sábado, 6 de setembro de 2025

Arthur Thomaz (Não foi o mordomo)

O caso a seguir transcorreu em uma mansão no Jardim Europa, na cidade de São Paulo. A octogenária Dona Henriqueta, matriarca da família, lúcida e atenta, conhecia todas as particularidades dos familiares que ali moravam, e nunca se deixava enganar. Controlava com mão de ferro tudo na casa, contando sempre com a inestimável ajuda de Bronson, o mordomo, algo que desagradava muito os parentes, ávidos por herdarem logo a fortuna amealhada em dezenas de anos de trabalho na enorme e famosa empresa de laticínios.

Rosa e Juvenal, os netos mais novos, simulavam estudar para manter as aparências, mas sempre que podiam, gastavam a polpuda mesada em baladas e viagens ao exterior, fingindo que eram para cursos de especialização.

Eram filhos de Altair, o primogênito, um inútil a quem deram um cargo de diretor, no qual nada realizava e não tinha sequer direito a voto decisivo no conselho da empresa.

Lúcia, a outra filha, era considerada a mais frívola de todos, assumindo o papel de “socialite”, uma frequentadora assídua da noite paulistana.

Divorciada de um decadente artista de televisão, com quem tivera um filho que herdara do pai a mesma falta de caráter.

Henriqueta contava para as poucas amigas sobre o tempo em que recém-casados, ela e Aristides vinham do sítio todas as madrugadas, em uma carroça, para vender leite nas casas da cidade.

Em uma dessas vindas, depararam-se com uma criança chorando em uma calçada, com frio, fome e aterrorizada pelo horror do abandono. Acolheram-na, procuraram em vão seus familiares e a levaram para casa. Deram-lhe o nome de Bronson por causa de um famoso ator de filmes de Hollywood.

Com a perseverança no trabalho, juntaram algum dinheiro, compraram o pequeno sítio e iniciaram a produção de manteiga e queijos, criando assim, o laticínio que lhes trouxe fortuna.

Adquiriram um enorme casarão de uma tradicional e falida família paulistana. Bronson não quis estudar, preferiu dedicar-se aos cuidados da casa, pela eterna gratidão que sentia pelo casal. Transformando-se em um imprescindível mordomo, parte integrante do ambiente familiar.

Nas horas em que estavam sozinhos, Aristides confidenciava à Henriqueta que deveriam ter somente Bronson como filho, desiludido que estava com os dois outros, os naturais.

Fizeram fortuna com o trabalho, mas quando ele morreu, ela transformou a empresa em Sociedade Anônima, e passou a viver de rendimentos, mantendo o traste do filho com o cargo fictício na diretoria.

Certa tarde, Henriqueta pediu a Bronson que a levasse secretamente a um médico. Lá, foi constatada a irreversibilidade de uma gravíssima doença. Voltaram para casa cabisbaixos e calados, com ele ternamente acolhendo-a em seus braços.

Após um tempo, Henriqueta, em uma madrugada, chamou Bronson ao seu quarto. Com um olhar desesperado de tanta dor, nem precisou falar o que os dois já tacitamente haviam entendido que deveria acontecer, ou seja, abreviar o atroz e desnecessário sofrimento.

Na manhã seguinte, a polícia científica atestou a morte por uma queda acidental, com consequente fratura cervical, pelo trauma e pela adiantada osteoporose, característica da idade.

Os familiares correram aos advogados preocupados apenas com o inventário e já brigando entre si. Nesta noite, Bronson foi até o fundo da mansão e chorou desesperadamente por muitos dias.

Esquálido, mas com uma serenidade que não sabia possuir, juntou seus pertences e nunca mais se ouviu falar em seu nome.

PS: Para elaborar este conto e obter um respaldo científico, o autor contou com a inestimável colaboração do Doutor Francisco Américo Fernandes Neto (cirurgião geral e oncológico, perito criminal e médico legista).
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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