O Circo (Alvaro Alves de Faria)
Ergueu a cabeça e contemplou o lugar onde tantas vezes se aprestara para os seus breves triunfos no trapézio. No dia seguinte, desarmariam o Circo - pensava; e na próxima cidade, quando o reerguessem, ele estaria longe. Nunca, porém, haveria de esquecer aquela frágil armação de lona e tabique, as cadeiras desconjuntadas, o quebra-luz sobre o espelho partido e o modo como os aplausos e a música chegavam ali.
Baixou os olhos, voltou a folhear a revista. Em algum ponto do corpo ou da alma, doía-lhe ver o lugar do qual se despedia e que lembrava, de certo modo, o aposento de um morto, semelhança esta que seria maior, não fosse a indiferença quase rancorosa que o rodeava; pois a despedida iminente, só ele sentia. Os colegas - o equilibrista, aqueles dois que conversavam em voz baixa, todos enfim - sabiam de sua história e não haviam preparado a mínima homenagem. Pelo contrário: fingiam desconhecer tudo, procuravam irritá-lo. Ainda há pouco, quando entrara no camarim dos homens, os que lá se encontravam tinham respondido friamente à saudação dele, como se fizessem um favor. Sentara-se então num banco, apanhara aquela velha revista e começara a folheá-la, sem interesse, para fugir ao contato dessas 'pessoas que já o haviam excluído de seu mundo e que, desde alguns dias, raramente lhe dirigiam a palavra - com uma simplicidade afetada, esforçando-se para dar a entender que sua ausência não seria sentida. Teriam inveja, talvez. Ou desprezo. Que lhe importava, porém? Não precisava delas.
*****
Entretanto, desejaria confessar-lhes que não era espontâneo aquele abandono; que a culpa era da vida ou, pelo menos, de Aline, para quem o nomadismo e o mistério do Circo, dois anos antes, quando fugira com ele e o desposara, conservavam a mesma auréola da infância. Infelizmente - diria, se quisessem escutá-lo e valesse a pena contar - as coisas que a imaginação da mulher tão imperfeitamente esboçara com o passar dos meses haviam perdido o encanto. Por discretas e hábeis alusões, evitando magoá-lo, dava a entender que as freqüentes viagens a cansavam e que o mistério desaparecera. Até que um dia, quando se ultimavam os preparativos para nova viagem, não fora mais possível conter-se: com o olhar distante, forçando tranqüilidade, fingindo ignorar a extrema importância de suas palavras, dissera haver recebido carta do pai e que este o convidara para assumir a gerência de uma loja.
- E eu quero tanto uma casa! - prosseguira. - Não tenho jeito para viver eternamente assim, fazendo e desfazendo malas. Acho que não tenho sangue. E estou cansada. De tudo. De ir de um lugar para outro, de ter medo. Tenho medo que lhe aconteça alguma coisa, que eu fique viúva. Principalmente agora, que vamos ter um filho. Acho que não tenho sangue.
Eram motivos justos, qualquer um reconheceria. E se não fossem, seria isso razão suficiente para que não a atendesse? Não tinha nenhuma importância a doçura com que se expressara?
Mesmo assim - era bom esclarecer isso - ele nem sequer respondera. A profissão alegrava-o, seus números eram apreciados. Logo passaria a ganhar mais. Quando começasse a cansar, a sentir que seus músculos já não eram os mesmos, aí então... E se morresse antes disso?
A pergunta o intrigara. Embora estivesse em forma, seguro de sua arte, não pudera deixar de impressionar-se ante a maneira simples como a esposa falara nisso. Para os que o censuravam, a menção não teria importância; não trabalhavam a mais de dez metros do solo, não zombavam de forças às quais é perigoso querer fugir. Ele, sim. Desafiava-as, desafio temerário. Como não pensar se haveria a mulher notado algum declínio em sua técnica? Ou alguma frieza do público?
Bem sabia quanto lhe custara convencer-se de que a observação não tinha valor, e como ficara surpreso, quando, cerca de um mês depois, ao saber que um seu colega fora acidentado, pusera-se a imaginar com desusada insistência como pudera acontecer aquilo. Não fazia um ano que o vira pela última vez, a mover-se no trapézio com a desenvoltura de quem pisava chão firme; por duas ou três vezes fingira falhar, isso fazia parte de seu número; e seria, talvez, o que o aniquilara: falseara um movimento qualquer e, ao procurar retificá-lo, era tarde demais. Não havia, portanto, que intranqüilizar-se. Não lhe aconteceria tal coisa.
No entanto, como prosseguir, se tivesse de narrar sua história? Como falar, sem parecer covarde, na incomum excitação que se apoderara dele, nas estranhas amarras que'.o haviam tolhido quando iniciara os exercícios na manhã seguinte? Como determinar a natureza daquela ameaça invisível, que parecia envolvê-lo?
Seria igualmente difícil relatar o que lhe sucedera, quando confessara a Aline a impossibilidade de praticar naquela manhã e ela indagara, quase com alegria:
- Você também está com medo?
Sem dar resposta, voltara colérico ao Circo, fizera as acrobacias do costume; no fim de tudo, ao se precipitar sobre a rede e, com um salto elástico, alcançar o solo, sentia-se livre - não sabia de que - mas livre outra vez.
Entretanto, o mesmo não acontecera à mulher. Um temor exaustivo, crescente, estragava seus nervos, devagar; ela começara a ter vertigens, pesadelos, a alimentar-se mal. Ia com freqüência ao Circo; olhava o trapézio, media a distância entre este e o chão e odiava aquelas barras e cordas que lhe disputavam o marido e que, quando menos se esperasse, poderiam traí-lo.
Tornara-se irritadiça, calada, com acessos de raiva e prostração, não ouvindo os argumentos de que tudo isso era nocivo a ambos: seu medo persistia, mais intenso, absorvente, mais forte, até que ele próprio se sentira incapaz de ajuizar qual dos dois tinha razão - e, mal grado sua resistência, terminara por se contagiar daquele temor.
*****
Agora, porém, que se aproximava o instante de sua última exibição, ele estava confiante. Chegara ao fim da aventura. Mais alguns minutos - e começaria outra vida, uma vida sólida, mais calma. Faria os desejos de Aline. Não iria ser vítima de um desastre naquela última noite.
Não era possível. Mas seria realmente outra vida?
Os homens que conversavam tinham saído. O equilibrista deu um último retoque na cabeleira ondulada, trocou um sinal com a mulher através do tabique, escutou sua resposta e seguiu-o. O camarim ficou deserto; e isso fez com que todas as coisas parecessem vivas e mais próximas. Essa impressão oprimiu-o. Ergueu-se, como que para afastá-la de si; atirou a revista sobre o banco no qual estivera sentado, olhou num gesto automático o relógio-pulseira e começou a vestir-se. Tinha que ser assim - pensava. Algum dia, teria que fazer aquilo pela última vez. Decerto, não esperava abandonar tão cedo o espaço e assentar os pés no chão, como qualquer um. Mas já que havia de ser...
Contemplou-se ao espelho. Considerou os membros bem desenvolvidos, o busto musculoso sob a camiseta alvíssima e lançou um olhar para o manto púrpura, com o qual entraria em cena e subiria ao trapézio, de onde o deixaria tombar. Apanhou-o, saiu do camarim. Através de um orifício existente na cortina que dava acesso ao picadeiro, olhou para o público, quase imóvel, a atenção presa no casal de equilibristas, enquanto a banda tocava em surdina.
Pouco depois, estrugiram palmas. Os equilibristas jogaram as bolas para o ar, fizeram uma reverência e retiraram-se correndo. Ele recuou para deixá-los passar; quando voltou a observar pelo orifício, dois palhaços macaqueavam-nos, diziam asneiras e trocavam tapas, enquanto um empregado preparava os trapézios. Quando terminassem, ele entraria. Faltava pouco; alguns segundos, apenas. O coração começou a bater, opresso por desalentada amargura. Tanto tempo, tantos anos de prática, de renúncias. E agora...
Dedos frios e trêmulos tocaram-no, prenderam seu braço. Não se voltou; sabia a quem pertenciam. Num segundo, recordou os finos cabelos de Aline à brisa da noite, a alegria sufocada, culposa, a ânsia de fugir, o'desejo de voltar, seu belo rosto ardente, as mãos frias... E se houvesse voltado? refletiu. Seu rosto ficaria guardado na lembrança, ela nunca me faria mal, não estaria me tirando esses... esses... Foi um erro, foi um erro que eu dei.
Engoliu um soluço. A mão afastou-se e novamente o prendeu, medrosa. Ele sabia que à altura de seu ombro os olhos fitavam-no (talvez houvesse qualquer coisa a dizer). Mas não queria vê-los, nem desejava escutá-la.
Com um aperto na garganta, viu o empresário dirigir-se ao centro do Circo e erguer os braços. Os rumores foram cessando, isolando-se. Fez-se um murmurante silêncio. A voz elevou-se, áspera, pausada, fazendo a apresentação. Por fim, os braços ergueram-se mais e logo caíram, amortecidos. A banda começou a tocar a "Ondas do Danúbio". Ele fechou os punhos, com um gesto rápido desvencilhou-se de Aline, atirou o manto sobre os ombros e dirigiu-se ao picadeiro. Queria acabar o mais depressa possível com aquilo.
A seus pés, junto à grande cortina, a mulher observava-o. Viu-o subir a escadinha, experimentar as cordas, contemplar a platéia, fazer um gesto característico com a cabeça e desfazer-se do manto, que se enfunou suavemente, revolveu-se como grande labareda e caiu. Olhou, instantes depois, para a massa que o aplaudia, enquanto passavam pela sua memória conturbadas histórias lidas em revistas, assistidas no cinema ou contadas por outrem, de domadores estraçalhados no último espetáculo, toureiros fracassados na última corrida... Isso podia acontecer com o esposo - temeu. Era o que toda aquela gente esperava. ~e ele morresse, se despencasse do alto, mergulharia num imenso grito de horror - mas também de prazer. E todos que ali estavam teriam, muitos anos depois, a estranha vaidade de contar que o haviam visto morrer.
Aplausos entusiásticos fizeram-na olhar para cima. Ele estava de pé, sobranceiro, olhando aquela multidão que logo mais o absorveria. A esse pensamento, ela estremeceu. Acabara de reconhecer, de forma vaga e, mesmo assim, inteligível, que também amava no marido a exceção que ele era. Dentro em pouco, quando este descesse do trapézio, estaria anulado; e ela sentia que o amaria menos por isso. Devia desistir de seu intento, permitir que ele cumprisse o seu destino. Aquela música, as luzes, os aplausos, a força que sustinha o corpo e que, por sua vez, dependia dele, deviam conter um fascínio que ela nunca poderia entender. Não era justo, pois, que cedesse aos próprios temores e desejos e arrebatasse ao esposo todas essas coisas de indeterminado e insubstituível valor.
Inesperadamente, os braços soltaram as cordas; o corpo arrancou para o chão e ficou pendente da barra, à qual se prendia pelos tornozelos. Era apenas uma fase de seu trabalho - ela bem o sabia. Sentiu porém violenta frieza no peito; e quando, retesando os músculos, ele se agarrou às cordas e ficou de pé outra vez, ela não mais se lembrava das considerações que interrompera. Desejava, apenas, com irreprimível intensidade, que o espetáculo findasse, quanto antes, para nunca repetir-se.
Ele tirara o lenço, enxugara-se e dera impulso ao trapézio para o número final. A música silenciara, para que se ouvisse outra vez o empresário, com sua entonação trêmula, fingir-se emocionado e tentar incutir nos espectadores a noção do perigo que presidiria o número a ser executado. Quando se calou, os tambores começaram a rufar. A oscilação do trapézio aumentara; ao chegar ao máximo, os tambores pararam, com um último estertor, como se fossem dotados de vida e repentina morte os aniquilasse. Ouvia-se agora, nitidamente, o ranger das cordas sobre o solene silêncio. Chegara o instante. Aline, ao termo de uma oscilação, viu-o projetar-se no espaço e girar um segundo - talvez menos - no ar e distender-se rápido, alva seta dirigida ao solo, com uma barra de metal que vinha ao seu encontro, lenta demais, para alcançá-lo.
Ele sentiu o contato que o restituía à segurança e escutou os aplausos que pareciam vir de muito longe, de um mundo perdido, enquanto se lembrava turvam ente que tudo estava acabado. Mas não! Por mais que o desejasse, não poderia descer naquele instante. Sentia um quase desesperado desejo de apegar-se à aquela glória e uma certeza obscura de que nada poderia vencê-lo. Era senhor de seus movimentos, de sua perícia, nunca o deteriam as forças que esperavam apanhá-lo. Não resistiu, nem procurou resistir à tentação de desafiá-las mais uma vez, zombar do inimigo, mostrar-se invencível. Tornou ao seu trapézio, deu lhe novo impulso e saltou.
Minutos depois, embora já nada tivesse a temer, a mulher, de pé a seu lado, não se animava a dirigir-lhe a palavra. Olhava a chuva. E como não trouxera agasalho, queixava-se intimamente por ter que ficar ali, presa daquele aguaceiro, sentindo que os minutos se tornavam cada vez mais insuportáveis e tristes, pois a recompensa de seu triunfo era apenas uma infinita consternação. Tinha o sereno e cruel sentimento de que o destruíra ou o mutilara, impressão que recrudescia quando escutava as gargalhadas do público, divertindo-se agora com a pontomima final. Era preciso ir embora - pensou; aquela indiferença feria-a e, sem dúvida, magoava-o igualmente: parecia dizer que seu pequeno reinado já começara a ser esquecido. Sim, era preciso ir embora. Aquelas gargalhadas doíam e a involuntária mudez que guardavam entre si aumentava a angústia.
- Seus saltos foram formidáveis - disse, fazendo um esforço. - Quem o viu, não esquecerá nunca.
Não houve resposta. Ela mordeu os lábios e, afastando-se um pouco, estendeu a mão. A chuva amainara.
- Vamos? - perguntou.
Ele continuou mudo, as mãos nos bolsos, o olhar imóvel, preso na noite. Ela tomou-lhe o braço e sentiu, nos músculos tão seus conhecidos, uma resistência que a assustou. Quis ignorar essa linguagem, tentou afastar-se com o homem. Ele permaneceu inabalável. E como se tudo fosse dito através daquele braço, que se fez mais rijo, teve umas contrações que faziam pensar em soluços e foi cedendo, tornando-se flácido, até repousar numa espécie de silêncio, ela compreendeu que a batalha terminara contra os seus desejos, quando já supunha ter a vitória nas mãos e que seria inútil insistir. Do âmago de sua cólera, do sentimento de derrota e quase de rejeição, ascendeu um inesperado orgulho. Calada, apoiou a cabeça no braço do marido, estendeu a mão para seu ombro, sentiu a sua força. Ele cerrou os olhos, atraiu-a a si e inclinou o rosto contra os seus cabelos.
Fontes:
SALES, Herberto (organizador). Antologia de Contos Brasileiros. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 39-46.
Imagem = http://campodetrigocomcorvos.zip.net
Baixou os olhos, voltou a folhear a revista. Em algum ponto do corpo ou da alma, doía-lhe ver o lugar do qual se despedia e que lembrava, de certo modo, o aposento de um morto, semelhança esta que seria maior, não fosse a indiferença quase rancorosa que o rodeava; pois a despedida iminente, só ele sentia. Os colegas - o equilibrista, aqueles dois que conversavam em voz baixa, todos enfim - sabiam de sua história e não haviam preparado a mínima homenagem. Pelo contrário: fingiam desconhecer tudo, procuravam irritá-lo. Ainda há pouco, quando entrara no camarim dos homens, os que lá se encontravam tinham respondido friamente à saudação dele, como se fizessem um favor. Sentara-se então num banco, apanhara aquela velha revista e começara a folheá-la, sem interesse, para fugir ao contato dessas 'pessoas que já o haviam excluído de seu mundo e que, desde alguns dias, raramente lhe dirigiam a palavra - com uma simplicidade afetada, esforçando-se para dar a entender que sua ausência não seria sentida. Teriam inveja, talvez. Ou desprezo. Que lhe importava, porém? Não precisava delas.
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Entretanto, desejaria confessar-lhes que não era espontâneo aquele abandono; que a culpa era da vida ou, pelo menos, de Aline, para quem o nomadismo e o mistério do Circo, dois anos antes, quando fugira com ele e o desposara, conservavam a mesma auréola da infância. Infelizmente - diria, se quisessem escutá-lo e valesse a pena contar - as coisas que a imaginação da mulher tão imperfeitamente esboçara com o passar dos meses haviam perdido o encanto. Por discretas e hábeis alusões, evitando magoá-lo, dava a entender que as freqüentes viagens a cansavam e que o mistério desaparecera. Até que um dia, quando se ultimavam os preparativos para nova viagem, não fora mais possível conter-se: com o olhar distante, forçando tranqüilidade, fingindo ignorar a extrema importância de suas palavras, dissera haver recebido carta do pai e que este o convidara para assumir a gerência de uma loja.
- E eu quero tanto uma casa! - prosseguira. - Não tenho jeito para viver eternamente assim, fazendo e desfazendo malas. Acho que não tenho sangue. E estou cansada. De tudo. De ir de um lugar para outro, de ter medo. Tenho medo que lhe aconteça alguma coisa, que eu fique viúva. Principalmente agora, que vamos ter um filho. Acho que não tenho sangue.
Eram motivos justos, qualquer um reconheceria. E se não fossem, seria isso razão suficiente para que não a atendesse? Não tinha nenhuma importância a doçura com que se expressara?
Mesmo assim - era bom esclarecer isso - ele nem sequer respondera. A profissão alegrava-o, seus números eram apreciados. Logo passaria a ganhar mais. Quando começasse a cansar, a sentir que seus músculos já não eram os mesmos, aí então... E se morresse antes disso?
A pergunta o intrigara. Embora estivesse em forma, seguro de sua arte, não pudera deixar de impressionar-se ante a maneira simples como a esposa falara nisso. Para os que o censuravam, a menção não teria importância; não trabalhavam a mais de dez metros do solo, não zombavam de forças às quais é perigoso querer fugir. Ele, sim. Desafiava-as, desafio temerário. Como não pensar se haveria a mulher notado algum declínio em sua técnica? Ou alguma frieza do público?
Bem sabia quanto lhe custara convencer-se de que a observação não tinha valor, e como ficara surpreso, quando, cerca de um mês depois, ao saber que um seu colega fora acidentado, pusera-se a imaginar com desusada insistência como pudera acontecer aquilo. Não fazia um ano que o vira pela última vez, a mover-se no trapézio com a desenvoltura de quem pisava chão firme; por duas ou três vezes fingira falhar, isso fazia parte de seu número; e seria, talvez, o que o aniquilara: falseara um movimento qualquer e, ao procurar retificá-lo, era tarde demais. Não havia, portanto, que intranqüilizar-se. Não lhe aconteceria tal coisa.
No entanto, como prosseguir, se tivesse de narrar sua história? Como falar, sem parecer covarde, na incomum excitação que se apoderara dele, nas estranhas amarras que'.o haviam tolhido quando iniciara os exercícios na manhã seguinte? Como determinar a natureza daquela ameaça invisível, que parecia envolvê-lo?
Seria igualmente difícil relatar o que lhe sucedera, quando confessara a Aline a impossibilidade de praticar naquela manhã e ela indagara, quase com alegria:
- Você também está com medo?
Sem dar resposta, voltara colérico ao Circo, fizera as acrobacias do costume; no fim de tudo, ao se precipitar sobre a rede e, com um salto elástico, alcançar o solo, sentia-se livre - não sabia de que - mas livre outra vez.
Entretanto, o mesmo não acontecera à mulher. Um temor exaustivo, crescente, estragava seus nervos, devagar; ela começara a ter vertigens, pesadelos, a alimentar-se mal. Ia com freqüência ao Circo; olhava o trapézio, media a distância entre este e o chão e odiava aquelas barras e cordas que lhe disputavam o marido e que, quando menos se esperasse, poderiam traí-lo.
Tornara-se irritadiça, calada, com acessos de raiva e prostração, não ouvindo os argumentos de que tudo isso era nocivo a ambos: seu medo persistia, mais intenso, absorvente, mais forte, até que ele próprio se sentira incapaz de ajuizar qual dos dois tinha razão - e, mal grado sua resistência, terminara por se contagiar daquele temor.
*****
Agora, porém, que se aproximava o instante de sua última exibição, ele estava confiante. Chegara ao fim da aventura. Mais alguns minutos - e começaria outra vida, uma vida sólida, mais calma. Faria os desejos de Aline. Não iria ser vítima de um desastre naquela última noite.
Não era possível. Mas seria realmente outra vida?
Os homens que conversavam tinham saído. O equilibrista deu um último retoque na cabeleira ondulada, trocou um sinal com a mulher através do tabique, escutou sua resposta e seguiu-o. O camarim ficou deserto; e isso fez com que todas as coisas parecessem vivas e mais próximas. Essa impressão oprimiu-o. Ergueu-se, como que para afastá-la de si; atirou a revista sobre o banco no qual estivera sentado, olhou num gesto automático o relógio-pulseira e começou a vestir-se. Tinha que ser assim - pensava. Algum dia, teria que fazer aquilo pela última vez. Decerto, não esperava abandonar tão cedo o espaço e assentar os pés no chão, como qualquer um. Mas já que havia de ser...
Contemplou-se ao espelho. Considerou os membros bem desenvolvidos, o busto musculoso sob a camiseta alvíssima e lançou um olhar para o manto púrpura, com o qual entraria em cena e subiria ao trapézio, de onde o deixaria tombar. Apanhou-o, saiu do camarim. Através de um orifício existente na cortina que dava acesso ao picadeiro, olhou para o público, quase imóvel, a atenção presa no casal de equilibristas, enquanto a banda tocava em surdina.
Pouco depois, estrugiram palmas. Os equilibristas jogaram as bolas para o ar, fizeram uma reverência e retiraram-se correndo. Ele recuou para deixá-los passar; quando voltou a observar pelo orifício, dois palhaços macaqueavam-nos, diziam asneiras e trocavam tapas, enquanto um empregado preparava os trapézios. Quando terminassem, ele entraria. Faltava pouco; alguns segundos, apenas. O coração começou a bater, opresso por desalentada amargura. Tanto tempo, tantos anos de prática, de renúncias. E agora...
Dedos frios e trêmulos tocaram-no, prenderam seu braço. Não se voltou; sabia a quem pertenciam. Num segundo, recordou os finos cabelos de Aline à brisa da noite, a alegria sufocada, culposa, a ânsia de fugir, o'desejo de voltar, seu belo rosto ardente, as mãos frias... E se houvesse voltado? refletiu. Seu rosto ficaria guardado na lembrança, ela nunca me faria mal, não estaria me tirando esses... esses... Foi um erro, foi um erro que eu dei.
Engoliu um soluço. A mão afastou-se e novamente o prendeu, medrosa. Ele sabia que à altura de seu ombro os olhos fitavam-no (talvez houvesse qualquer coisa a dizer). Mas não queria vê-los, nem desejava escutá-la.
Com um aperto na garganta, viu o empresário dirigir-se ao centro do Circo e erguer os braços. Os rumores foram cessando, isolando-se. Fez-se um murmurante silêncio. A voz elevou-se, áspera, pausada, fazendo a apresentação. Por fim, os braços ergueram-se mais e logo caíram, amortecidos. A banda começou a tocar a "Ondas do Danúbio". Ele fechou os punhos, com um gesto rápido desvencilhou-se de Aline, atirou o manto sobre os ombros e dirigiu-se ao picadeiro. Queria acabar o mais depressa possível com aquilo.
A seus pés, junto à grande cortina, a mulher observava-o. Viu-o subir a escadinha, experimentar as cordas, contemplar a platéia, fazer um gesto característico com a cabeça e desfazer-se do manto, que se enfunou suavemente, revolveu-se como grande labareda e caiu. Olhou, instantes depois, para a massa que o aplaudia, enquanto passavam pela sua memória conturbadas histórias lidas em revistas, assistidas no cinema ou contadas por outrem, de domadores estraçalhados no último espetáculo, toureiros fracassados na última corrida... Isso podia acontecer com o esposo - temeu. Era o que toda aquela gente esperava. ~e ele morresse, se despencasse do alto, mergulharia num imenso grito de horror - mas também de prazer. E todos que ali estavam teriam, muitos anos depois, a estranha vaidade de contar que o haviam visto morrer.
Aplausos entusiásticos fizeram-na olhar para cima. Ele estava de pé, sobranceiro, olhando aquela multidão que logo mais o absorveria. A esse pensamento, ela estremeceu. Acabara de reconhecer, de forma vaga e, mesmo assim, inteligível, que também amava no marido a exceção que ele era. Dentro em pouco, quando este descesse do trapézio, estaria anulado; e ela sentia que o amaria menos por isso. Devia desistir de seu intento, permitir que ele cumprisse o seu destino. Aquela música, as luzes, os aplausos, a força que sustinha o corpo e que, por sua vez, dependia dele, deviam conter um fascínio que ela nunca poderia entender. Não era justo, pois, que cedesse aos próprios temores e desejos e arrebatasse ao esposo todas essas coisas de indeterminado e insubstituível valor.
Inesperadamente, os braços soltaram as cordas; o corpo arrancou para o chão e ficou pendente da barra, à qual se prendia pelos tornozelos. Era apenas uma fase de seu trabalho - ela bem o sabia. Sentiu porém violenta frieza no peito; e quando, retesando os músculos, ele se agarrou às cordas e ficou de pé outra vez, ela não mais se lembrava das considerações que interrompera. Desejava, apenas, com irreprimível intensidade, que o espetáculo findasse, quanto antes, para nunca repetir-se.
Ele tirara o lenço, enxugara-se e dera impulso ao trapézio para o número final. A música silenciara, para que se ouvisse outra vez o empresário, com sua entonação trêmula, fingir-se emocionado e tentar incutir nos espectadores a noção do perigo que presidiria o número a ser executado. Quando se calou, os tambores começaram a rufar. A oscilação do trapézio aumentara; ao chegar ao máximo, os tambores pararam, com um último estertor, como se fossem dotados de vida e repentina morte os aniquilasse. Ouvia-se agora, nitidamente, o ranger das cordas sobre o solene silêncio. Chegara o instante. Aline, ao termo de uma oscilação, viu-o projetar-se no espaço e girar um segundo - talvez menos - no ar e distender-se rápido, alva seta dirigida ao solo, com uma barra de metal que vinha ao seu encontro, lenta demais, para alcançá-lo.
Ele sentiu o contato que o restituía à segurança e escutou os aplausos que pareciam vir de muito longe, de um mundo perdido, enquanto se lembrava turvam ente que tudo estava acabado. Mas não! Por mais que o desejasse, não poderia descer naquele instante. Sentia um quase desesperado desejo de apegar-se à aquela glória e uma certeza obscura de que nada poderia vencê-lo. Era senhor de seus movimentos, de sua perícia, nunca o deteriam as forças que esperavam apanhá-lo. Não resistiu, nem procurou resistir à tentação de desafiá-las mais uma vez, zombar do inimigo, mostrar-se invencível. Tornou ao seu trapézio, deu lhe novo impulso e saltou.
Minutos depois, embora já nada tivesse a temer, a mulher, de pé a seu lado, não se animava a dirigir-lhe a palavra. Olhava a chuva. E como não trouxera agasalho, queixava-se intimamente por ter que ficar ali, presa daquele aguaceiro, sentindo que os minutos se tornavam cada vez mais insuportáveis e tristes, pois a recompensa de seu triunfo era apenas uma infinita consternação. Tinha o sereno e cruel sentimento de que o destruíra ou o mutilara, impressão que recrudescia quando escutava as gargalhadas do público, divertindo-se agora com a pontomima final. Era preciso ir embora - pensou; aquela indiferença feria-a e, sem dúvida, magoava-o igualmente: parecia dizer que seu pequeno reinado já começara a ser esquecido. Sim, era preciso ir embora. Aquelas gargalhadas doíam e a involuntária mudez que guardavam entre si aumentava a angústia.
- Seus saltos foram formidáveis - disse, fazendo um esforço. - Quem o viu, não esquecerá nunca.
Não houve resposta. Ela mordeu os lábios e, afastando-se um pouco, estendeu a mão. A chuva amainara.
- Vamos? - perguntou.
Ele continuou mudo, as mãos nos bolsos, o olhar imóvel, preso na noite. Ela tomou-lhe o braço e sentiu, nos músculos tão seus conhecidos, uma resistência que a assustou. Quis ignorar essa linguagem, tentou afastar-se com o homem. Ele permaneceu inabalável. E como se tudo fosse dito através daquele braço, que se fez mais rijo, teve umas contrações que faziam pensar em soluços e foi cedendo, tornando-se flácido, até repousar numa espécie de silêncio, ela compreendeu que a batalha terminara contra os seus desejos, quando já supunha ter a vitória nas mãos e que seria inútil insistir. Do âmago de sua cólera, do sentimento de derrota e quase de rejeição, ascendeu um inesperado orgulho. Calada, apoiou a cabeça no braço do marido, estendeu a mão para seu ombro, sentiu a sua força. Ele cerrou os olhos, atraiu-a a si e inclinou o rosto contra os seus cabelos.
Fontes:
SALES, Herberto (organizador). Antologia de Contos Brasileiros. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 39-46.
Imagem = http://campodetrigocomcorvos.zip.net
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