sábado, 16 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVIII

4.2 Releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de Beaumont

What happened to the mother
who looked at the snow? I don’t say
(you don’t know this grammar yet)
how mothers and stepmothers change,
looking, and being looked at.
It takes a long time...
Sinister twinkling animals,
Hollywood ikons, modern Greek style:
a basket of images, poison at work
in the woodland no Cretan child
ever sees. Closer to home
I’ve seen a loved girl turn feral.
These pages lurk in the mind,
speak of your sister,
her mother, and me. Perhaps,
PADEL apud WARNER, 1999, p. 233.


O que aconteceu à mãe/ que olhava para a neve? Não digo/ (você ainda não sabe essa gramática)/ como mães e madrastas mudam, // olhando e sendo olhadas./ Leva muito tempo.../ Animais sinistros e cintilantes,/ Ícones hollywoodianos, estilo grego moderno:// uma cesta de imagens, veneno em ação/ no bosque que nenhuma criança cretense/ jamais vê. Mais perto de casa/ Vi uma menina amada tornar-se feroz.// Essas páginas escondem-se na mente,/ falam de sua irmã,/ de sua mãe e de mim. Talvez,/ já, de você.

 Segundo Sylvia Paixão (1997), “quando se olha a cultura e a literatura sob o ponto de vista feminino, nada mais pode continuar igual a antes: nem a sociedade, nem a arte, nem a história” (p.72).

Na verdade, o que a escritura com identidade feminina realizou nestas últimas décadas foi um trabalho árduo de reelaboração de uma estrutura social decadente, não mais representativa do contexto presente. Desse modo, o que se observa é que a velha estrutura asfixiante e machista perdeu prazo de validade diante da evolução feminina e feminista.

Consequentemente, ao se reestruturar a sociedade, compõe-se também uma nova história que passa a ser escrita assim como a arte que absorve os novos ares, renovando-se.

Tendo-se como referência que as primeiras versões dos contos de fadas foram redigidas por homens, visando atender aspirações contextuais daquele tempo próprio, atualmente, tanto re-escrituras quanto paródias existem e se tornam necessárias, uma vez que essas se    adaptam a uma realidade    distinta, principalmente porque os valores sociais, morais, intelectuais já não são mais os mesmos, comparados a tempos longínquos. Dwight Macdonald, citado por Linda Hutcheon, tão bem argumentou, quando definiu a paródia, afirmando que “somos exploradores que olhamos para o passado e a paródia é a expressão central do nosso tempo” (mcDONALD apud HUTCHEON, 1989, p.11).

De acordo com o exposto, torna-se acertado afirmar que a paródia é a nova forma de escrever o já existente, com um diferencial, o irônico, que objetiva mostrar que os tempos mudaram e os antigos escritos não mais correspondem ao modo de viver, pensar e agir da humanidade. Segundo Linda Hutcheon:
 
A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no “vaivém” intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M. Forster, entre cumplicidade e distanciamento. (HUTCHEON, 1989, p. 48, grifos da autora)
                     
Alba Olmi (2006) acrescenta que, na atualidade, por exemplo, “o conto tradicional é re-contextualizado e re-adaptado às novas exigências sociais femininas, para tornar-se a expressão de um outro ponto de vista, longe da mitificação da imagem da mulher, típica da cultura patriarcal” (OLMI, 2006, p. 10).

Esta breve exposição a respeito da paródia se fez necessária para que se passasse a analisar alguns contos tradicionais do passado, re-escritos por Angela Carter.
                                                                                  
Evidentemente que, como já foi mencionado no capítulo anterior, escritores como Monteiro Lobato colaboraram para a desmistificação da inferioridade feminina, mas, apesar de sua importante contribuição à literatura, ainda faltava a sensibilidade, o sexto sentido, a visão de mulheres inseridas no processo de composição da nova identidade da figura feminina. Dessa forma, contos infanto– juvenis foram revistos na contemporaneidade, como A Bela e a Fera, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1757), uma vez que nesse se observou a personagem Bela comparando-a à mulher contemporânea de Angela Carter. Além dessas escritoras, verificar-se-á o estudo realizado pelas teóricas Maria Tatar e Marina Warner a respeito dos contos de fadas. E, ainda, os tipos de discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão vistos de acordo com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).

No entanto, o estudo da postura da figura feminina deter-se-á na obra O quarto do Barba-Azul, de Angela Carter, sendo nesta obra selecionados os contos O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do Tigre e A garota de neve para serem    analisados, tendo, como contraponto, os textos-origem de Perrault e de Beaumont.

Angela Olive Stalker nasceu em 7 de maio de 1940 e assumiu o sobrenome Carter após casar-se com Paul Carter, em 1960. A sua vida profissional dividiu-se entre ser professora universitária e escritora, sendo que inúmeras obras ela escreveu, consagrando-se como escritora, inclusive recebendo premiações por seu segundo romance The magic toyshop (1967) e pelo terceiro também Several perceptions (1968). De acordo com Vivian Wyler (em nota de prefácio), além desses dois romances,    Carter    escreveu ainda o romance Shadow dance (1966), o romance surrealista Love (1969-72),    a coletânea Fireworks: nine profane pieces (1974), o romance A paixão da Nova Eva (1977), em 1979 o ensaio The Sadeian woman e a coletânea de contos O quarto do Barba-Azul.    Carter publica ainda Noites no circo (1984), sendo premiada por esta obra, a coletânea Black Vênus (1985), Wise Children (1991) e, em 1993, acontece a publicação póstuma dos contos de American ghosts and old world wonders, pois ela vem a falecer de câncer em 1992.

Ainda segundo Wyler, Angela Carter começou a sua carreira literária na década de 60, “quando se especializou em literatura inglesa do período medieval na Universidade de Bristol” (1999, p. x) e o que realmente a destacou foi a sua forma original de compor suas obras, ou seja, a releitura de contos de fadas já há muito conhecidos,    narrados pela boca do povo. Visto que Carter possuía um gosto literário bastante eclético, parece que ela absorveu o que de melhor leu em diversos períodos da história para constituir suas obras.

Seguindo a receita que ela dá [...] para os contos de fadas, “feitos de pedaços de histórias perdidas, misturadas com outras e adaptadas pessoalmente pelo contador ao gosto da platéia”, ela foi fazendo acréscimos a esse caldo básico, em que giravam Chaucer e um certo tom farsesco. Um pouco de tudo. Simbolismo francês, leituras de Barthes e Foucault, surrealistas, filmes de Godard e Buñuel, Mary Shelley, Swift, Blake (favorito, desde a infância), Poe, Lewis Carroll e os filmes de horror B, da Hammer. (WYLER, 1999, p. x-xi)
                     
É bem verdade que Angela Carter colocou em prática a teoria parodística ao escrever O quarto do Barba-Azul, uma vez que ela redistribuiu ironicamente os papéis dos personagens em seus contos, visto que, histórica e tradicionalmente, esses eram acostumados a assumirem funções determinadas de acordo com preceitos sociais masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon e A Noiva do Tigre e A garota de neve; Carter recriou textos célebres, como os contos de fadas e acrescentou aos mesmos caráter crítico e satírico, narrando-os de acordo com a visão do que realmente interessa ao universo feminino. Processo esse que se constitui como um novo percurso realizado a partir do que já existe, ou seja, do hipotexto.

Além de Carter reescrever os contos de fadas, de acordo com a visão feminina, ela também mostrou-se diferente ao descartar a frase introdutória dos contos “era uma vez”, apresentando uma recente proposta narrativa que não consagra a cópia de um parágrafo introdutório típico da construção masculina.

Em O quarto do Barba-Azul (1999), por exemplo, os intertextos também são perceptíveis em inúmeros momentos, como quando o personagem Barba-Azul decide afastar-se temporariamente do castelo, devido a negócios e entrega o molho de chaves à sua atual esposa, ressalvando que uma das chaves não deveria ser usada. Os textos de Perrault, Barba-Azul (1999), e de Carter(1999) se cruzam e, em um certo ponto, as semelhanças se mostram mais acentuadas entre ambos. Inclusive, a inglesa Carter cita a França como localização do castelo de Barba-Azul em seu conto, origem do escritor Perrault e da publicação do conto.

- Esta é a chave do armário da louça... Não ria, querida; nele se encontra um resgate de rei em Sévres e de rainha em Limoges. E a chave do quarto trancado onde se guardam cinco gerações de prata.
[...] estava quase na hora de partir. Só lhe faltava falar de uma chave, e ele hesitou um pouco; por um instante pensei que a fosse separar para pôr nobolso e levar.
- Que chave é essa? - perguntei, uma vez que a troça que tinha feito de mim me imbuíra de certa ousadia. - A chave do seu coração! Dê-me! [...]
- Oh! - disse ele. - Não é a chave do meu coração. É antes a chave do meu inferno.
[...] Trata-se apenas da chave de um quartinho na base da torre ocidental, atrás da destilaria, no fundo de um corredorzinho escuro cheio de horríveis teias de aranha que lhe ficariam grudadas no cabelo e a assustariam se você se aventurasse a ir lá. Ah! E iria achar o quartinho muito sem graça!
Mas tem de me prometer, se me ama de verdade, manter-se afastada dele. [...] (CARTER, 1999, p. 26-27)

“Aqui estão as chaves dos dois grandes armários”, disse ele, “e estas aqui são as das baixelas de ouro e de prata, que não são usadas todos os dias [...]. Quanto a esta chavezinha aqui, é a do quarto que fica no final da grande galeria do andar inferior. Você pode abrir tudo, ir a toda parte, mas nesse pequeno cômodo está proibida de entrar. E é uma proibição tão rigorosa que, se você se aventurar a abri-lo, não há nada que não deva esperar da minha cólera”. (PERRAULT, 1999, p. 190)
O interessante, no estilo de Carter, é que ela usa as sutilezas para rememorar contextos pertencentes ao passado, como ao referir-se à chave do armário da louça que pertencera ao rei, em Sévres, e à rainha, em Limoges, uma vez que essas louças são delicadíssimas em sua estrutura. O irônico é justamente isso, o grotesco Barba-Azul em contraste com tais preciosidades. Inegavelmente, a sutileza é uma característica própria do sexo feminino, e o discurso de Carter se choca com o discurso autoritário, direto, incontestável de Perrault, perceptível nos exemplos acima.

Em outro momento, quando a personagem-protagonista se detém em observar o quarto dos horrores, deixa cair de sua mão a chave da porta, sendo que esta fica manchada de sangue (*) que escorre no local.

Com os dedos trêmulos, abri a frente do caixão vertical, que tinha a face esculpida num ricto de dor. Depois, subjugada, deixei cair a chave que ainda retinha na outra mão. Caiu no charco que seu sangue formava. (CARTER, 1999, p. 40)

[...] Após alguns instantes começou a ver que o chão estava todo coberto de sangue coagulado, no qual se refletiam os corpos de várias mulheres mortas, ao longo das paredes. Eram todas as mulheres que Barba-Azul havia desposado e às quais havia cortado o pescoço, uma após a outra. Ela pensou morrer de pavor, e a chave do quarto, que tinha acabado de tirar da fechadura, cai-lhe da mão. (PERRAULT, 1999, p. 193-4)
                     
O diferencial no discurso de Carter pode ser percebido na voz da personagem, que narra a situação conflitante em que está envolvida e, ao mesmo tempo, protagoniza a cena. Já no discurso de Perrault, o narrador conta os fatos acontecidos, como se fosse um observador, alheio à situação em que a esposa do Barba-Azul está enfrentando.

Ainda em outra situação, quando o Barba-Azul de Carter chama sua esposa para ser decapitada, instantaneamente vem à tona o conto de Perrault, Barba-Azul, uma vez que até os títulos (**) das obras se assemelham. No entanto, a escritora criou dois recursos ainda inexistentes para o escritor francês, ou seja, o uso do telefone, uma vez que o chamamento para a execução da protagonista veio através de uma ordem pelo telefone, além do telégrafo que o ogro utilizou como justificativa, ou melhor, o recebimento de uma correspondência telegráfica permitiu o retorno do mesmo antecipadamente.
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(*) Segundo Carter e Perrault a chave é encantada (detalhe esse que caracteriza os contos como de fadas), sendo assim o sangue impregnado na mesma mostra que a violação da regra da obediência não foi cumprida.
(**) No conto Alice-lobo, segundo Vivian Wyler, Carter fez “uma homenagem a Lewis Carrol” (1999, p. xviii), talvez seja através da adoção do nome de Alice para a menina-lobo, personagem-protagonista, como também para o título da obra. Além disso, neste mesmo conto, quando Alice descobre o espelho e o investiga de tal forma que acaba se ferindo nele (p. 224), pode ser só coincidência ou talvez a autora quisesse se referir à obra Alice através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872), de Lewis Carrol.
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continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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