segunda-feira, 29 de setembro de 2025

José Feldman (As Cócegas da Discórdia)

Henrique e Pafúncio eram amigos inseparáveis, há uns 40 anos, mesmo na terceira idade, já aposentados. Passavam as tardes jogando cartas, contando histórias e tomando um bom café. Mas, como em toda amizade de longa data, um dia a paz foi abalada.

Uma discussão sobre quem seria o melhor contador de histórias rapidamente se transformou em um combate acalorado. Pafúncio, com um brilho travesso nos olhos, revelou que tinha um novo amigo que era “muito mais unido” do que Henrique. O velho Henrique ficou furioso. 

— Ah, é? Se eu morrer primeiro, vou puxar o seu pé à noite! — disse ele, com a voz embargada de raiva e um sorriso nervoso.

Pafúncio riu, achando que Henrique estava apenas exagerando. Mas, para sua surpresa, alguns dias depois, Henrique teve um infarto fulminante e faleceu. 

O velório foi triste, mas Pafúncio não pôde evitar de pensar: “Quero ver puxar meu pé, velho malandro!”.

Naquela noite, após o funeral, Pafúncio se acomodou na cama, tentando apagar da mente a discussão ridícula. Mas, ao fechar os olhos, uma sensação estranha começou a invadir o quarto. Ele se virou para o lado e, de repente, sentiu algo gelado tocar seu pé.

— Quem está aí? — sussurrou, com o coração disparado.

E, como se tivesse respondido ao chamado, o espírito de Henrique apareceu, com uma expressão travessa.

— Olá, Pafúncio! Lembra da minha promessa? 

Pafúncio quase caiu da cama. Ele começou a gritar e a rir ao mesmo tempo, enquanto o espírito de Henrique fazia cócegas em seu pé.

— Para! Para! — ele berrou, se contorcendo na cama.

Mas Henrique, em forma de espírito, não parecia se importar. Continuou a fazer cócegas, enquanto Pafúncio tentava explicar que tudo não passou de um desentendimento.

— Eu juro, não tenho outro amigo! Só falei isso para você ficar ciumento! — gritou Pafúncio.

Henrique, contente com a confissão, finalmente parou. Ele olhou para o amigo, agora ofegante, e riu.

— Então, você quer dizer que eu sou seu único amigo? 

— Sim! — respondeu Pafúncio, ainda rindo. — Sempre foi!

O espírito de Henrique decidiu dar uma trégua. Mas a paz durou pouco. Na noite seguinte, ele voltou, insatisfeito pelo amigo o ter enganado e novamente começou a fazer cócegas.

— Ah, você de novo! — gritou ele, rindo desesperado. — Se continuar assim, vou acabar morrendo de tanto rir!

As noites se tornaram um verdadeiro dramalhão. Pafúncio passou a contar para os amigos que “Henrique estava puxando seu pé” e todos achavam que ele tinha ficado maluco. Mas, na verdade, ele apenas estava com saudades dos velhos tempos com seu amigo.

Finalmente, uma noite, teve uma ideia. Ele se deitou e, em vez de se assustar, começou a conversar com o espírito de Henrique.

— Olha, a gente pode fazer diferente. Que tal você me contar histórias em vez de fazer cócegas?

Henrique, surpreso com a proposta, aceitou. E assim, as noites se tornaram um festival de risadas, rindo e trocando as histórias que sempre amaram.

No fim, a amizade deles perseverou até mesmo além da morte, e aprenderam que, às vezes, a melhor maneira de lidar com a raiva é através do riso. 

E, claro, sempre mantendo os pés encolhidos, longe de espíritos travessos!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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