Era uma novidade aquela pensão. Damião pensa que, se algum dia desse pra escrever romances, teria material de sobra. Só a dona Amélia valia uma novela. E daquelas bem complicadas. Bem cheias de notícias freudianas. E de outras notícias igualmente vergonhosas. Damião não suporta devoção tamanha. Mulher solteirona, beirando os quarenta — que aprecia demais estar entre rapazes, e vive na igreja, rezando sem parar, e cuida de numerosas obras piedosas, eficientes ou inúteis — é mulher estragada pelos recalques e digna, por conseguinte, de piedade. É mulher que procura encher, com devoções exaltadas, o vazio de glândulas insatisfeitas.
Quando Damião diz isso ao Gilberto, o Gilberto acha que Damião é um sujeito substancialmente imoral. São pontos de vista. Damião é substancialmente sincero apenas.
Outro caso curioso: o Mendonça Neto. Curioso, mas triste. “Um psicótico sem lesão cerebral”, como diz Gilberto, que anda mastigando Maurice de Fleury, Achilies Delfas etc. Mendonça Neto supõe-se cidadão excepcional. Anda sempre às voltas com gente graúda. Raro o dia em que não pede ou recebe telefonemas. Ninguém sabe o que se fala do lado de lá da linha. O fato é que Mendonça Neto, a princípio, responde coisas banais. E, depois, solta afirmações terríveis: “Prometi escrever um artigo violento a respeito”. “Mas eu resistirei. Veremos quem tem mais prestígio”. “O ministro então me perguntou”. “Nós nos veremos hoje, na câmara, não é assim?”
Foi o Gilberto quem lhe descobriu a deixa. O rapaz, quando atende qualquer conhecido ao telefone, conversa sobre o assunto desejado. E logo que o interlocutor se despede e interrompe a ligação, Mendonça Neto em vez de dizer “até logo” resmunga qualquer coisa, e continua a falar sozinho contando proezas magníficas. Faz assim porque sabe que, da sala de jantar contígua, todos o escutam, obrigatoriamente.
Damião se lembra daquela célebre viagem a Minas. Mendonça Neto anunciou:
— Vou a Belo Horizonte numa viagem rápida de suprema gravidade para o meu jornal.
E ausentou-se, de verdade, por três dias. Mas, em vez de tomar o noturno, foi descansar na chácara do tio, no outro extremo da cidade...
Damião sorri quando se lembra disso. Tem pena do Mendoncinha. Como tem pena do seu Neves, que sofre de uma doença muito feia. Gilberto gosta de explicar:
— É doença de Parkinson, também chamada paralisia agitante. Caracteriza-se por uma rigidez muscular, fácies figé (como dizem os franceses) e tremblement, mas sem supressão da faculdade vocal.
E, quando os ouvintes são hóspedes recentes, ainda completa com ares de professor da Sorbonne:
— Foi outrora considerada como uma nevrose. Mas não o é. Provém de lesões microscópias dos núcleos cinzentos do cérebro. Quanto ao tratamento do tremblement (ele aprecia muito este termo), pode ser feito com bromidrato de geopolamina, por exemplo, quer em injeções subcutâneas, quer por via oral.
No entanto, o Neves continua a sofrer, bem em frente da sabedoria do acadêmico de medicina. Ainda bem que a dona Virgínia, esposa amorosíssima, não larga o doente. São casados desde muito tempo. Tiveram um filho que morreu com 22 anos (dona Virgínia fala no filho e chora).
As refeições é que são engraçadas. Damião quase não fala. Escuta, apenas, as peripécias do Mendoncinha, a ciência do Gilberto, o vozeirão do Cardoso. E observa o Neves tremendo, dona Virgínia o servindo, a piedosa Amélia comendo depressa pra alcançar a novena, a mocinha magra conversando com o irmão, o tenente curtindo ciúmes da mulher e dona Emerenciana dando ordens ao garçom.
No cérebro do Damião se repete a ideia:
— No dia em que eu quiser escrever um romance, tenho material de sobra.
Na sala da frente, as moças da casa recebem visita, com cerimônia ensinada, a capricho, pela mãe. Dona Emerenciana não quer, nem de longe, que Carmita e Guguti pareçam filhas de dona de pensão.
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Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 20/12/1936.
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938, foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras: Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.
Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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