quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Contos Populares do Tibete (O Transformador do Tempo)

Era uma vez um homem sábio. Viajava por toda a vasta terra do Tibete, e se detinha nos povoados e cidades onde quer que se requeressem seus serviços. Podia predizer o futuro, podia vaticinar a uma família os dias mais favoráveis para viajar ou comerciar, e podia, inclusive, mudar o tempo. O homem sábio era muito admirado e as pessoas lhe pagavam muito bem os seus serviços.

A julgar por seu aspecto, dever-se-ia desculpar a quem pensasse que era pobre. Os que o conheciam sabiam muito bem que não era assim. Ouvindo-o falar, podia-se tomá-lo facilmente por um homem de cabeça louca, mas aqueles que iam lhe pedir ajuda, tinham, sem dúvida, outra ideia. Esse homem estranho, com sua chuba andrajosa, um tamboril duplo e uma conca feita de um crânio pendurados no cinturão,1 não era nem pobre nem estúpido. Possuía, segundo diziam alguns, poderes mágicos. Ele usava estes poderes para o bem de todos os seres, mas — e isto era o essencial do caso — se alguém ousasse criar-lhe dificuldades, ele podia desviar seus poderes mágicos para outros usos, e acabar, assim, com qualquer oposição. Era conhecido por todo o mundo como o "transformador do tempo".

Se alguém tivesse podido ver, por acaso, o que continham a chuba e o surrão do transformador do tempo, teria descoberto muitos tesouros, pois, ao não ter residência fixa, ele viajava com todos os seus pertences de um povoado a outro. Vê-lo celebrar uma cerimônia era algo que ensinava muito, e o povo se congregava para observar quando o transformador do tempo parecia entrar num estado de transe, golpeando o seu tambor com ritmos sempre cambiantes e fazendo gestos com a mão livre2 para invocar o poder dos deuses. Sentava-se horas cantando em oração com uma voz grave e profunda que parecia provir das próprias entranhas da terra, pedindo aos deuses que derramassem seu poder e sua bênção sobre os que assistiam à cerimônia. O sorriso do transformador do tempo era como o sol. Todo o seu rosto se iluminava e seus olhos refletiam um calor que ninguém podia deixar de perceber.

Certo dia, depois de terminar uma cerimônia de bênçãos sobre uma família, o transformador do tempo apanhou os obséquios de comida que a família lhe ofereceu e se dispôs a dirigir-se para outro povoado situado a várias jornadas de marcha. Enquanto isso acontecia, o transformador do tempo era observado por uma lebre muito grande, a qual, com os olhos cheios de avidez e o estômago protestando de fome, contemplava o homem e a sua comida com inveja.

"Vou encontrar um modo — pensou — de roubar a comida desse trapaceiro esfarrapado". E, assim, com a cabeça ocupada em elaborar um plano, a lebre seguiu o transformador do tempo em sua viagem.

Não haviam chegado muito longe ainda, quando a lebre ouviu um bater de asas e sentiu umas delicadas patas pousarem-se nas suas costas. Era uma urraca.

— Olá, lebre, disse a urraca. Você tem podido achar comida?

— Não, respondeu a lebre, e estou fraca e faminta. A comida anda muito escassa.

— Sei disso muito bem, minha amiga — disse a urraca. Vamos viajar juntas; quem sabe, assim, a nossa sorte muda.

Dito isso, a urraca levantou vôo e seguiu a lebre em sua viagem.

No dia seguinte, a lebre e a urraca se encontraram com um raposo. A urraca se perturbou e ficou subindo e baixando pelo ar.

— Este raposo me está parecendo muito fraco — disse a urraca à lebre. Se ele morrer, poderemos nos dar um banquete de carne de raposo.

— Olá, raposo! — disse a lebre. Aonde você vai?

O raposo levantou a cabeça e falou assim à lebre:

— Tenho muita fome e meus filhos também.

Ando buscando comida.

— Venha conosco — disse a lebre —, se formos juntos a situação pode melhorar.

E assim, a lebre, a urraca e o raposo caminharam juntos, mas somente a lebre sabia que estavam seguindo os passos do transformador do tempo.

Por fim, chegaram a um bosque, cuja sombra das árvores foi um alívio para os três animais. A urraca se deteve para pegar algumas bagas de um arbusto, mas estas não foram do agrado da lebre e do raposo, que afastaram seus focinhos com repugnância.

Foi aí que, atrás de uma grande árvore, enxergaram a imponente figura de um lobo. Petrificados de terror, a lebre e o raposo permaneceram totalmente imóveis; quanto à urraca, guinchando atemorizada, levantou voo e foi pousar-se no ramo mais alto de uma árvore. O lobo, perturbado pelo barulho da urraca, virou-se e ficou diante do olhar assustado dos outros dois animais.

— Não se assustem — grunhiu o lobo —, sou demasiado velho para caçar.

A lebre avançou cautelosamente, pouco a pouco:

— Como você come se não pode caçar?, perguntou.

— Esse é o problema — respondeu o lobo —, pois tenho filhotes para alimentar. E baixando os olhos tristemente, acrescentou: Já não sou tão forte e veloz como era.

— Venha conosco — disse a lebre, com seus grandes olhos brilhando de emoção —, tenho um plano que pode ser de ajuda para todos nós.

— E qual é o plano? — perguntou a urraca, que tinha abandonado seu lugar seguro para participar da conversa.

— Vocês vão ver — disse a lebre. Na nossa frente está indo um transformador do tempo.

— Um transformador do tempo! — repetiram em coro os demais animais. E de que modo ele pode ser de ajuda para nós?

— O transformador do tempo não é um homem pobre — prosseguiu a lebre. Já o tenho visto guardar muita comida nas suas bolsas.

Ao ouvirem isto, os demais animais experimentaram um súbito interesse.

— Pois bem, o que eu sugiro é que você, amigo — disse indicando o raposo —, se deite numa vala e finja estar morto. A urraca fará ruído para atrair o transformador do tempo para você. Quando ele deixar suas coisas para ir ver você, o lobo e eu, que somos os mais fortes, lhe tiraremos as coisas e escaparemos.

— Mas, que acontecerá se ele me apanhar e me matar? — perguntou o raposo, que preferia não ser quem iria ficar na vala.

— Ele não vai apanhar — piou a urraca. Você pode saltar por cima das suas costas e escapar.

De má vontade, o raposo concordou com o plano:

— Mas, primeiro, disse, temos que alcançar o transformador do tempo, e nenhum de nós está podendo ir tão depressa, devido à nossa fraqueza por falta de comida.

A lebre esteve um momento pensativa e logo disse:

— O transformador do tempo se dirige a um povoado próximo. Pois bem, se formos pelo rio, o alcançaremos antes que ele chegue ali.

Os animais se dirigiram ao rio e, por sorte, encontram um grande tronco que boiava perto da margem. A lebre, o raposo e o lobo subiram ao tronco e logo deslizaram pela água em velocidade crescente, enquanto a urraca voava sobre suas cabeças, pronta para avisá-los quando divisasse o transformador do tempo.

Quando a urraca viu que já haviam passado na frente do transformador do tempo um trecho considerável, fez sinal aos animais para que descessem à terra. Isto não foi nada fácil, pois se viram obrigados a abandonai" o tronco e a alcançar, nadando à margem — uma experiência da qual a lebre poderia muito bem ter-se poupado.

Tal como a lebre havia planejado, o transformador do tempo, ao ouvir os gritos da urraca e ao vê-la voando sobre uma vala, deixou suas coisas e se aproximou para investigar. Quando viu o raposo esticado no fundo da vala, pensou que devia estar morto. "Tem um bonito pelo — pensou o transformador do tempo —, vou esfolá-lo". Mas, justo no instante em que introduzia a mão em sua chuba para pegar a faca, o raposo, incapaz de permanecer quieto um minuto mais, saltou fora da vala e escapou.

E, quando o transformador do tempo, surpreso, se virou para ver o raposo fugindo, pôde ver, também, rapidamente, o lobo e a lebre que desapareciam ao longe, levando as coisas dele, e eram seguidos nisso pelo raposo e pela urraca, afogueados.

Quando os animais se sentiram seguros, detive-ram-se para repartir os pertencentes do transformador do tempo. A astuta lebre se encarregou dos trâmites. À urraca deu o chapéu do transformador do tempo. Ao lobo deu as botas; e ao raposo, o grande tambor ritual. Para si mesma, deu-se toda a comida.

Os animais ficaram tão contentes com suas novas posses, que nem perceberam que haviam sido enganados pela astuta lebre, e todos partiram alegres, cada qual segurando firmemente seus mal-ad-quiridos lucros.

Mas, nem tudo saiu bem para os animais. O lobo, com suas botas novas, saiu para caçar ovelhas. Mas, impossibilitado por seu pesado calçado de correr ligeiro, tropeçou, e quase acaba morto ao ser pisoteado pelas ovelhas.

A urraca, com o enorme chapéu que quase lhe cobria o corpo inteiro, sentou-se embaixo de um iaque. Este lhe soltou um "bolo" enorme em cima do chapéu, apanhando a urraca e causando-lhe quase a morte por asfixia.

O raposo foi para a sua casa a reunir-se com a família, que esperava ansiosamente o seu regresso. Sua mulher e seus filhos se encontravam numa ponte que passava por cima de um impetuoso rio, esperando para dar-lhe boas-vindas. Ao aproximar-se da ponte e ver a família esperando-o ali, o raposo se pôs a golpear o seu tambor ritual tão fortemente, que seus filhos, assustados, se atiraram ao rio e se afogaram.

  Pouco tempo depois, todos os animais voltaram a se reunir. O raposo, a urraca e o lobo contaram seus infortúnios, mas a lebre permanecia sentada em silêncio, à sombra de uma grande árvore. Depois que os animais contaram suas histórias, todos eles se voltaram com ansiedade para a lebre. Esta falou assim:

— Amigos meus, cometemos um erro grave. O transformador do tempo tem poderes mágicos e, ao roubarmos seus pertences, atraímos a desgraça sobre nossas próprias cabeças. Vocês todos pensaram que saíram prejudicados, mas, olhem só para mim. E, dizendo isto, a lebre saiu da sombra da árvore que a havia mantido oculta até então. Também eu saí prejudicada, disse, pois. enquanto comia a comida do transformador do tempo, parti o lábio.

Os animais ficaram sem fala ao verem a rachadura no lábio da lebre, que chegava até o nariz. E a lebre continuou:

— Assim, todos os seres, humanos ou animais, quando me virem, saberão que fazer o mal somente traz sofrimentos para aquele que o faz.

E até hoje, passadas tantas gerações, a lebre leva ainda no lábio o sinal herdado de sua astuta antepassada.
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Notas
1. Trata-se, respectivamente, do damaru (palavra da mesma origem que "tambor", e o kapâla (aparentada com o grego kephalé, "cabeça"). O primeiro é um objeto ritual, que reproduz o "som da imortalidade". O kapâla (tibetano, thod pá) é o crânio de libações que contém a água da vida, objeto simbólico que vemos, na iconografia tibetana, acompanhando figuras como Padmasambhava ou Naropa, o mestre de Marpa, ou divindades terroríficas como Mahâkâla ou Cakra-samvara. 2. Trata-se de mudrás (tibetano, phyag-rgya), gestos rituais executados com as mãos. O sentido literal desta palavra é o de "carimbo", e, por analogia, designa uma atitude interior conformada a uma realidade arquetípica. Encontramos estes gestos nas íóguicas, na dança e na iconografia hindus, cuja essência, comum às três, foi "transvasada" ao budismo, onde encontrou uma plasmação quase sacramentai na imagem de Buda.

Fonte:
Jayang Rinpoche. Contos Populares do Tibete. (Tradução: Lenis E. Gemignani de Almeida).

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