quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XVI

Por sua vez, a menina Lúcia, ou Narizinho arrebitado, como assim foi apelidada,    também adormeceu    e    sonhou    com    um    país    encantado    e, coincidentemente, foi levada desse país, ou seja, o Reino das Águas Claras, até o Sítio do Pica-pau Amarelo, embalada por fortes ventos.

Em 1920, Lobato escreve o conto infantil A história do peixinho que morreu afogado. Em 1921, o autor re-elabora e amplia esse mesmo conto, acrescendo nele uma série de aventuras vividas pela menina Lúcia no Sítio do Pica-pau Amarelo, só que desta vez publica-o sob o título de Narizinho arrebitado.

Narizinho vive no sítio de Dona Benta, sua avó e, de certa forma, este é um lugar que, de acordo com a imaginação da menina, torna-se encantado.

Lúcia, assim como as demais personagens já vistas, desempenha papéis que se distanciam da personagem até então conhecida, como Branca de neve, Cinderela ou Bela adormecida, pois a menina não espera passivamente os fatos acontecerem, como as demais que sofriam ações predestinadas por madrastas, fadas ou bruxas.

A menina Lúcia mostra-se possuidora de um espírito consciente, crítico e voltado para o social, pois questiona possíveis situações que não poderiam ser justas ou que poderiam causar transtornos não somente aos habitantes do sítio do Pica-pau Amarelo, mas também ao Reino das Águas Claras.

Enquanto menina e vivendo em um sítio, muitas ações, historicamente atribuídas somente a meninos, eram praticadas por ela, como subir em árvores, brincar com Pedrinho e direcionar as regras do jogo, bem como dançar, correr, andar livremente em ambientes externos e mostrar-se feliz ou infeliz se algo não a agradasse. Além disso, Lúcia possuía imaginação muito fértil, por isso não era levada muito a sério por Dona Benta e Tia Nastácia.

Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças”. Mas depois que a menina fez a boneca falar, Dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra: –  Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.
                                                                                   
- Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido...Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça [...] (LOBATO, 1990, p. 33-34)                     
Narizinho arrebitado, como princesa do Reino das Águas Claras, é a imagem de menina-princesa que prenuncia novos tempos para a mulher, enquanto personagem e membro social atuante. Ela é uma menina simples, cheia de viva e que de princesa só possui o título, pois não apresenta nada em sua personalidade e postura que possa lembrar a alta nobreza.

Percebe-se, ao analisar-se Narizinho arrebitado, que não somente Lúcia assume a função de protagonista nas histórias, mas também Emília, que é a personagem que cresce, evoluindo gradativamente na narrativa do autor:

[...] Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela, não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira. (LOBATO, 1990, p. 6)                     
Emília, de mera boneca de pano, pertencente à menina Lúcia, passa a ser falante, com o auxílio do Doutor Caramujo, tornando-se audaz, independente e questionadora, representando os anseios a respeito da vida, do homem e do mundo, vivenciados inclusive pelo próprio autor.

Luciana Sandroni, conferindo à boneca Emília sua importância nas obras de Lobato, escreve o livro Minhas memórias de Lobato, sendo que a boneca narra a sua história junto ao autor, porém de seu ponto de vista feminino.

-Tive uma idéia mirabolante! Vou escrever minhas memórias.
Dona Benta não entendeu nada. Será que Emília estava sofrendo de amnésia e tinha esquecido que já tinha escrito as Memórias de Emília?
- Mas, Emília, você já escreveu suas memórias. Não me diga que já tem um segundo tomo!
- Não, é que eu tive a idéia de escrever as memórias do Monteiro Lobato, e é claro que metade do livro vai ser sobre mim, já que eu sou a personagem mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar “Eu e Lobato”. (SANDRONI, 1997, p. 5)

É importante salientar que, até mesmo quanto à constituição familiar, os três escritores citados inovaram, uma vez que as três meninas (Alice, Dorothy e Lúcia) pertencentes às narrativas em questão, não moravam com o pai e a mãe, o que era incomum em uma família tradicional naquela época.

No caso de Alice, menciona-se a presença de sua irmã. Dorothy, menina órfã, morava no Kansas com os tios.    Narizinho estava no sítio com a avó, tia Nastácia, e o primo Pedrinho.

Parece que a situação de as meninas estarem longe dos pais (vivos ou mortos) possibilita que a imaginação das mesmas flua naturalmente de forma que alcance terras distantes, uma vez que se eles estivessem presentes poderiam impor-lhes regras e restrições.

Além de Lúcia ser uma personagem bastante expressiva, Lobato concedeu também à boneca, características semelhantes. Com certeza, as personagens femininas criadas por Carrol, Baum e Lobato “roubaram” as cenas nas histórias, ou seja, brilharam por se mostrarem simples e autênticas. Na verdade, esses autores também se mostraram autênticos, abordando cenários e temáticas em suas histórias que se distanciavam do já conhecido, como “carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna”, como mencionou Câmara Cascudo.

Além disso, eles não colocaram um personagem masculino em posição de destaque em suas narrativas, o que indicaria conformidade com os valores patriarcais e com as estruturas sociais vigentes, mas escolheram personagens femininas para se tornarem sujeitos da ação, desfazendo-se do estereótipo de meros objetos-femininos propagados em um passado ainda recente, sendo que nesse a participação feminina ainda era considerada insignificante. Com certeza, a escassez ou a ausência de figuras masculinas foi um detalhe importante utilizado pelos escritores para que não se evidenciassem os convencionalismos desse sistema.

Os referidos escritores contribuíram para que a voz feminina fosse resgatada. Esse novo enfoque dado à figura feminina ou, quem sabe, esta nova prática discursiva em que as meninas pensam, falam e agem, contribuem para “desmascarar a ‘universalidade’ do discurso crítico tradicional da cultura dominante” (NAVARRO, 1997, p.49, grifo da autora), uma vez que a autoria das ações correspondiam, em geral, única e exclusivamente, a personagens masculinos.

Essas personagens representam os anseios femininos, visto que as mulheres queriam simplesmente viver de forma natural, e não acuadas em um submundo servil, somente moldando-se a convencionalismos e a padrões sociais que não coincidiam    com    seus    gostos,    desejos,    atitudes.    Assim    sendo,    desejavam compartilhar um mundo em igualdade de papéis, independendo do sexo a que pertencessem.

Como foi visto, Carrol, Baum e Lobato inovaram na criação de suas personagens femininas, distanciando-se da lógica comum da época, concedendo a uma menina atitudes e ações consideradas próprias do sexo masculino, bem como se utilizaram da magia e do mundo fantástico, talvez para mostrar ou alertar que mudanças eram necessárias em relação à concepção da personagem feminina, enquanto figura decisiva e atuante no cenário literário.

Quem sabe, futuramente, em plano fictício, essas três personagens (Alice, Dorothy e Lúcia) já crescidas possam vir a se parecer com as meninas más de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría ou, quem sabe, com as personagens femininas de Margaret Drabble, ou seja, imagens de mulheres que realmente sabem o que querem, construindo suas vidas, conforme suas vontades, mas com um detalhe que as torna realmente especiais, o interesse pelas causas sociais e a vontade incontrolável de consertar o mundo. Em consequência dessas atitudes e anseios, talvez, Alice, Dorothy e Lúcia possam ser consideradas os embriões das personagens criadas por Atwood, Etxebarría e Drabble.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

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