Há muito, muito tempo, os campos estavam cheios de pessoas, na sua maioria malabaristas, cantadores, tocadores de violino e outros músicos. Chegou um momento em que os habitantes expulsavam da sua porta quem não soubesse tocar música ou executar qualquer outra diversão.
Mas houve uma vez, um jovem caminhante chamado Paití Nábla Móire, que não sabia histórias, nem canções, e era tão triste que ninguém fazia caso dele, nem o queria receber em sua casa.
Uma noite, chegou a Teilionn e andou de porta em porta à procura de alojamento, mas ninguém o aceitava. Continuou, então, a caminhar e não se deteve até chegar a Glen, onde também não encontrou acolhimento. Por fim, bateu à porta de um homem que não era dali, cuja mulher disse:
— Como não tens qualquer diversão para oferecer, não te recebo com gosto, mas, em todo o caso, não acho acertado bater com a porta na cara de ninguém, sobretudo a uma hora tão avançada. Podes ficar até amanhã no palheiro que há aí fora.
— Agradeço-te de todo o coração.
Paití Nábla Móire encaminhou-se para lá e instalou-se o melhor possível entre a palha.
Havia algum tempo que estava deitado, quando entraram três homens que transportavam um cadáver, um dos quais lhe deu um pontapé.
— Levanta-te, Paiti Nábla Móire, e vela este homem até ao amanhecer — ordenou-lhe. — É o nosso pai, que morreu, e temos de ir procurar comida. — Acenderam uma fogueira junto do corpo sem vida. — Aconteça o que acontecer, não deixes as chamas chegarem à mortalha.
O infortunado Paití ficou a guardar o cadáver o melhor que podia. Um pouco mais tarde, pareceu-lhe que o morto o olhava, pelo que se encolheu a um canto atrás da porta, fora do seu campo visual. De repente, levantou-se uma forte rajada de vento, que abriu a porta violentamente e espalhou o lume, pelo que a mortalha também ardeu, ante o profundo pavor de Paiti. Só Deus sabia a angústia terrível que o assolou!
Pouco depois, regressaram os três irmãos.
— Fizeste um bonito serviço, Paití Nábla Móire! A mortalha ardeu! Vais ter de pagar por isso. Lançar-te-emos ao lume, para que ardas também.
Dois deles seguraram-no pela cabeça e pelos pés, mas o terceiro disse:
— Larguem-no. Talvez nos possa ajudar a enterrá-lo.
Por conseguinte, levaram-no para fora do palheiro e começaram a abrir uma fossa com a pá. Ao mesmo tempo, puseram-se a discutir — um achava que era suficientemente grande e o outro pensava o contrário.
— Está bem — acabou por dizer um. — O Paití e o nosso pai são da mesma estatura. Atiremo-lo a ele para a cova. Se couber, também servirá para o pai.
Assim, pegaram no cada vez mais alarmado Paití, largaram-no na abertura e lançaram-lhe em cima algumas pazadas de terra. Quando tentava levantar-se, um dos irmãos atingiu-o com a pá na cabeça. Deste modo, permaneceu deitado até que ficou totalmente coberto, enquanto soltava uivos de medo tão intensos que quase poderiam comover as pedras.
Finalmente, o dono da casa ouviu os gritos e inteirou-se da loucura que se desenrolava no palheiro. Levantou-se da cama, correu para lá e, quando abriu a porta, o infortunado Paiti já perdera o juízo em virtude do pânico.
— Céus! — bradou. — Que aconteceu?
— Fiz mal em ficar na tua casa — lastimou-se Paiti. — Deus e a Virgem Maria sabem bem a noite que passei.
— Vem comigo — indicou o outro. — Dar-te-ei de comer antes que sigas o teu caminho.
— Não, obrigado.
— Tens de me acompanhar, para que te compense de certo modo dos aborrecimentos que sofreste.
— Passei a noite mais horrível de toda a minha vida.
Quando terminaram de tomar o pequeno almoço, o homem disse:
- Tiveste muita sorte em vir ontem à minha casa, depois de vagueares por aí sem que ninguém quisesse receber-te. Doravante, não haverá nenhuma em que queiras entrar sem que sejas bem recebido, pois já tens uma bela e longa história para contar!
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OS CONTOS TRADICIONAIS DA IRLANDA, são um rico legado cultural que reflete a história, as crenças e as experiências do povo irlandês ao longo dos séculos. Esses contos frequentemente giram em torno de temas como magia, heroísmo, amor e tragédia, e são povoados por uma variedade de personagens fascinantes, incluindo fadas, gigantes, heróis e deuses. Um dos aspectos mais notáveis destes contos é a presença de criaturas mágicas, como os "leprechauns", pequenos duendes associados à sorte e ao tesouro, e as "sídhe", que são espíritos das colinas, muitas vezes vistos como os antigos habitantes da terra. Os contos frequentemente exploram a interação entre os humanos e essas entidades, refletindo uma profunda crença na magia que permeava a vida cotidiana dos irlandeses. Os heróis das histórias, como Cú Chulainn e Fionn mac Cumhaill, são frequentemente retratados como figuras valentes que defendem sua terra e seu povo. Suas aventuras não apenas entretêm, mas também transmitem valores como coragem, lealdade e honra, fundamentais para a identidade irlandesa. Além disso, muitas narrativas abordam temas de amor e perda, como em "Deirdre de Lamentações", uma tragédia que fala sobre amor proibido e sacrifício.
O impacto desses contos na vida dos irlandeses é profundo, servindo como uma forma de preservação da cultura e da história. Eles são frequentemente contados em reuniões familiares, festivais e celebrações, ajudando a manter viva a conexão com as tradições ancestrais. Além disso, esses contos influenciaram a literatura e as artes irlandesas modernas, inspirando escritores como W.B. Yeats e James Joyce. A tradição da narrativa oral influenciou a forma como os escritores irlandeses estruturam suas histórias. Elementos como repetição, diálogo vibrante e personagens arquetípicos são comuns na literatura irlandesa. O uso de símbolos e metáforas, como a natureza e os seres mágicos, é uma característica marcante na obra de escritores como W.B. Yeats, que frequentemente buscava transmitir significados mais profundos através de seus poemas. A literatura contemporânea irlandesa, como a obra de Colm Tóibín e Anne Enright, frequentemente dialoga com essas tradições, mantendo viva a conexão com o passado.
As crenças expressas nos contos refletem uma visão de mundo onde o sobrenatural é parte integrante da realidade. A reverência pela natureza, a importância da comunidade e a conexão com os ancestrais são temas recorrentes que evidenciam a espiritualidade do povo irlandês. Assim, os contos tradicionais não são apenas histórias; são um espelho da alma da Irlanda, que continua a ressoar nas gerações atuais.
Fontes:
Contos Tradicionais da Irlanda. in Ulf Diederichs. Palácio dos Contos. Lisboa: Círculo de Leitores, maio de 1999. Disponível em http://guida.querido.net/contos/irlanda.htm#homem
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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