enrugadas, tudo isso parecia distante, quase irrelevante. Ele caminhava lentamente pelas ruas, seu coração pesado com a solidão que o acompanhava como uma sombra.

As ruas estavam repletas de famílias, risadas e abraços calorosos, mas João se sentia como um espectador em um mundo que não o incluía. Ele parou em frente a uma vitrine que exibia uma bela mesa posta, com pratos finamente decorados e presentes embrulhados com cuidado. A cena o fez lembrar de tempos passados, quando sua casa estava cheia de vida e alegria, repleta de vozes familiares e risadas. Agora, tudo o que restava eram memórias.

Continuou seu passeio, observando as luzes refletindo na água acumulada em poças. O cheiro de pinheiro e canela pairava no ar, misturado ao aroma de castanhas assadas e chocolate quente. Cada passo que dava parecia ecoar em seu coração, um lembrete doloroso de sua solidão. Ele desejou que, ao menos, alguém o reconhecesse, que alguém o olhasse nos olhos e dissesse que ainda se importava.

Após algumas horas vagando pelas ruas, ele decidiu voltar para casa. A caminho, as paredes de sua pequena casa pareciam ainda mais frias. Assim que abriu a porta, uma onda de calor e amor o atingiu. Sua fiel companheira, Mila, uma cachorrinha de velhos cabelos grisalhos, com seus 17 anos de idade, estava à espera. Os olhos dela brilhavam com alegria ao vê-lo, e ela foi em direção a seus pés, abanando o rabo com entusiasmo. Para João, Mila era a única que sempre esteve ao seu lado, que nunca o abandonou.

Sentou-se no sofá, e Mila se acomodou sobre suas pernas, como fazia sempre. O calor do corpo dela confortava o coração de João, que, mesmo em meio à solidão, encontrava consolo na presença da sua amiga. Ele acariciou sua cabeça, sentindo a suavidade de seu pelo. Mas, à medida que o tempo passava, uma inquietação começou a crescer dentro dele. Algo não parecia certo.

Ele olhou para Mila e, de repente, percebeu que seu pequeno peito não subia e descia. O coração de João afundou. Ele a chamou, mas não houve resposta. Com mãos trêmulas, ele a pegou e a colocou em seu colo, mas a sua fiel companheira não reagiu. O desespero tomou conta dele ao perceber que Mila havia partido.

As lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado enquanto ele a segurava, a dor da perda se misturando à solidão que já o consumia. Ele havia prometido que nunca a abandonaria, que sempre estariam juntos. Agora, ele se sentia perdido, sem saber como seguir em frente.

Com o coração pesado, João, segurando Mila em seus braços, em meio ao luto, começou a rezar. Com a voz embargada, pediu a Deus que o levasse também, que o levasse para estar com sua fiel amiga, onde quer que ela estivesse. Ele não queria viver em um mundo sem ela, sua única companheira que sempre o amou incondicionalmente.

“Meu Deus,” ele murmurou, “leve-me para onde ela está. Eu prometi que nunca a deixaria sozinha. Se for possível, que eu possa encontrá-la novamente.”

As palavras saíam de seu coração, um apelo de um homem que já não tinha mais a quem recorrer. O som da cidade lá fora se tornava distante, enquanto sua alma se unia em um último desejo. Ao sentir a ausência de Mila, ele sabia que o amor verdadeiro não se extingue com a morte.

Então, como se Deus tivesse ouvido sua prece, João sentiu uma paz inexplicável invadir seu ser. Seu coração, que tantas vezes havia carregado a tristeza da solidão, começou a desacelerar. Ele olhou para Mila, agora tão serena em seus braços, e um sorriso triste surgiu em seu rosto. Em um último suspiro, ele se deixou levar, o peso da vida desaparecendo enquanto se reunia com sua querida companheira de tantos anos.

E assim, naquela noite de Natal, João e Mila partiram juntos, lado a lado, em um último abraço eterno. Na quietude daquele momento, eles encontraram o que tanto buscavam: a certeza de que, onde quer que estivessem, nunca mais estariam sozinhos.
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MORAL:
O sofrimento das pessoas idosas, como João, que se sentem abandonadas por parentes e amigos, é uma realidade dolorosa e muito frequente e muitas vezes invisível na sociedade. À medida que envelhecemos, as relações podem mudar, e muitos idosos enfrentam a solidão em um momento em que mais precisam de apoio e companhia.

A falta de tempo se torna uma desculpa comum, mas, para o idoso, essa ausência pode se traduzir em solidão profunda e tristeza. A sensação de que não são mais úteis é dolorosa e pode levar a um ciclo de desânimo e depressão. Videochamadas e mensagens podem ajudar, mas nada se compara ao calor de uma visita pessoal. Para muitos idosos, a falta de interação face a face amplifica a sensação de abandono, fazendo-os sentir que seus entes queridos estão longe não apenas fisicamente, mas também emocionalmente.

A tristeza da perda de um companheiro fiel, como no caso de João, pode ser devastadora, lembrando-os da fragilidade de suas relações e da inevitabilidade da morte. A história de João e Mila é um reflexo da realidade de muitos idosos que enfrentam o abandono e a solidão. É um chamado à empatia e à ação, lembrando-nos da importância de cultivar relações significativas e de cuidar daqueles que nos deram tanto ao longo de suas vidas. Cada gesto de amor e atenção pode fazer uma diferença significativa na vida de um idoso, ajudando a transformar a solidão em conexão e esperança.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Bianca Cidreira Cammarota (Cinza)

Amanheci, esperando o sol brilhar em meu rosto. Mas não. Do cinza-chumbo nas nuvens carregadas, meu semblante mais uma vez se entristeceu. Sim... desde aquele Fatídico dia, quando as sombras espreitavam os corações, o sol não mais aqueceu mentes e almas. Ele se recolheu diante do horror que se normatizava e se normalizava em seus filhos.

O cinza-claro indicava as horas matinais e vesperais, dia interminável com muitos amanheceres monocráticos. Sem calor vivificador, apenas o mormaço apodrecendo as últimas esperanças dos que ansiavam pelo sol, enquanto fervilhava a insana maldade dos sonhos fanáticos, concretizados em filosofias macabras e ações infernais.

O cinza das cinzas de vidas escurecia no firmamento, descendo tom a tom, paulatinamente, tão imperceptível que ninguém mais discernia a partida do resto da claridade. As olheiras obscuras, escuras como a noite. O sorriso branco, afiado como presas. As mãos feitas para doar tomando tudo e a todos em um punho. O discurso odioso outrora mudo bradava agora pelos ventos da ignorância. O eu egoísta se incorporava ao nós narcisista e virulento, rugindo em sua individualidade coletiva e corporativa. Monumentos de ferro pendurados em pescoços, tingidos do sangue dos que se foram.

As horas correm com a fuligem escurecida, agora. A negridão da noite anunciada para toda uma vida, enfim, cobre os dias, sob os aplausos fanatizados dos ignorantes, Da minha janela, estranhamente as estrelas piscam para mim, saudações frias, luzes brancas, lembranças fantasmagóricas de sóis ardentes de outros tempos. Elas cintilam. Elas pulsam. Elas gritam.

Então, num rompante súbito, a lua cheia rasga o oceano noturno, explosão dourada inconcebível, uma aurora esplendorosa, gelada, mas ardente em sua luminosidade. Tinge o manto estelar em rajadas vermelhas, violetas, laranjas e douradas flamejantes.

Meu coração bate novamente em uníssono com aqueles sóis distantes, com o nosso sol vestido em trajes limares. Ele existe... Sempre esteve lá, mesmo encoberto pela noite dos monstros e pelas cinzas dos covardes.

Não espero mais o amanhecer no batente da janela. A aurora nasce em meus olhos.

A aurora sou eu.
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A autora é de Aracaju/SE

(esta crônica obteve o 2. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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A. A. de Assis (A Massa da discórdia)


A. A. de Assis (Antonio Augusto de Assis) é de Maringá/PR
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O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis

Na hora do recreio havia sobre a mesa um prato de pastéis. Seis professores na sala, sete pastéis. Cada boca serviu-se do seu bocado, a refeição ideal para o horário. O copo de chá gelado completava a merenda. Mas o pastel estava provocativamente delicioso, deixando no gogó dos comilões aquele irresistível gostinho de quero mais.

Sobrara no prato um pastel, o sétimo, sobre o qual pousavam gulosos os olhos dos seis candidatos a saboreá-lo. A boa educação, contudo, não permitia que nenhum dos presentes se apossasse do cujo. Melhor se tivesse vindo a conta certa, assim aquela sobra não perturbaria o recreio. O pessoal conversava para distrair, entretanto a tentação era demais. Seis olhares espetando o pastel, de longe. Ah, esses bons modos…

Poderia alguém ter sugerido um sorteio. No papelzinho, no palitinho, no par ou ímpar. Qualquer coisa, desde que se definisse a quem caberia o apetitoso conjunto de carne e massa. Ninguém tinha coragem de fazer a sugestão, com medo de ser chamado de fominha.

E o solitaríssimo pastel ali se oferecendo, cheiroso, fofucho. Poderiam reparti-lo em seis pedaços. Parecia, porém, que todos achavam tal solução deselegante. Além disso, a quem caberia a azeitona? Pois é: tinha uma azeitona no enredo, para atrapalhar. Dividir uma azeitona em seis pedaços seria operação deveras complicada. Falaram de futebol, de política, de tudo. Os olhares continuavam fixos no prato. Cada parceiro na esperança de que os outros cinco saíssem da sala. Ficando sozinho, o premiado comeria o último pastel sem constrangimento algum. Mas quem disse que sairia alguém dali? Havia unanimidade na gula.

Chegaram a desejar que entrasse na sala um sétimo professor, a fim de engolir a massa da discórdia e resolver de vez o impasse. O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis. Nenhum deles ao menos se atrevia a confessar o que estava pensando. Percebia-se apenas pelo jeitão meio vesgo. Ou era isso que uns acreditavam estar percebendo nos demais.

Tocou a sino, acabou o recreio. Última esperança de que voltasse todo mundo para o trabalho deixando apenas um na sala do lanche. Ninguém quis ser o primeiro a sair. Saíram juntos, os seis.

Minutos depois a moça da cozinha veio recolher a garrafa de chá, os copos e o prato. Pensou lá com seus temperos: “Uai, acho que o pastel não agradou… até deixaram sobra…” E sem mais indagações comeu ali mesmo o desprezado, para desocupar o prato. Alimento aliás muito providencial, visto que ela havia acordado de madrugada e o café da manhã já estava mesmo pedindo reforço.
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 9 *

 

Sammis Reachers (Temos fome, fome de Esperança)

Uma pintura do inglês George Frederic Watts, atualmente exibida na famosa Tate Galery de Londres, apresenta uma significativa alegoria: uma mulher com os olhos vendados, sentada sobre o globo terrestre, tendo em suas mãos um alaúde. Todas as cordas do instrumento musical estão arrebentadas, menos uma. A mulher aparenta estar atenta à música tirada desta única corda – essa corda é a Esperança.

Vivemos tempos sombrios. A desesperança, seja ela em utopias materialistas ou religiosas campeia, alimentada pelas brasas do ódio que insiste em bradar de sarjetas a tronos, passando por (quase) todas as tribunas. O diagnóstico é triste e a pílula, difícil de engolir: nossa sociedade está doente. Doente da alma, ferida em seu humanismo no que ele tem de mais nobre e fraternal; doente de suas fés religiosas, com o uso distorcido de suas mensagens de paz para fins interesseiros e intolerantes. 

O que vemos por aí é maniqueísmo que se chama: a crença de que o bem puro e o mal puro se digladiam. Mas quem é o mal? O mal é o próximo, o outro, nunca eu. Fácil, não? Mas somos humanos, e pelo entendimento bíblico, seres transidos de fios de mal e bem, acertos e erros – sim, a Bíblia e a maioria das grandes religiões mundiais nos referem como seres em processo, cuja jornada é a própria formação. Livres em nossas circunstâncias, que nos limitam em parte e em parte condicionam, mas são impotentes para aniquilar o que temos de divino. E esse toque “divino”, fino fio que nos mantém de pé, frágil filamento que nos une uns aos outros, que conduz (para nós, através de nós e a partir de nós) uma certa pulsante corrente elétrica, é a Esperança.

É preciso esperançar. Acreditar contra nossas diferenças, resistir contra os flagelos e os flageladores, os verdugos à serviço da exclusão e do maniqueísmo. Suas agendas não são as nossas; sua estreiteza não no diz respeito. Martin Luther King, o grande pastor e líder civil da mais singular expressão, assevera: “Devemos aceitar a decepção finita, mas nunca perder a esperança infinita”. E conclui: “Se eu ajudar uma pessoa a ter esperança, não terei vivido em vão”.

Aquela única corda da alegoria de Watts, citada no início deste texto, fio solitário, é na verdade uma ponte. Sim, é uma ponte de Esperança, fio a co-ligar e conduzir o homem (indivíduo e sociedade), e cabe a cada um de nós o papel de seus arautos, de pontífices (construtores de pontes) para nosso próximo.
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Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia com especializações em Metodologia do Ensino e Gestão Escolar, atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É de São Gonçalo/RJ.

Maurício Cavalheiro (O pintor de auroras)

Não conheço quem o supere nos pincéis. Não conheço quem consiga retratar com delicadeza e precisão todos os pormenores em tela. É impossível plagiar os matizes que utiliza. Ninguém, nem Monet, nem Van Gogh, Taraborelli ou qualquer outro gênio da história da arte, conseguiu se aproximar da perfeição.

De todas as telas sobre amanheceres que pintou, guardei algumas em minha memória.

Ele retrata as auroras com todos os detalhes pertinentes a cada estação. Na primavera, por exemplo, a delicadeza dos pincéis anuncia a última estrela espiando os primeiros fios solares despertarem flores e joaninhas, enquanto o riacho desassossegado escorrega da colina. Abelhas e beija-flores coletam néctar e polinizam. 

No verão, atribui cores mais intensas à aurora para registrar o sol acordando mais cedo e encontrando gatos voltando da noitada. As borboletas brincam sem se assoberbar pela beleza de seus vestuários. Os passarinhos sinfonizam orações e inauguram o voo do amanhecer.

Na aurora outonal, os matizes são gris ao reproduzirem a chuva tamborilando o telhado para desafiar o sol. O hálito fresco da brisa arrepia o arvoredo. Preguiçosamente, as nuvens se deslocam e permitem que o astro rei reassuma o comando. O cachorro brincalhão corre atrás do coelho assustado.

No inverno, o sol nasce devagarinho, tímido, e vai diluindo, aos poucos, o orvalho que aveluda o rendilhado das aranhas. O vento, indomesticável, assobia canções polares. As nuvens são cachecóis que envolvem a montanha.

Da janela do meu quarto, nessa casa sem requintes, mas aconchegante, observei e observo as telas desse grande artista. Da janela do meu quarto, observo as magníficas obras de arte produzidas por... Deus.
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O autor é de Pindamonhangaba / SP

(esta crônica obteve o 1. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Luiz Boromelo (A mulher sem rosto)

Cinco horas da manhã. Nem precisava de despertador, pois o som característico do calçado de salto alto indicava que a mulher sem rosto descia a rua sem pressa, mostrando confiança. Por muito tempo, o ruído inconfundível do caminhar da vizinha de algumas casas acima martelou em minha cabeça. Nunca a via pessoalmente, nem eventualmente pela cidade. Mas sabia que era ela. E que possuía muitos calçados, pois tinham timbres diferentes e bem definidos. 

“Deve ter bom gosto”, pensava eu. E dinheiro para comprá-los, evidentemente. 

Frequentemente imaginava a figura quase surreal daquela que sem saber, substituiu meu despertador por anos a fio. Seria uma morena de olhos verdes, cabelos longos e bem cuidados, pele naturalmente bronzeada e um sorriso de fazer qualquer homem derreter-se por dentro? Ou a misteriosa de costumes matutinos apareceria como uma loira fatal, olhos azuis como o céu, batom vermelho nos lábios e pose de madame? Usaria um perfume de fragrância marcante, típico das mulheres que detêm o poder em todas as circunstâncias? O tempo se encarregaria de dar a resposta, que muitas vezes não corresponde com nossas expectativas, uma vez que procuramos criar uma imagem que atenda aos devaneios da mente.

Mas ela era real e sua pontualidade impressionava. Nem a agitação natural dos animais de estimação conseguia dissimular sua presença. Tomei conhecimento somente tempos depois que trabalhava numa usina de açúcar a alguns quilômetros da cidade. Decerto exercia funções administrativas, a julgar pela indumentária, obviamente analisada de baixo para cima, única referência possível até o momento. Ocuparia algum cargo no setor de recursos humanos, departamento pessoal, financeiro, gerência ou até mesmo na diretoria? Essa dúvida me levou a algumas tentativas para desvendar o mistério da madrugada, sem sucesso.

Eis que numa bela ocasião a dama da noite materializou-se diante de meus olhos. Fui tomado pela ansiedade ao ouvir aqueles passos ritmados, procurando visualizar antecipadamente o vulto da diva imaginária que povoava meus pensamentos. O que teria a lhe dizer, se me permitisse tal ousadia? Como seria retribuído, uma vez que jamais havia lhe dirigido uma palavra sequer?

 Finalmente, aquela que por muito tempo foi a responsável por determinar o início dos meus dias de trabalho estava bem à minha frente. E para minha surpresa, estendeu-me a mão num cumprimento cordial, elogiando minha disposição em levantar tão cedo. Era uma simpática velhinha de origem nipônica e compleição mirrada, calçando um tamanco característico daquele país oriental. Contratada como cozinheira, fazia do trabalho uma terapia em sua vida. Estava desfeito o mistério da mulher sem rosto. E de todas as que passaram pelas calçadas de minha vida. Sejam elas loiras, morenas ou ruivas, com ou sem o aroma perfumado do imaginário humano. Hoje não ouço mais aqueles passos em minha calçada. A vovó deve ter se aposentado. Que pena!

Estante de Livros (3 livros de Herman Hesse)


As obras de Hermann Hesse são profundas explorações da condição humana, abordando temas como a busca por identidade, a luta entre o dever e o desejo, e a necessidade de autoconhecimento. Hesse combina narrativa rica e filosófica com uma prosa poética, criando histórias que desafiam o leitor a refletir sobre suas próprias experiências e escolhas na vida.

1. Rosshalde
Narra a história de Gustav von Aschenborn, um pintor de renome que vive em uma propriedade chamada Rosshalde, com sua esposa, bela e jovem, e seu filho, Bruno. Apesar de seu sucesso artístico, Gustav sente-se preso em sua vida e em suas relações. O romance é ambientado em um período de crise pessoal e artística para Gustav, que se vê confrontado com a insatisfação em seu casamento e o desejo de liberdade criativa.

A obra explora os conflitos internos de Gustav, que se sente dividido entre suas obrigações familiares e sua necessidade de expressar-se artisticamente. A complexidade de seus relacionamentos, especialmente com sua esposa, se torna um reflexo das tensões entre o mundo exterior e sua vida interior. À medida que a história avança, Gustav toma uma decisão que mudará sua vida — ele abandona Rosshalde e sua família em busca de sua própria identidade e de um significado mais profundo.

"Rosshalde" é uma profunda exploração da busca pela autenticidade e da luta entre a arte e a vida pessoal. Hesse utiliza o personagem de Gustav para refletir sobre a tensão entre o dever e o desejo, a liberdade e a responsabilidade. O ambiente de Rosshalde simboliza tanto a segurança quanto a prisão, enquanto a arte de Gustav representa a busca por expressão e verdade.

A relação entre Gustav e sua esposa é central para a narrativa, ilustrando como as expectativas sociais e as pressões familiares podem sufocar a individualidade. A obra também aborda temas de autoaceitação e a importância de seguir o próprio caminho, mesmo que isso signifique deixar para trás pessoas amadas.

Hesse utiliza uma prosa lírica e rica em simbolismo, criando uma atmosfera que ressoa com a busca interna de Gustav. O romance é uma meditação sobre a condição humana, a criatividade e a necessidade de encontrar um propósito que transcenda as convenções sociais.

2. Siddhartha
É um romance que narra a jornada espiritual de um jovem chamado Siddhartha durante o tempo do Buda. Siddhartha, um filho de um brâmane, é inteligente e ambicioso, mas sente-se insatisfeito com a vida de prazeres e rituais convencionais. Ele decide deixar sua casa e seus privilégios, em busca da iluminação e do verdadeiro significado da vida.

Siddhartha se junta a um grupo de ascetas, praticando a renúncia e a meditação, mas logo percebe que essa caminho não leva à verdadeira realização. Em seguida, ele encontra Gautama, o Buda, mas mesmo assim sente que a iluminação não pode ser ensinada, apenas vivida. Siddhartha continua sua busca, experimentando a vida material e amorosa ao se envolver com Kamala, uma cortesã, e se tornando um homem de negócios.

Após anos de excessos, Siddhartha se sente vazio e decide se retirar para a margem de um rio, onde encontra um barqueiro sábio que o ajuda a compreender a natureza do tempo e da existência. Através desse encontro, Siddhartha alcança a iluminação, reconhecendo a unidade de todas as experiências e a interconexão da vida.

É uma obra rica em filosofias orientais e reflexões sobre a busca espiritual. A jornada de Siddhartha é uma metáfora para a busca de cada indivíduo por significado e compreensão. Hesse utiliza elementos do budismo e do hinduísmo para explorar a ideia de que a verdadeira sabedoria vem da experiência pessoal e da introspecção.

O romance destaca a importância do autoconhecimento e da aceitação das dualidades da vida — prazer e dor, amor e perda. Siddhartha é um personagem que representa a universalidade da busca humana por propósito, e sua jornada é uma reflexão sobre como cada um de nós deve encontrar seu próprio caminho.

A prosa de Hesse é poética e contemplativa, criando uma atmosfera meditativa. O simbolismo do rio, que representa o fluxo da vida e a continuidade da existência, é central para a obra, refletindo a ideia de que cada experiência, por mais desafiadora que seja, contribui para o crescimento e a compreensão.

3. O Jogo das Contas de Vidro
Esta é uma obra futurista que se passa em uma sociedade utópica chamada Castália, dedicada ao desenvolvimento da cultura e do intelecto. A história gira em torno de Joseph Knecht, um talentoso jogador das contas de vidro, uma prática que combina música, matemática e filosofia em uma forma de arte elevada. Knecht é escolhido para se tornar um mestre do jogo, mas à medida que avança em sua carreira, começa a questionar o papel da arte e do intelecto na vida humana.

Ao longo da narrativa, Knecht reflete sobre suas experiências e sua relação com a sociedade, incluindo seus amigos e mentores. A obra é dividida em três partes, cada uma explorando diferentes aspectos da vida de Knecht e sua busca por significado. Ele acaba se afastando do sistema rígido de Castália, buscando uma conexão mais profunda com a vida fora da academia.

A história culmina em sua decisão de deixar Castália e se tornar um simples educador, reconhecendo que a verdadeira sabedoria vai além do conhecimento acadêmico. Knecht entende que a vida deve ser vivida plenamente, e não apenas contemplada.

"O Jogo das Contas de Vidro" é uma reflexão profunda sobre o papel da arte, da educação e da espiritualidade na vida moderna. Hesse critica a elitização do conhecimento e a desconexão entre o intelecto e a experiência vivida. A obra é uma meditação sobre a busca pela autenticidade e a necessidade de integração entre o intelecto e a vida prática.

O jogo em si, com sua complexidade e beleza, simboliza a busca pela harmonia e pela compreensão profunda da existência. Através de Knecht, Hesse explora a tensão entre o idealismo e a realidade, questionando se é possível encontrar um equilíbrio entre o intelecto e a vida emocional.

A prosa de Hesse é rica em simbolismo e filosofia, desafiando o leitor a refletir sobre suas próprias crenças e valores. A obra é considerada uma das mais ambiciosas de Hesse, abordando questões existenciais e espirituais que continuam a ressoar com leitores contemporâneos.

Fontes: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por JFeldman a partir de fotografia da estante de livros