quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Newton Sampaio (Pensão familiar)

Era uma novidade aquela pensão. Damião pensa que, se algum dia desse pra escrever romances, teria material de sobra. Só a dona Amélia valia uma novela. E daquelas bem complicadas. Bem cheias de notícias freudianas. E de outras notícias igualmente vergonhosas. Damião não suporta devoção tamanha. Mulher solteirona, beirando os quarenta — que aprecia demais estar entre rapazes, e vive na igreja, rezando sem parar, e cuida de numerosas obras piedosas, eficientes ou inúteis — é mulher estragada pelos recalques e digna, por conseguinte, de piedade. É mulher que procura encher, com devoções exaltadas, o vazio de glândulas insatisfeitas.

 Quando Damião diz isso ao Gilberto, o Gilberto acha que Damião é um sujeito substancialmente imoral. São pontos de vista. Damião é substancialmente sincero apenas.

 Outro caso curioso: o Mendonça Neto. Curioso, mas triste. “Um psicótico sem lesão cerebral”, como diz Gilberto, que anda mastigando Maurice de Fleury, Achilies Delfas etc. Mendonça Neto supõe-se cidadão excepcional. Anda sempre às voltas com gente graúda. Raro o dia em que não pede ou recebe telefonemas. Ninguém sabe o que se fala do lado de lá da linha. O fato é que Mendonça Neto, a princípio, responde coisas banais. E, depois, solta afirmações terríveis: “Prometi escrever um artigo violento a respeito”. “Mas eu resistirei. Veremos quem tem mais prestígio”. “O ministro então me perguntou”. “Nós nos veremos hoje, na câmara, não é assim?”

Foi o Gilberto quem lhe descobriu a deixa. O rapaz, quando atende qualquer conhecido ao telefone, conversa sobre o assunto desejado. E logo que o interlocutor se despede e interrompe a ligação, Mendonça Neto em vez de dizer “até logo” resmunga qualquer coisa, e continua a falar sozinho contando proezas magníficas. Faz assim porque sabe que, da sala de jantar contígua, todos o escutam, obrigatoriamente.

 Damião se lembra daquela célebre viagem a Minas. Mendonça Neto anunciou:

 — Vou a Belo Horizonte numa viagem rápida de suprema gravidade para o meu jornal.

 E ausentou-se, de verdade, por três dias. Mas, em vez de tomar o noturno, foi descansar na chácara do tio, no outro extremo da cidade...

 Damião sorri quando se lembra disso. Tem pena do Mendoncinha. Como tem pena do seu Neves, que sofre de uma doença muito feia. Gilberto gosta de explicar:

 — É doença de Parkinson, também chamada paralisia agitante. Caracteriza-se por uma rigidez muscular, fácies figé (como dizem os franceses) e tremblement, mas sem supressão da faculdade vocal.

 E, quando os ouvintes são hóspedes recentes, ainda completa com ares de professor da Sorbonne:

 — Foi outrora considerada como uma nevrose. Mas não o é. Provém de lesões microscópias dos núcleos cinzentos do cérebro. Quanto ao tratamento do tremblement (ele aprecia muito este termo), pode ser feito com bromidrato de geopolamina, por exemplo, quer em injeções subcutâneas, quer por via oral.

 No entanto, o Neves continua a sofrer, bem em frente da sabedoria do acadêmico de medicina. Ainda bem que a dona Virgínia, esposa amorosíssima, não larga o doente. São casados desde muito tempo. Tiveram um filho que morreu com 22 anos (dona Virgínia fala no filho e chora).

As refeições é que são engraçadas. Damião quase não fala. Escuta, apenas, as peripécias do Mendoncinha, a ciência do Gilberto, o vozeirão do Cardoso. E observa o Neves tremendo, dona Virgínia o servindo, a piedosa Amélia comendo depressa pra alcançar a novena, a mocinha magra conversando com o irmão, o tenente curtindo ciúmes da mulher e dona Emerenciana dando ordens ao garçom. 

No cérebro do Damião se repete a ideia:

 — No dia em que eu quiser escrever um romance, tenho material de sobra.

 Na sala da frente, as moças da casa recebem visita, com cerimônia ensinada, a capricho, pela mãe. Dona Emerenciana não quer, nem de longe, que Carmita e Guguti pareçam filhas de dona de pensão.
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Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 20/12/1936.
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Chafariz de Trovas *4*


 

Asas da Poesia * 89 *


Poema de
CZESLAW MILOSZ 
Seteniai/Lituânia, 1911 – 2004, Cracóvia/Polônia

Tão Pouco

Disse tão pouco
Dias curtos.

Dias Curtos,
Noites curtas.
Anos curtos.

Disse tão pouco,
Não tive tempo.

O meu coração cansou-se
Do êxtase,
Do desespero,
Do zelo,
Da esperança.
A boca do Leviatã
Engolia-me.

Deitava-me nu junto ao mar
Nas ilhas desertas.

Arrastava-me para o pélago
A baleia branca do mundo.

E agora não sei
O que foi verdade.      
(tradução: Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Ter razão

“Ninguém por ter razão já foi ao céu”!
Eu não duvido disso, pois de fato
Nada vale fazer louco escarcéu,
Se barulho não é prova do que é exato!

Quem teima pode ir é ao beleléu...
É um Infeliz com orgulho caricato,
Que o faz tão só ser dono de um troféu
De convencido, tolo e até insensato!

Impor nossa razão só por vaidade
E a qualquer preço, hora e até lugar
Talvez seja a maior boçalidade!

Importa é ter amor! Não, ter razão!
Vale a pena esta regra ponderar:
O amar faz muito bem ao coração!
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Poema de
ULLA HAHN
Brachthausen/Alemanha

Pré- Escrita

 Esta Saudade
de te chamar pelo nome
Este receio
de te chamar pelo nome

 Esta saudade
de manter a palavra
Este receio
de apenas manter a palavra

 Esta saudade de uma vida
que não dê em poema
Este receio de um poema
que antecipe a vida.
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Hino de 
SÃO JOÃO DE MERITI/ RJ

Desejando a lei conceber o progresso
De ver o Sol renascendo maior,
Fez ir ao berço da mãe gentil
São João transformado em cidade.
Do passado é memória na história presente
Para tecer um futuro melhor.
Continuamente, nosso dever
É guiá-lo crescendo e avante.

São João de Meriti é o nome da terra que louvamos!
O povo meritiense com áureos lauréis honramos!
Se tiver que partir eu irei onde a vida decidir!
Mas em meu coração levarei a bandeira de Meriti!

Sobre o chão dos "Tamoios" virou "Freguesias",
Nas sesmarias de "Iguaçu",
A produzir finas iguarias
Levadas nas águas do rio.
Tal labor construiu sobre tua presença
Templos à pura e exata razão
Enaltecendo a doce emoção
De quem ama, trabalha e pensa.

Que teu céu guarde o voo da sã liberdade
E que teu solo a permita correr.
Fartas virtudes possam chover
Sobre nossa querida cidade,
Pois ao imaginar não haver mais saída,
Quando a luz do final se apagar,
Quero chorar do amor que te sinto
Ao ver teu brasão acendendo.
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Recordando Velhas Canções
ACALANTO 
Elomar Figueira Melo 
(Vitória da Conquista/BA)

Certa vez ouvi contar
 Que muito longe daqui
 Bem pra lá do São Francisco, ainda pra lá...
 Em um castelo encantado,
 Morava um triste rei
 E uma linda princesinha,
 Sempre a sonhar...

Ela sempre demorava
 Na janela do castelo
 Todo dia à tardezinha, a sonhar...
 Bem pra lá do seu castelo,
 Muito além, ainda mais belo,
 Havia outro reinado,
 De um outro rei.

Certo dia a princesinha,
 Que vivia a sonhar
 Saiu andando sozinha,
 Ao luar...

E o castelo encantado
 Foi ficando inda pra lá
 Caminhando e caminhando,
 Sem encontrar.

Contam que essa princesinha
 Não parou de caminhar,
 E o rei endoideceu,
 E na janela do castelo morreu,
 Vendo coisas ao luar.
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Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

A Cuca

Na noite enluarada um sussurro a soar,
a Cuca, a bruxa de olhos de fogo,
com seu manto escuro vem te atormentar,
dos sonhos das crianças é o eterno jogo.

Sonhos se desfazem sob seu olhar frio,
e o medo se espalha como sombra a dançar,
levando os inocentes ao mais profundo vazio,
na teia da noite, ela vem se enredar.

Mas sob a maldade há um lamento a ecoar,
histórias esquecidas de um amor a vagar,
que, mesmo em pesadelos busca a liberdade,

e assim, a Cuca tem sua dualidade,
guardando em seu ser um profundo pesar,
entre sonhos perdidos ela vai se ocultar.
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Poema de
ANTÓNIO GEDEÃO 
Lisboa/Portugal, 1906 – 1997

Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
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Triverso de
ÁLVARO POSSELT
Curitiba/PR

Aqui tudo pode.
Até a cabra
fica de bode.
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Soneto de
ALFREDO GUISADO
Lisboa/Portugal, 1891 – 1975

Ela, em meu sonho

Ela vivia num palácio mouro…
Nas harpas, os seus dedos a espreitarem
como pajens curiosos, a afastarem
os cortinados todos fios de ouro.
 
As suas mãos, tão leves como as aves,
ora fugiam volitando, frias,
ora pousando, trêmulas, frias,
nas cordas, a sonharem melodias…

E os sons que ela tangia, aos seus ouvidos
chegavam, receosos de senti-la,
voltavam a não ser nunca tangidos.
 
É que ela, as suas mãos, as harpas de ouro,
não eram mais do que um supor ouvi-la
e o meu julgá-la num palácio mouro.
= = = = = =

Poema de 
LORENZO OLIVAN
Cantábria/ Espanha

O Guardião de si mesmo

Escondido em algum dos ângulos
do pensamento, oculto no seu matagal,
fico de vigia durante a noite.
Quero julgar com nitidez a linha
indefinida que separa sempre
a vigília do sono.
Quero saber que porta
a minha mente tem de atravessar,
que sombra aos poucos cai ou sobe
do alto de do profundo,
de que porção de mim terei que desprender-me
e que porção saberá
atravessar o leve umbral comigo.

Hoje o sono não vai poder vir de luvas brancas,
não vai roubar a minha casa impunemente,
vou aprender as suas artes,
vou vê-lo penetrar silencioso
pela porta de trás da consciência.

Assim fico de vigia
e guardo, com olhos bem fechados,
a minha interior escuridão
debaixo da noite escura.

Nada se move, só o pensamento,
cansado dos círculos que tem de
descrever durante o dia. De que parte
do negro infinito virá o sono?
Onde, onde essa linha?

O sol da manhã dá no teu rosto.
Náufrago de ti mesmo,
levanta-te Ulisses.
Que recordas da viagem?
Irónica, a luz atira sobre ti
uma sonora gargalhada.
(Tradução: Joaquim Manuel Guimarães)
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Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Feridas

Abri a gaveta das lembranças
Tirei tudo o que dentro estava.
Fechei todas as portas e janelas,
Não queria que elas saíssem por ai,
Para espalhar minha história.
O mundo está cheio
De palavras inúteis.
Que não servem para nada.
Não enobrecem a vida.
Preciso agora descobrir
Os segredos da alma:
Curar, ungir, suturar feridas…
Sutis, apodrecidas.
Dobras doentes
Procurando refrigério,
Procurando alento,
Na simples carícia
Do toque do vento…
Depois, com carinho, guardo-as novamente,
Na última gaveta da minha mente.
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Leonardo da Vinci (A Amoreira)

A pobre amoreira não suportava mais aquilo. Agora, que seus galhos estavam novamente carregados de amoras, os insolentes melros bicavam e estragavam todos os ramos com o bico e com as patas.

- Por favor - suplicou a amoreira, dirigindo-se ao melro mais importuno - poupe ao menos minhas folhas! Sei que vocês gostam muito dos meus frutos, que são seus preferidos. Porém não me privem da sombra de minhas folhas, que me protegem contra os raios do Sol. E não me estraguem com as patas, não arranquem minha casca macia.

A essas palavras o melro, ofendido, respondeu:

- Silêncio, sua mal-educada! Você não sabe que a natureza fez você produzir essas frutas apenas para me alimentar? Não sabe, sua estúpida, que quando chegar o inverno você vai servir apenas para alimentar o fogo?

Ao ouvir essas palavras a amoreira pôs-se a chorar baixinho.

Algum tempo depois o insolente melro caiu numa armadilha preparada por um homem. A fim de construir uma gaiola para o pássaro, o homem cortou os galhos de uma sebe, e coube à amoreira fornecer a madeira para as barras da gaiola.

- Oh! Melro, disse a amoreira - ainda estou aqui. Quando você era livre vinha me importunar, e agora são meus galhos que impedem sua liberdade. Ainda não fui consumida pelo fogo, como você disse que ia acontecer. Você não me viu queimada, mas eu estou vendo você prisioneiro.
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Leonardo de Ser Piero da Vinci nasceu em 1452 na Itália e morreu em 1519, na França, era para seus contemporâneos um personagem discutido e controvertido. Como pintor era mal visto, porque jamais terminava as obras iniciadas; como escultor despertou suspeitas por não ter forjado em bronze o monumento equestre a Francisco Sforza; como arquiteto era perigosamente ousado; como cientista era de fato um louco. Sobre um ponto, no entanto, seus contemporâneos viam-se obrigados a concordar: Leonardo era um argumentador fascinante, um polido conversador, um contador de histórias “mágico” e fantástico, um gênio da palavra acompanhada da mímica. Falando da ciência, fazia calar os cientistas; argumentando sobre filosofia, convencia os filósofos; inventando fábulas e lendas, conquistava os favores e a admiração das cortes. Sempre, e em qualquer lugar, Leonardo era o centro das atenções. E jamais decepcionava seu auditório porque tinha sempre, alguma história nova para contar. As fábulas e lendas de Leonardo têm um objetivo e finalidade moral, algumas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972. O único personagem constante dessas fábulas e lendas é a natureza: a água, o ar, o fogo, a pedra, as plantas e os animais têm vida, pensamento e palavras. O homem, pelo contrário, aparece como instrumento inconsciente do destino, e sua ação, cega e implacável, destrói vencidos e vencedores.
“O homem é o destruidor de todas as coisas criadas”, escreveu Leonardo no “Livro das Profecias”; e nunca, como hoje em dia, na longa história de nosso planeta, uma asserção foi mais verdadeira e tão tragicamente atual..

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Carina Bratt (Como pequenas farpas de uma alma em silêncio)

“De repente, das lágrimas dos meus olhos, meu mundo se fez pequeno dentro do beijo que você me deu”.
Aparecido Raimundo de Souza (de Viagem imersiva) 

Quase carnal
Na noite silenciosa a lua, em desespero, fustigou o bambu.

Morte
A chuva no asfalto refletia luzes vermelhas sem ninguém por perto.

Amanhã sem talvez
Meu grito derreteu no vazio da madrugada um porvir obscuro.

Sem eira nem beira
Suas palavras cortantes no silêncio que sangrou, me tiraram do sério.

Elevador
A porta se fechou, rostos se prenderam no abismo. Desci sem saber.

Nuvem passageira
Uma sombra ao acaso desliza sobre meu rosto distraído.

Tempo roubado
A mesa estava pronta. Os pratos alinhados. Copos desfalecidos refletiam o silêncio que ocupava uma cadeira.

Nascitura 
O quarto ainda guarda o cheiro dos brinquedos e o som do choro de uma criança que sempre se repete.

Rotina enervante
Tudo por aqui vive num instante que não volta, mas também não se vai.

Quase eterno
Na mesa o lugar continua posto. Não por hábito, mas por uma esperança teimosa de que o impossível se desfaça.

Acredite se quiser, mas... 
Aqui, mesmo, no luto que me invade, há uma memória que pulsa. Não é consolo. É presença invisível que insiste em ser amor.

A dor de não ser vista
Seu olhar me atravessa como se eu fosse feita de vidro. Virei uma espécie de ausência imorredoura.  

Ad aeternum
O seu adeus sem raiz cresceu no solo árido do meu silêncio.

Ausência sentida 
Mãos acolhedoras não vieram no dia do meu tropeço. Nem mesmo o vento...

Fatal
No escuro da solidão não ouvi a voz amiga para me dizer: ‘vai ficar tudo bem.’

Eco sem adeus
No rosto envolto da lembrança o relógio da sala parou cedo...

Pergunta vã
Cadeira vazia entre risos disfarçados – cadê você?!

Prematura
Morte inesperada. Faltou alguém no velório.

Em vão
Choro sem colo no vazio da madrugada. Ninguém me ouviu.

Ainda assim...
Estou aqui, mas não me vejo. Meus passos ficaram sem som, meus gestos não deixaram sinais. Virei presença sem impacto, me fiz ausência viva.

Aconteceu bem assim...
Tarde demais, veio o brilho enfeitar teus olhos – como primavera exausta. 

Parede calada
Na moldura vazia o tempo não quis te lembrar...

Meio que inesperado
Seus olhos se fecharam e o meu mundo desmoronou em silêncio. Minha alma virou vertigem. 

Como se fosse algo irreal
Na brisa da manhã as folhas dançaram na varanda. E o sol afugentou meus medos. 

Saudade
É como algodão. Paira leve sobre meu peito sem pedir licença.

No lençol amassado  
Teu perfume insiste em não deixar meu corpo.  

Meu amor que partiu
Deixou meu olhar preso na janela olhando o tempo.

Raios no escuro
O futuro se desenha sem revelar cores.

De uma semente no chão
O meu amanhã já respira antes de nascer.

Destino traçado
Tentei fugir de mim. Tropecei em nós dois.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Trabalha como secretária particular e assessora de imprensa em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.

Fonte:
Texto enviado pela autora, 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Chafariz de Trovas *3*

 

Asas da Poesia * 88 *


Poema de 
APOLÔNIA GASTALDI
Ibirama/SC

O vento
 
Um dia
bem à tardinha
bate  o  vento
a viração 
e
varre  ligeiro
as  folhas  secas  do  chão
 
Olhei bem aquela cena
do terreiro limpo
e
então
lembrei todos  os  sonhos
que  eu  tinha 
na  coração.
 
Se  você  tivesse  visto
com os olhos  da  alma
a dor
não teria  arrancado
de  mim
aquele  amor
 
Sonho  com o terreiro  limpo
depois de  uma viração.
Um  amor não mata  outro
o que  nos mata 
é a  dor.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Oh, tempo!

A rua onde brinquei na meninice,
período mais feliz de minha vida,
só fui revê-la agora, na velhice...
E ali... senti minha alma compungida!

Aquela que implorou que eu não partisse...,
que era tão bela e larga, tão comprida,
como pôde encolher? Foi vigarice
do tempo que a tornou tão espremida?

Meu grande espanto fez-me recordar
do imenso amor da minha juventude,
que então julguei ser o maior do mundo...

Mas quando a vida me obrigou provar
a imensidão daquele amor... Não pude,
tão diminuído estava... E moribundo!
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Recordando Velhas Canções
SAMBA TRISTE 
(1960) 
Billy Blanco e Baden Powell 

Samba triste 
A gente faz assim 
Eu aqui 
Você longe de mim, de mim 
Alguém se vai 
Saudade vem e fica perto 
Saudade resto de amor 
De amor que não deu certo 

Samba triste 
Que antes eu não fiz 
Só porque 
Eu sempre fui feliz, feliz 
Agora eu sei 
Que toda a vez que o amor existe 
Há sempre um samba triste, meu bem 
Samba que vem de você, amor
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Folclore Brasileiro em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Floresta/PR

Matinta Pereira

Na bruma da noite, um canto a soar,
Matinta Pereira, sombra a vagar,
com penas de gaivota e mistérios a contar,
guardiã das almas, seu destino a traçar.

Canta para os mortos, em lamento profundo,
e em cada sussurro, um eco fecundo,
protege os perdidos, os que não têm voz,
e em seu olhar sábio, a dor se faz feroz.

Mas quem a desafia, deve ter temor,
pois a força da bruxa é de um grande amor,
que luta na sombra, em busca de paz,

e entre os mistérios, a vida se faz,
Matinta, a lenda, com seu eterno clamor,
nas noites de velas, seu canto é fervor.
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (I)

Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons... acerta... desacerta...
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas...

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço...
Pra que pensar? Também sou da paisagem...

Vago, solúvel no ar, fico sonhando...
E me transmuto... iriso-me... estremeço...
Nos leves dedos que me vão pintando!
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Poema de 
GRAÇA PIRES
Figueira da Foz/Portugal

Quero uma Casa

Quero uma casa com paredes azuis,
com varandas vidradas sobre a noite.
Um abrigado lugar no eixo do silêncio.
Um espaço intemporal. Sagrado.
Ancorado perto de um signo lunar,
ou preso a um verão inesperado.
Quero dançar dentro das palavras líquidas:
água, rio, mar, lágrimas,
talvez o orvalho que escorre pelas árvores de madrugada.
Quero atravessar uma crônica de viagem,
conspirando contra os profetas de marés sobressaltadas,
para não morrer sufocada na engrenagem do medo.
Quero ficar seduzida de uma espera,
no imaginário dos que sonham,
e gritar a idade circular de qualquer afeto.
Quero amar o pretexto branco dos meus olhos
sem precipitar a cor translúcida das raízes
que prendem a noite à palidez do sol na sedução do amanhecer,
e deixar, depois, que um azul extenuado me denuncie.
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Hino de 
BALSA NOVA/ PR

Tua gente sempre acolhedora,
Tem no peito a semente da amizade,
Tem nos olhos luz reveladora
De um povo feliz de verdade.

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança.

O teu gado e toda a plantação
Dos teus campos compõem novo desenho
E revelam nobre coração:
De paz, de esperança, de empenho.

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança.

O teu chão fecundo, abençoado
O Iguaçu e Papagaio vem banhar,
E tuas matas trazem bom recado:
"Progresso é da vida cuidar".

Balsa Nova cidade criança,
teu futuro é riqueza e bonança. 
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Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Presidente Alves/SP, 1947 – 2025, Bauru/SP

Sutil olhar

A nova era agora tão veloz
atinge os ares lassos de metais;
a quântica figura não é mais
o mito que atordoa a todos nós.

Os olhos deslumbrados por fanais
que buscam horizontes, antes sós,
percebem muito além de nossa voz
as vibrações sutis de mil sinais.

Desperta criatura limitada!
Aguça a tua aura dos sentidos;
o mundo ao teu redor é quase nada!

A nova era agora tem ouvidos;
o espírito retarda evolução
se olhar de uma segunda dimensão!!
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Poema de
YVES NAMUR
Bélgica

Figuras do muito obscuro (I)

Evita pois
Olhar no seio do visível

 E
Antes vê as coisas que não vês
E tudo isso que não ouves.

 Pois é aí,
Ao centro de “Nenhures”,
Que sempre o coração vai ter

 E
O passo do inesperado.

Porquê obstinarmo-nos a chamar ainda
Aquele que o não pode ser

E
Nunca há de poder regressar?

 Se não fosse para aumentar o vazio
E a nossa necessidade de ser na imensidão?
(Tradução: Fernando Eduardo Carita)
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Quadra  Popular

Vou tirar o teu retrato,
no tampo da minha viola,
o dia que não te ver,
teu retrato me consola.
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Poema de
JOSÉ FANHA
(José Manuel Kruss Fanha Vicente)
Lisboa/Portugal

Grito

De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.
De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor elétrica
do mais desvairado
coração.
De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.
De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.
De ti que domaste
o cavalo e os neutrões 
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.
De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.
De ti que levaste
a volúpia da ambição
a trepar ereta
contra as leis do firmamento.
De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansasse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluído lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.
De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.
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