quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte X


OS MORTOS

Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n’alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Dão a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.

FLORIPES

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.

O CEGO DO HARMONIUM

Esse cego do harmonium me atormenta
E atormentando me seduz, fascina.
A minh’alma para ele vai sedenta
Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
Como um luar de mórbida neblina.
O harmonium geme certa queixa lenta,
Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos
Mortos em flor, dois luminosos beijos
Fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário
Que prende-me a esse cego solitário,
De olhos aflitos como vãos gemidos!

HORAS DE SOMBRA

Horas de sombra, de silêncio amigo
Quando há em tudo o encanto da humildade
E que o anjo branco e belo da saudade
Roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo
De gozar, de sentir com liberdade...
Horas da asa imortal da Eternidade
Aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,
Dos segredos sagrados da existência,
De sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,
Quando dos céus desce, profundo e vasto,
O repouso das almas infinitas.

ALELUIA! ALELUIA!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes
Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,
Baixas-te à terra, ao mundanal convívio...
Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,
Que me tragas a flor de um doce alívio
Aos báratros, às brenhas, ao declívio
Deste caminho de ânsias e ataúdes...

Já que desceste das regiões celestes,
Nesse clarão flamívomo das vestes,
Através dos troféus da Eternidade

Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança
Para a minh’alma que de angústias cansa,
Errando pelos claustros da Saudade!

ROSA NEGRA

Nervosa Flor, carnívora, suprema,
Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,
Nos labirintos da tu’alma fria
Deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
Do Inferno a porta em trágica ironia,
Eu vejo, com terrível agonia,
Sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso
Que explode, porejando, caudaloso,
Das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,
Dá-me essa boca acídula, rasgada,
Que vale mais que os corações proibidos!

VOZINHA

Velha, velhinha, da doçura boa
De uma pomba nevada, etérea, mansa.
Alma que se ilumina e se balança
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,
Carinho, amor, meiguice que não cansa,
Coração nobre sempre como a lança
Que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,
Pão ázimo das Páscoas afetivas,
Simples, tranqüila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,
Na alvura doce de uma luz algente,
Como que morta de uma morte branca.

NO EGITO

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!

OCASOS

Morrem no Azul saudades infinitas
Mistérios e segredos inefáveis...
Ah! Vagas ilusões imponderáveis,
Esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto
Quando das almas num relevo santo
Fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os bracos brancos e tentaculosos
Da Morte, frios, álgidos, nervosos,
Abrem-se pare mim torporizados.

REPOUSO

A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto
O seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.

REQUIESCAT...

Grande, grande Ilusão morta no espaço,
Perdida nos abismos da memória,
Dorme tranqüila no esplendor da glória,
Longe das amarguras do cansaço...

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
Sonho da noite tropical e flórea,
Quando as visões da névoa transitória
Penetram na alma, num lascivo abraço...

Ó Ilusão! Estranha caravana
de águias, soberbas, de cabeça ufana,
De asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
Dorme nos astros infinitamente...

DOCE ABISMO

Coração, coração! a suavidade,
Toda a doçura do teu nome santo
É como um cálix de falerno e pranto,
De sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
Como um terno crepúsculo d’encanto,
Como uma sombra de celeste manto,
Um soluço subindo a Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,
Lividamente morto, desolado,
Nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,
Sinfonia gemente, dolorosa,
Acerba e melancólica doçura.

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Carlos Lúcio Gontijo (Orfandade)


Mãe, continuas o mesmo rio
Insinuas em mim amor divino
Eu, pequenino afluente
Contente sigo pro teu leito
Em busca de teus mimos
De repente não te acho
Sinto-me riacho em deserto
Não sabia tristeza mais triste
Tu partiste para o grande mar
Misturaste às luzes do infinito
Não estás, mas estás em tudo
Meus olhos ardem na procura
Percorrem em loucura as folhas da vida
Como se orvalho fossem, mantêm o brilho
Mesmo sob a certeza da evaporação
Na minha pele morena teu Mato Grosso
Filho, tu ainda tens mãe
É o estribilho da canção que ouço
Ergo-me com as forças de “coluna prestes”
Faço em mim a revolução de que falavas
Então eu creio, respiro profundamente
No ar cheiro de seio que me alimenta
Mãe, sinto-me menino novamente
Gosto de manga no céu da boca
(Tua fruta preferida)
Muito riso e pouca zanga...

(Poema extraído do livro AROMA DE MÃE - 1993)

Fonte:
Poema enviado pelo autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo – I – As Jabuticabas

O Sítio do Picapau Amarelo
I
As jabuticabas

De volta do reino das Águas Claras, Narizinho começou todas as noites a sonhar com o príncipe Escamado, dona Aranha, o doutor Caramujo e mais figurões que conhecera por lá. Ficou de jeito que não podia ver o menor inseto sem que se pusesse a imaginar a vida maravilhosa que teria na terrinha dele. E quando não pensava nisso pensava no Pequeno Polegar e nos meios de o fazer fugir de novo da história onde o coitadinho vivia preso.

Era este o assunto predileto das conversas da menina com a boneca. Faziam planos de toda sorte, cada qual mais amalucado.

Emília tinha idéias de verdadeira louca.

— Vou lá — dizia ela — e agarro nas orelhas da dona Carocha e dou um pontapé naquele nariz de papagaio e pego o Polegada pelas botas e venho correndo.

Narizinho ria-se, ria-se...

— Vai lá onde, Emília?

— Lá onde mora a velha.

— E onde mora a velha?

A boneca não sabia, mas não se atrapalhava na resposta. Emília nunca se atrapalhou nas suas respostas. Dizia as maiores asneiras do mundo, mas respondia.

— A velha mora com o Pequeno Polegada.

— Polegar, Emília!

— PO-LE-GA-DA.

Era teimosa como ela só. Nunca disse doutor Caramujo. Era sempre doutor Cara de Coruja. E nunca quis dizer Polegar. Era sempre Polegada.

— Muito bem — concordou a menina. — A velha mora com Polegar e Polegar mora com a velha. Mas onde moram os dois?

— Moram juntos.

Narizinho ria-se, dizendo: “Possa-se com uma diabinha destas!”

Dona Benta era outra que achava muita graça nas maluquices da boneca. Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar histórias. Porque não havia no mundo quem gostasse mais de história do que a boneca. Vivia pedindo que lhe contassem a história de tudo – do tapete, do cuco, do armário. Quando soube que Pedrinho, o outro neto de dona Benta, estava para vir passar uns tempos no sítio, pediu a história de Pedrinho.

— Pedrinho não tem história — respondeu dona Benta rindo-se. — É um menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filha Antonica e portanto nada fez ainda e nada conhece do mundo. Como há de ter história?

— Essa é boa! — replicou a boneca. — Aquele livro de capa vermelha da sua estante também nunca saiu de casa e no entanto tem mais de dez histórias dentro.

Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.

— Esta Emília diz tanta asneira que é quase impossível conversar com ela. Chega a atrapalhar a gente.

— É porque é de pano, sinhá — explicou a preta — e dum paninho muito ordinário. Se eu imaginasse que ela ia aprender a falar, eu tinha feito ela de seda, ou pelo menos dum retalho daquele seu vestido de ir à missa.

Dona Benta olhou para tia Nastácia dum certo modo, como que achando aquela explicação muito parecida com as da Emília...

Nisto apareceu Narizinho, com uma carta para dona Benta trazida pelo correio.

— Letra da sua filha Tonica, vovó — disse a menina. – Com certeza é marcando a viagem de Pedrinho.

Dona Benta leu. Era isso mesmo. Pedrinho viria dali uma semana.

— Uma semana ainda? — comentou Narizinho, desanimada de tanta demora. Que pena! Tenho tanta coisa a contar a Pedrinho — coisas do reino das Águas Claras...

— Não sei que reino é esse. Você nunca me falou nele, — disse dona Benta com cara de surpresa.

— Não falei nem falo porque a senhora não acredita. uma beleza de reino, vovó! Um palácio de coral que parece um sonho! E o príncipe Escamado, e o doutor Caramujo, e dona Aranha com suas seis filhinhas, e o major Agarra, e o papagaio que salvei da morte — quanta coisa!... Até baleias vimos lá, uma baleia enorme, dando de mamar a três baleinhas. Vi um milhão de coisas mas não posso contar nada nem para vovó nem para tia Nastácia porque não acreditam.

Para Pedrinho, sim, posso contar tudo, tudo...

Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças.” Mas depois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra: — Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.

— Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido... Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça. Pois onde é que já se viu uma coisa assim, sinhá, uma boneca de pano, que eu mesma fiz com estas pobres mãos, e de um paninho tão ordinário, falando, sinhá, falando que nem uma gente!... Qual, ou nós estamos caducando ou o mundo está perdido...

E as duas velhas olhavam uma para a outra, sacudindo a cabeça. Narizinho não gostava de esperar; ficou pois aborrecida de ter de esperar Pedrinho ainda uma semana inteira. Felizmente era tempo de jabuticabas.

No sítio de dona Benta havia vários pés, mas bastava um para que todos se regalassem até enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado “no ponto” e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore.

As jabuticabas tinham outros fregueses além da menina. Um deles era um leitão muito guloso, que recebera o nome de Rabicó.

Assim que via Narizinho trepar à árvore, Rabicó vinha correndo postar-se embaixo à espera dos caroços. Cada vez que soava lá em cima um tloc! seguido de um pluf! ouvia-se cá embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer coisa. E a música da jabuticabeira era assim: tloc! pluf! nhoc! — tloc! pluf! nhoc!...

Sanhaços também, e abelhas e vespas. Vespas em quantidade, sobretudo no fim, quando as jabuticabas ficavam que nem um mel, como dizia Narizinho. Escolhiam as melhores frutas, furavam-nas com o ferrão, enfiavam meio corpo dentro e deixavam-se ficar muito quietinhas, sugando até caírem de bêbedas.

— E não mordiam?

— Não tinham tempo. O tempo era pouco para aproveitarem aquela gostosura que só durava uns quinze dias.

Não mordiam é um modo de dizer. Nunca tinham mordido, isso sim. Porque justamente naquela tarde uma mordeu. Estava Narizinho no seu galho, distraída em pensar na surpresa que teria o príncipe Escamado se recebesse uma jabuticaba de presente, quando levou à boca uma das tais furadinhas, com meia vespa dentro. Dessa vez em lugar do tloc do costume o que soou foi um berro — ai! ai! ai!... tão bem berrado que lá dentro da casa as duas velhas ouviram.

— Que será aquilo? — exclamou dona Benta assustada.

— Aposto que é vespa, sinhá! — disse tia Nastácia. — Ela não sai da “fruteira” e, como nunca foi mordida, abusa. Eu vivo dizendo: “Cuidado com as vespas!” mas não adianta, Narizinho não faz caso. Agora, está aí...

E foi correndo ao pomar acudir a menina.

Encontrou-a já de volta, berrando com a língua à mostra, porque fora bem na ponta da língua que a vespa ferroara. A negra trouxe-a para casa, botou-a no colo e disse:

— Sossegue, boba, isso não é nada. Dói mas passa. Ponha a língua para eu arrancar o ferrão. Vespa quando morde deixa o ferrão no lugar da mordedura. Bem para fora. Assim.

Narizinho espichou meio palmo de língua e tia Nastácia, com muito custo, porque já tinha a vista fraca, pôde afinal descobrir o ferrãozinho e arrancá-lo.

— Pronto! — exclamou mostrando qualquer coisa na ponta duma pinça. — Está aqui o malvado. Agora é ter paciência e esperar que a dor passe. Se fosse mordida de cachorro bravo seria muito pior...

Narizinho curtiu a dor por alguns minutos, de língua inchada e olhos vermelhos, soluçando de vez em vez. Depois que a dor passou, foi contar à boneca toda a história.

— Bem feito! — disse Emília. — Se fosse eu, antes de comer olhava cada fruta, uma por uma, com o binóculo de dona Benta.

Apesar do acontecido, Narizinho não pôde reprimir uma gargalhada, que tia Nastácia ouviu lá da cozinha.

“Narizinho já sarou”, disse consigo a preta, “e daqui um instantinho está trepada na árvore outra vez”.

E tinha razão. Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre — tloc! pluf! nhoc... Lá estava Narizinho trepada à árvore.

Lá estavam as vespas com meio corpo metido dentro das frutas. Lá estava Rabicó esperando a queda dos caroços.

— Está tudo regulando! — murmurou consigo a preta, e pondo o pito na boca seguiu o seu caminho.
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Continua... O Enterro da Vespa

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Carlos Drummond de Andrade (A Rosa do Povo)


Análise da obra

Escrito entre 1943 e 1945 e publicado neste mesmo ano, A Rosa do Povo é aclamado por inúmeros setores da crítica literária como a melhor obra de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da Literatura Brasileira e um dos três mais importantes de toda a Língua Portuguesa. Antes que se comece a visão sobre esse livro, necessária se faz, no entanto, uma recapitulação das características marcantes do estilo do grande escritor mineiro.

Poesia da fase "eu menor que o mundo", toma como tema a política, a guerra e o sofrimento do homem. Desabrocha o "sentimento do mundo", traduzido pela solidão e na impotência do homem, diante de um mundo frio e mecânico, que o reduz a um objeto.

A obra é a mais extensa de todas as obras de Carlos Drummond de Andrade, composta por 55 poemas. Os versos, geralmente curtos das obras inaugurais, tornam-se mais longos. Há um predomínio do verso livre (métrica irregular) e do verso branco (sem rimas). Embora em seu próprio título haja uma simbologia revolucionária, sem contar o número expressivo de poemas socialmente engajados, A rosa do povo apresenta grande variedade temática e técnica.

Quase todos os poemas têm uma dimensão metafórica, apesar da linguagem aparentemente clara. Com freqüência, também nos surpreendemos com inesperadas associações de palavras, elipses, imagens surrealistas. Trata-se de poemas refinados, complexos e acessíveis somente a leitores com significativa informação poética. Paradoxalmente a obra em que Carlos Drummnod de Andrade mais se aproxima de uma ideologia popular é, na verdade, dirigida apenas a uma aristocracia intelectual.

A rosa do povo representa, na poesia de Drummond, uma tensão entre a participação política e adesão às utopias esquerdistas, de um lado, e a visão cética e desencantada, de outro lado. Não devemos entender esta duplicidade (esperança versus pessimismo) como contraditória. Toda a obra do autor (incluindo-se aí a amplitude de assuntos da mesma) é marcada por uma visão caleidoscópica, polissêmica.

A realidade, para ele, tem várias faces. Faces descontínuas, irregulares, opositivas. Tentar captar a essência humana é registrar ambivalências, ângulos variados. Nunca há em Drummond uma palavra definitiva, uma visão final. O fluxo desordenado da vida não permite uma única certeza, uma única convicção.

O poeta vale-se tanto do “estilo sublime” (padrão elevado da língua culta) quanto do “estilo mesclado” (linguagem elevada e linguagem coloquial).

Para a compreensão dessa obra, bastante útil é lembrar a data de sua publicação: 1945. Trata-se de uma época marcada por crises fenomenais, como a Segunda Guerra Mundial e, mais especificamente ao Brasil, a Ditadura Vargas. Drummond mostra-se uma antena poderosíssima que capta o sentimento, as dores, a agonia de seu tempo. Basta ler o emblemático A Flor e a Náusea, uma das jóias mais preciosas da presente obra.

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Nota-se no poema um eu-lírico mergulhado num mundo sufocante, em que tudo é igualado a mercadoria, tudo é tratado como matéria de consumo. Em meio a essa angústia, a existência corre o risco de se mostrar inútil, insignificante, o que justificaria a náusea, o mal-estar. Tudo se torna baixo, vil, marcado por “fezes, maus poemas, alucinações”.

No entanto, em meio a essa clausura sócio-existencial (que pode ser representada pela imagem, na terceira estrofe, do muro), o poeta vislumbra uma saída. Não se trata de idealismo ou mesmo de alienação – o poeta já deu sinais claros no texto de que não é capaz disso. Ou seja, não está imaginando, fantasiando uma mudança – ela de fato está para ocorrer, tanto que já é vislumbrada na última estrofe, com o anúncio de nuvens avolumando-se e das galinhas em pânico. É o nascimento da rosa, símbolo do desabrochar de um mundo novo, o que mantém o poeta vivo em meio a tanto desencanto.

Dois pontos ainda merecem ser observados no presente poema. O primeiro é o fato de que ele, além de ser o resumo das grandes temáticas da obra, acaba por explicar o seu título. Basta notar que, conforme dito no parágrafo anterior, a rosa indica o desabrochar de uma nova realidade, tão esperada pelo poeta. E a expressão “do povo” pode estar ligada a uma tendência esquerdista, socialista, muito presente em vários momentos do livro e anunciadas pela crítica ao universo capitalista na primeira (“Melancolias, mercadorias espreitam-me.”) e terceira estrofes (“Sob a pele das palavras há cifras e códigos.”). O novo mundo, portanto, teria características socialistas.

O outro item é visto pelo estreito relacionamento que A Flor e a Náusea estabelece com o poema a seguir, Áporo, um dos mais estudados, densos, complexos e enigmáticos da Literatura Brasileira.

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Note que a narrativa parece ser tirada de A Flor e a Náusea: um inseto, o áporo, cava a terra sem achar saída. Assemelha-se ao eu-lírico do outro poema, que se via diante de um muro e da inutilidade do discurso. No entanto, Drummond continua discursando, vivendo, assim como o inseto continua cavando. Então, do impossível surge a transformação: do asfalto surge a flor, da terra-labirinto-beco surge a orquídea.

Há algo aqui que faz lembrar o poema Elefante, também no mesmo volume. Da mesma forma como Drummond fabrica seu brinquedo, mandando-o para o mundo, de onde retorna destruído (mas no dia seguinte o esforço se repete), o eu-lírico de A Flor e a Náusea sobrevive em seu cotidiano nulo e nauseante e o áporo perfura a terra. É a temática do “no entanto, continuamos e devemos continuar vivendo”, tão comum em vários momentos de A Rosa do Povo.

Áporo, portanto, é um poema tão rico que pode ter outras leituras, além dessa de teor existencial. Há também, por exemplo, a interpretação política, que enxerga uma referência a Luís Carlos Prestes (“presto se desata”), que acabara de ser libertado pelo regime ditatorial. A figura histórica pode ser vista, portanto, como um áporo buscando caminho na pátria sem saída que se tornou o Brasil na Era Vargas.

Ainda assim, existe quem veja no texto um mero – e inigualável – exercício lúdico, em que as palavras são contempladas, manipuladas, transformadas. Basta lembrar, por exemplo, que “áporo”, além de ser a designação do inseto cavador, é também um termo usado em filosofia e matemática para uma situação, um problema sem solução, sem saída. Além disso, a essência etimológica da palavra inseto é justamente as letras “s” e “e”, diluídas no corpo do texto. Observe como tal pode ser esquematizado:

Um inSEto cava
cava SEm alarme
perfurando a terra
SEm achar EScape.
Que faZEr, ExauSto,
Em paíS bloqueado,
enlaCE de noite
raiZ E minério?
EiS que o labirinto
(oh razão, miStÉrio)
prESto SE dESata:
em verdE, Sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-SE.

Note que a essência do áporo, do inseto, vai se movimentando em todo o poema, transformando-se, até o ápice do último verso da terceira estrofe. É o momento da transformação e da iniciação, já anunciadas na segunda estrofe na aliteração do /s/ e do /t/ e da assonância do /e/ que acabam criando a forma verbal “encete” (ENlaCE de noiTE), que significa principiar, mas que possui também uma forte aproximação sonora com “inseto”. A mutação final virá no último verso: o áporo inseto se transforma em áporo orquídea (“áporo” é também o nome de um determinado tipo de orquídea), a flor que se desabrocha para a libertação. Tanto que a raiz SE está prestes a se libertar, pois virou a forma pronominal “se” (e, portanto, com relativa vida própria) que encerra o poema.

Tal trabalho com a linguagem é a base de todo texto poético, como é defendido pelo próprio Drummond em Procura da Poesia, transcrito abaixo:

Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é a música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Esse antológico poema é dividido em duas partes. Na primeira apresentam-se proibições sobre o que não deve ser a preocupação de quem estiver pretendendo fazer poesia. Sua matéria-prima, de acordo com o raciocínio exibido, não são as emoções, a memória, o meio social, o corpo. Na segunda parte explica-se qual é a essência da poesia: o trabalho com a linguagem. O poema pode até apresentar temática social, existencial, laudatória, emotiva, mas tem de, acima de tudo, dar atenção à elaboração do texto, ou seja, saber lidar com a função poética da linguagem.

I - Poesia social

Pelo menos duas dezenas dos cinqüenta e cinco poemas de A rosa do povo podem ser enquadrados nesta tendência na qual a angústia subjetiva do poeta transforma-se em engajamento e compromisso com a humanidade.

De certa forma, é possível distinguir neles uma espécie de seqüência lógica que revela as mudanças de percepção do poeta face ao fenômeno social. Este processo temática não é unívoco, sendo composto por mais ou menos quatro movimentos muito próximos e que, na sua totalidade, formam a mais elevada manifestação de poesia comprometida na história da literatura brasileira. Vamos encontrar então:

- a culpa e a responsabilidade moral - a repulsa ao egocentrismo e a abertura em direção à solidariedade estão representadas por dois poemas totalmente simbólicos e despidos de referências à historicidade e ao cotidiano: Carrego comigo e Movimento da espada.

- o registro puro e simples de uma ordem política injusta - ainda que toda a sua poesia social submeta a ordem vigente a um inquérito implacável, há sempre nestes poemas a indicação do novo, ou pelo menos das lutas que indivíduos, classes e povos travam para impugnar a injustiça do planeta. A exemplo de O medo, entretanto, a esperança ou o enfrentamento não se delineiam e o resultado é um dos textos mais opressivos de toda a obra de Drummond.

Os versos irregulares, (embora um bom número deles tenha sete sílabas) não impedem a criação uma cadência grave e soturna, nascida da repetição exaustiva da palavra medo. No desenrolar das quinze estrofes do poema, essa palavra e aquilo que ela traduz no contexto da época (ditadura, prisão, tortura, guerra, massacres, etc.) vão tecendo uma rede de tentáculos sobre os seres, impedindo-os de pensar, protestar e agir.

Além da impugnação desta era de medo, Drummond deixa transparecer no poema a sensação de culpa e de responsabilidade – que o acomete com freqüência.

- a passagem da náusea à perspectiva de uma nova sociedade (em termos concretos e em termos abstratos) - Neste bloco, encontramos um significativo número de poemas. Eles refletem a transição de um clima acabrunhante – no qual um indivíduo em crise e um sistema desolador se identificam – para uma atmosfera radiosa de esperança e afirmativa do novo.

Dentro desta ótica são escritos dois dos mais importantes poemas de A rosa do povo: A flor e a náusea e Nosso tempo. São também os mais concretos pois aludem diretamente ou indiretamente à realidade objetiva. Neles, o sentimento de culpa é substituído pela noção de náusea: a náusea existencialista, à maneira de Sartre, que, mais do que uma sensação física de enjôo, é uma situação de absoluta liberdade de quem a vivencia. Liberdade no sentido da destruição de todos os valores tradicionais, da morte de todos os deuses e crenças. A náusea decorre desta liberdade aterradora, próxima do absurdo. O homem, despojado de suas antigas certezas, vaga num universo de destroços, porém, ao mesmo tempo que o tédio e o desespero o ameaçam, este mesmo homem pode, na grande solidão em que se converteu sua vida, encontrar uma alternativa válida de existência individual e coletiva.

- a celebração da nova ordem - O despojamento do egoísmo burguês e a superação da situação de náusea induziram Drummond a vários compromissos: primeiro, o moral; segundo, o humanista; terceiro, o ideológico. Imerso numa era onde a barbárie ameaçava a civilização, o poeta entende que a mera solidariedade ou apenas a argüição áspera da sociedade injusta não bastariam. Seria necessário que o indivíduo sujeitasse seu egocentrismo a um sistema de idéias em que a organização e os interesses coletivos prevalecessem.

O marxismo – na sua formulação soviética – surge, então, como a possibilidade redentora do homem. O heroísmo da URSS, na II Guerra, é o combustível desta expansão ideológica. Há, em todo o Ocidente, uma expressiva fraternidade em relação ao povo russo e ao seu regime. Como centena de intelectuais, Drummond não escapa da sedução comunista. Alguns poemas vão traduzir esta adesão. Com raras exceções, eles constituem a parte mais perecível de A rosa do povo.

II - Poesia de reflexão existencial

Entre os múltiplos temas do autor, o único presente em todas as suas obras, de Alguma poesia a Farewel, com maior ou menor insistência, é o do questionamento do sentido da vida. Mesmo num livro em que o engajamento social e político exerce forte hegemonia, como é o caso de A rosa do povo, sobressaem-se inúmeros poemas de interrogação existencial, alguns situados entre os momentos culminantes do lirismo de Drummond. Principais motivos:

Solidão, angústia e incomunicabilidade - Mais centrada na esfera da subjetividade do poeta, esta tendência desvela a impotência do eu-lírico para estabelecer vias comunicantes com os demais seres humanos. Trata-se de uma solidão terrível, pois ela ocorre na grande cidade, cidade antropofágica e impassível, onde o indivíduo caminha desorientado em meio a uma multidão indiferente e sem rosto.

O fluir do tempo - Um dos temas nucleares da obra drummondiana, a percepção da passagem do tempo se estabelece através de interrogações diretas sobre o sentido deste fluxo que degrada os corpos, a beleza, as coisas e também as ilusões, os amores e as crenças dos indivíduos. Affonso Romano de Sant’Anna, em ótima análise estilística, mostra a predominância em A rosa do povo de vocábulos que indicam mudança e viagem. A vida “flui e reflui, corre, passa, escorre, espalha-se, desliza, dissipa-se”, num desfile ininterrupto e cujo destino final é a morte.

A morte - A consciência da progressiva destruição operada pelo tempo – núcleo principal de todo o amplo espectro temático de CDA – condensa-se na convicção de que o ser é sempre o ser-para-a-morte.

A “viagem mortal” do indivíduo percorre não apenas toda a poesia de indagação filosófica, mas igualmente a lírica que expressa o passado, o cotidiano, o compromisso ético e político e até a que fala do amor. A tragédia da condição humana é a da certeza da finitude. Desta expectativa da própria destruição, Drummond elabora poemas de desconcertante lucidez.

III - A poesia sobre a poesia

A reflexão metapoética (ou metalinguagem) constitui uma das vertentes dominantes da obra de Drummond. A própria poesia é tematizada, na forma característica do poema sobre o poema, e discute-se o ofício de escrever, a construção do texto, o âmago da linguagem lírica, etc.

A poética - Consideração do poema e Procura da poesia abrem A rosa do povo. Isso já revela a importância que Drummond confere ao problema do fazer literário, porque em ambos estabelece-se a tentativa de fixação de uma poética, isto é, de um processo de enumeração – direto ou metafórico – dos princípios técnicos e semânticos e dos valores filosóficos que regem a escrita do autor.

Uma poética controversa - Os críticos se dividiram a respeito do significado dos dois principais poemas de metalinguagem de Drummond. Alguns interpretaram os textos como contraditórios porque afirmariam realidades antagônicas: um, o domínio do compromisso social; outro, o império da linguagem. Representariam, portanto, a condensação das tendências opositivas de A rosa do povo, obra dilacerada entre a esperança no futuro socialista e a amargura filosófica.

Já outros críticos especulam que Consideração do poema corresponde ao projeto ideológico do autor, enquanto Procura da poesia traduz o seu projeto estético, não havendo diferenças estruturais entre ambos, e sim uma variação de enfoque determinada pela especificidade de cada projeto.

No entanto, para José Guilherme Merquior – o mais importante entre os estudiosos da obra drummondiana – os dois poemas formam um conjunto coerente, porque estão alicerçados sobre uma concepção dialética do gênero lírico, o qual se comporia de duas camadas interligadas:

a) A natureza preponderantemente verbal da poesia. Ou seja, poesia, em primeiro lugar, é seleção e ordenação de palavras;
b) As palavras – captadas em seu mistério e em algumas de suas “mil faces” – não são vazias de conteúdo. Ora, se o discurso poético não é um zero semântico, suas referências obrigatoriamente designam elementos do real.

Em suma, a pesquisa e a invenção de linguagem constituem o cerne da poesia, mas as palavras trazem consigo uma constelação de significados que o poeta escolhe. Não se trata – como já frisamos – de privilegiar a mensagem, exprimindo-a diretamente. Isso não é poesia. Apenas através da penetração no “reino das palavras”, o autor lírico poderá dar um sentido a seu canto. Ou seja, aquilo que o poeta diz é também a forma como ele o diz.

IV - Poesia sobre o passado

A idéia do passado e de suas infinitas recordações afeta profundamente a criação poética de Drummond, tanto que alguns de seus mais celebrados poemas giram em torno deste baú de lembranças que, aberto, deixa entrever uma formidável multiplicidade de experiências pessoais, familiares e históricas.Em resumo, o passado é apresentado da seguinte maneira na poesia de Drummond:

1- O registro realista (mais sugerido do que descrito) do quadro familiar e sócio-cultural do interior rural mineiro de fins do século XIX e início do século XX;

2- A evocação de um mundo estritamente pessoal, formado por fatos, palavras e sentimentos que tiveram eco ou atingiram a subjetividade do menino e/ou do jovem Drummond;

3- A projeção do passado (pessoal, familiar, social) no presente, fazendo com que toda a indagação daquilo que ficou para trás seja também uma indagação da identidade atual do poeta e dos outros remanescentes do universo rural / provinciano, recuperados por uma memória que os interpela incessantemente.

V - Poesia sobre o amor

Drummond talvez seja a voz lírica/amorosa mais rica e complexa da literatura brasileira. Há em sua poesia uma inesgotável variedade de visões e abordagens do fenômeno afetivo, tanto nos aspectos espirituais quanto nos eróticos.

No entanto, em A rosa do povo a questão amorosa ocupa espaço mínimo, registrando-se apenas um poema de assunto estritamente sentimental: O mito. Verdade que não seria equivocado enquadrar O caso do vestido nesta vertente, mas por razões que veremos adiante, preferimos inseri-lo na categoria dos poemas sobre o cotidiano.

VI - Poesia do cotidiano

Embora vários textos da poesia social de Drummond retratem a vida diária com grande vigor, a inclinação participante do poeta dão a estes versos uma dimensão explicitamente engajada. Algo que não encontramos nos poemas específicos sobre o cotidiano. Neles, Drummond fixa cenas ou narra histórias – sem a intervenção do eu – quase como um repórter de linguagem apurada. Com muita propriedade, Merquior define estes poemas como “dramas do cotidiano”. Em regra geral, são os de leitura mais acessível, o que não lhes retira a beleza e a complexidade. Todavia, em A rosa do povo só nos deparamos com dois desses poemas.

VII - Celebração dos amigos

Em vários de seus livros, Drummond faz a louvação de personalidades que, de alguma maneira, marcaram-lhe a existência, seja pela amizade, seja pela grandeza artística/humana das obras que produziram. Em A rosa do povo, duas longas odes expressam a referida tendência. Mário de Andrade e Charlie Chaplin são os homenageados em textos arrebatadores, enfáticos e, no caso específico do segundo, até mesmo um pouco palavroso.

Nota

A riqueza de A Rosa do Povo não se restringe, porém, às temáticas abordadas. Há uma profusão de outros assuntos, como a abordagem da cidade natal (Nova Canção do Exílio, em que há uma reinterpretação do Canção do Exílio, de Gonçalves Dias), a observação do problemático cotidiano social (Morte do Leiteiro, em que o protagonista, que dá nome ao poema, acaba sendo assassinado em pleno exercício de sua função por ser confundido com um ladrão, o que possibilita uma crítica às relações sociais esgarçadas pelo medo), a rememoração dos parentes (Retrato de Família, em que o eu-lírico percebe a viagem através da carne e do tempo de uma constante eterna ligada à idéia de família) e o amor como experiência difícil, o famoso amar amaro (Caso de Vestido, em que o eu-lírico, uma mulher, narra o sofrimento por que passou quando da perda do seu marido e quando também da recuperação dele).

Fonte:
Passeiweb

57ª. Feira de Livro de Porto Alegre (Programação de 03 de Novembro, quinta-feira)


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03/11/2011 - 08:00
Possibilidades de desenvolvimento de cidades a partir da intersecção da Educação e do Patrimônio Cultural

Encontro com autor
03/11/2011 - 09:00

Todo Mundo Pode
03/11/2011 - 09:00
Todo mundo pode trabalhar com Cordel na Sala de Aula - A Literatura Popular como ferramenta auxiliar na educação

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03/11/2011 - 09:00

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03/11/2011 - 09:00
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Mostra do Programa de Leitura Adote um Escritor, CRl/Smed Porto Alegre
03/11/2011 - 09:00

Encontro com autor
03/11/2011 - 10:30

Encontro com alunos na Feira (séries finais)
O Autor no Palco
03/11/2011 - 10:30

Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental
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Sonho de uma noite de verão, adaptação da obra de Willian Shakespeare - Apresentação teatral da EMEF Nelda Julieta Schneck de Ivoti

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Oficina: O narrador no cinema
03/11/2011 - 14:00
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03/11/2011 - 14:00

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Por que você tem medo de usar HQ na sala de aula?

Hora do Conto e sessão de autógrafos do Colégio La Salle - Porto Alegre
03/11/2011 - 14:00

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Pandolfo Bereba, de Eva Furnari

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Oficina: Higienização de acervo bibliográfico
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6º Mutação na Feira: HQ, Zines e outras histórias
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Falsidade Ideológica
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03/11/2011 - 18:00
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6º Mutação na Feira: HQ, Zines e outras histórias
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O que é qualidade em literatura infantil e juvenil: com a palavra o educador
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MESA REDONDA
Legalidade e Contos Contemporâneos
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A Era Borgista / A Era Flores da Cunha
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A infância no ensino fundamental de 9 anos
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03/11/2011 - 18:30

Fugaz Idade
03/11/2011 - 18:30

Com passos lentos, mas firmes
03/11/2011 - 18:30

Modelos de Gestão em Organizações Públicas
03/11/2011 - 18:30

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03/11/2011 - 18:30

A dama do bar nevada
03/11/2011 - 18:30

Nova enciclopédia dos quadrinhos/Enciclopédia dos Quadrinhos
03/11/2011 - 18:30

Ao cair da tarde
03/11/2011 - 18:30

O segredo dos seus olhos
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O escritor argentino conversa sobre suas obras com o público

Oficina de Twitter
03/11/2011 - 19:00
Oficina de aforismos, máximas e frases altamente defeituosas, para pensar diferente, para desejar diferente. Módulo 1/2

Cine Santander Cultural
03/11/2011 - 19:00
Sessão Comentada

4º Seminário A Arte de Contar Histórias: O território mágico da Biblioteca
03/11/2011 - 19:00
O que significa para o leitor ouvir histórias na biblioteca? Narração de abertura com o grupo Fio da Palavra

Ramos verdes misteriosos I, II, III
03/11/2011 - 19:30

Por que eu sou vingativa
03/11/2011 - 19:30

O verdugo de Deus
03/11/2011 - 19:30

Caçada na terra de sol e mar
03/11/2011 - 19:30

Cordão da Saideira: Isaias in tese
03/11/2011 - 20:00
Viagem de um imigrante nordestino que sai de sua terra à procura de uma situação mais estável e conta sua adaptação em terras sulistas

Roda Gigante
03/11/2011 - 20:00
Teatro Adulto - Roteiro e direção: Léo Maciel

O Segredo dos teus olhos
03/11/2011 - 20:30

Direito Fundamental à Educação, Democracia e Desenvolvimento Sustentável
03/11/2011 - 20:30

Serafim de Serafim
03/11/2011 - 20:30

O tema da felicidade
03/11/2011 - 20:30

Fonte:
http://www.feiradolivro-poa.com.br/

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (Histórias para o Rei)


Nunca podia imaginar que fosse tão agradável a função de contar histórias, para qual fui nomeado por decreto do Rei. A nomeação colheu-me de surpresa, pois jamais exercitara dotes de imaginação, e até me exprimo com certa dificuldade verbal. Mas bastou que o Rei confiasse em mim para que as histórias me jorrassem da boca à maneira de água corrente. Nem carecia inventá-las. Inventavam-se a si mesmas.

Este prazer durou seis meses. Um dia, a Rainha foi falar ao Rei que eu estava exagerando. Contava tantas histórias que não havia tempo para apreciá-las, e mesmo para ouvi-las. O Rei, que julgava minha facúndia uma qualidade, passou a considerá-la defeito, e ordenou que eu só contasse meia história por dia, e descansasse aos domingos. Fiquei triste, pois não sabia inventar meia história. Minha insuficiência desagradou, e fui substituído por um mudo, que narra por meio de sinais, e arranca os maiores aplausos.

Fonte:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A cor de cada um. 3a. edição. RJ: Record, 1998.

Nilton Bobato (Livro de Poesias)


TESTAMENTO

Quando eu morrer
não chore, sorria!
Quando eu morrer
não reze, cante!
Quando eu morrer
não compre um caixão
com flores
não encomende um terno
sem cor
não pinte minhas unhas

No dia da minha morte
faça uma festa
Neste dia terei amado
a noite toda
Terei abraçado e beijado
meus filhos

Quando minha morte vier
quero estar empinando pipas
no gramadão
Neste dia quero ter
suado a camisa
jogando futebol

No dia de minha morte
escreverei poemas e contos
revelarei ao mundo
todo o amor que senti
e os sonhos que realizei
até o dia que minha morte chegou

Quando este dia acontecer
estarei reunido com
meus mais queridos
amigos
Tomarei cerveja
e acenderei um
cigarro
esperando
na varanda
de minha casa
no crepúsculo
de uma tarde
ensolarada

LIMITE

Hoje passei dos limites
Hoje mesmo
Perdi o controle
Perdi a paciência
Hoje mesmo
Não suportei o faltar
de consciência
Não suportei o falar
para as paredes

Ando tão bruto
Insensível
Impaciente...
Tenho vontade
de chorar

EVOLUÇÃO

Olho em volta.
O que vejo?
Fujo. Corro.
Tenho medo.
Assusto-me...
Escondo-me...

Troquei a indignação
pelo horror.
Substituí a revolta
pelo nojo.

Olho em volta.
Trêmulo. Assustado.
O que vejo?
Um menino,
sujo, ..., fedorento, ...,
se aproxima, …

ROTINA

As mesmas histórias se repetem
Como um livro não escrito
Ou um poema repetido
Insistentemente

A tempestade pinta nosso céu de negro
O granizo cai sobre nossas cabeças
O vendaval arranca nossas árvores
Impiedosamente

O mato continua a crescer no quintal
As frutas apodrecem nos galhos
As flores murcham no jardim
Rotineiramente

Amarramos nossas mãos para não desatar os nós
Fazemos de conta que não vemos os sinais
Tapamos os ouvidos para os ruídos
Repetidamente

Neste semestre tudo igual outra vez
O amor é superado pela estupidez
Os mentirosos se julgam vitoriosos

Procuro a receita
Um dia ditada por Renato
Dou voltas na quadra
Quase sem destino
Mas tento estancar o sangue
E olho para as flores murchas
Grito por uma nova primavera
Que é preciso ter esperanças
Ver a água límpida azul
No fundo do poço
Sorrindo

CONVERSA DE UMA MANHÃ

Eu direi para você
Outros já escreveram disso
Você já falou disso
Mas não se importe
Venha falar de seus amigos
E de seus inimigos
Venha brincar de sorrir e pular
Correr
Olhar o sol se pondo
Admirar o sol nascendo
Deixa eu repetir as mesmas coisas
Talvez até colocar uma bola vermelha
No nariz
Não estarei só
Olhe em meus olhos
Veja as nuvens por detrás das montanhas
Você prefere não acreditar
Mas existem riachos
Estradas de chão
Janelas para olharmos
Ver através das grades
Vamos pular carnaval
Sem noção de samba
Cantar uma música
Sem qualquer afinação
Salte os buracos das calçadas
Esburacadas
Aceite o risco de tropeçar
Não se prenda
Atravessaremos a ponte
É só olhar o horizonte
Está ali tão próximo
Quem diz que não dá
Eu estava em casa só
Foi você que começou
Agora não me venha
Com estas conversas
Há brilho no sol
E você prometeu sorrir
Então me dê um sorriso de bom dia.

EMBALANDO

Caminho e ouço sua voz
Todo cambia el momento
Ouvir o canto que se foi
Como el mosquito en la piedra
Mas ficou a voz
Como el amor con sus esmeros
Puro y sincero
Vá Mercedes, espalhar seu canto
Derramar sua voz em outras plagas
Vá brotando e vá brotando
Pois flores e sementes nascerão
Frutos ficarão
No canto
Na voz
Na mente
No sonho
Que todos um dia sonhamos
Vá Mercedes, espelhe seu canto
Mesmo quando no haja nada cerca o lejos
Continue oferecendo seu coração
Continue hablando por la vida
Hablando de cambiar esta nuestra casa
Cambiarla por cambiar no más
Vá Mercedes, esparrame seu canto
Sua voz continua aqui
Suas cinzas embalarão novas esperanças
Sua suavidade rebelde continuará
Embalando...
Embalando...
Embalando...
Vá Mercedes…

Fonte:
http://niltonbobato.zip.net/

Nilton Bobato (A Barbearia)


A navalha desliza pelo pescoço, lentamente. O barbeiro, um nordestino falante, limpa o instrumento com um líquido desconhecido para o cliente, provavelmente álcool com alguma mistura e volta a deslizar a lâmina afiada pelo pescoço do homem grisalho, raspando os fios de barba negra com fios brancos que teimosamente insistem em ficar ali. Com a outra mão umedece a garganta e o queixo do cliente com outro líquido pastoso. É trabalho de artista moldando sua obra.

O homem sentado, com a cabeça deitada para trás horizontalmente ao corpo, apoiada por um suporte colocado na cadeira, a jugular completamente submissa ao lento deslizar da navalha e à mão do barbeiro. Sente-se como o tronco sendo esculpido pelas mãos ágeis do artesão, indefeso, entregue à sua vontade.

“Este cidadão pode fazer o que quiser comigo. E se esta navalha escorregar e cortar minha garganta? Ele pode dizer que foi apenas um acidente”.

O barbeiro continua o trabalho com maestria. A lâmina percorre suavemente a pele do pescoço, subindo em movimentos verticais e ritmados até a curva do queixo. Com o lado da mão esquerda desloca levemente o rosto do cliente para a direita e com a outra faz o instrumento cortante percorrer o lado esquerdo da mandíbula.

“O homem tem poder sobre mim. Se eu fizer um movimento brusco darei a ele a justificativa de que precisa para dizer que é um acidente”.

Com um novo leve toque, o barbeiro vira o rosto do cliente para o lado esquerdo e reinicia o processo de percorrer a navalha pela mandíbula, antes umedecendo o local com o líquido pastoso. Após limpar a lâmina em um tecido exposto sobre o pequeno balcão a sua frente, o barbeiro faz pequenos toques com a navalha entre o lábio superior e o nariz para corrigir o bigode.

“Se eu cortar a jugular deste cara, não vai dar nem tempo dele gritar. Deveria fazer isso com este filho da puta. Ele nem me reconhece, nem lembra o que me fez passar. Faz tempo, né desgraçado? Você esqueceu. Eu não. Seria muito simples, vingança fácil. A lâmina escorregou”.

Faz a navalha percorrer a parte inferior entre o lábio e a curvatura do queixo. Após executar esta etapa, conduz o instrumento até as proximidades da orelha direita e desenha uma pequena costeleta. Alterando a direção do rosto do cliente, o barbeiro faz o mesmo do lado esquerdo. Outra vez massageia o pescoço do cliente com o líquido pastoso e mais uma vez faz a lâmina deslizar sobre a jugular do homem sentado na cadeira, desta vez horizontalmente. A obra quase pronta, o artista a admira.

“Ou ele poderia simplesmente fazer um movimento brusco do lado contrário, digo que a navalha encontrou uma veia saliente e, coitado, o homem morreu, o sangue jorrou. Ele irá agonizar, ver o sangue esguichar até o teto. Desesperados chamaremos a ambulância, mas quando chegar será tarde demais. Doce vingança”.

Com agilidade, o barbeiro massageia o pescoço do cliente, percorrendo com as duas mãos banhadas por uma loção pós-barba com odor de menta todos os lados do pescoço. O tronco agora é arte exposta.

“Obrigado senhor. O pagamento é no caixa. O próximo”.

“Obrigado você. Gostei desta barbearia e o seu trabalho é bom, voltarei na semana que vem”.

“Estou aqui para lhe atender, senhor”.

Fontes:
http://niltonbobato.zip.net/
Antena Cultural

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes II)


VERSOS DE DEUS

I

Ao sentir nos pássaros
tanta liberdade
e aéreo poder,
imagina um pássaro
superior a todos
e tão invisível
que seu vôo deixe
sensação de sonho.
Com leveza e graça
o homem pensa Deus.

II

No mais alto ramo
Deus está pousado
com uma garra apenas
e fita o mundo.
Do mais alto ramo
desfere vôo
e sai por aí
bicando as coisas,
indiferente às coisas
bicadas,
encantadas.

III

Bica-me Deus
de manso nos olhos,
antes referência
que repreensão.
Alisa o bico
no local. E dói.
Ao sumir crocita:
"Hoje te perdôo."
O que Deus perdoa,
só o sabe Deus.

IV

Deus rumina
que fazer, acaso.
Mais um terremoto?
De que proporções?
Uma nova guerra?
De quantas nações?
Que margem ceder
ao capricho do homem?
Vai nascer um artista?
Nascerão idiotas?
Surgirão robôs?

V

Ao findar o tempo
tudo se acomoda
à sua vontade.
Já não há projeto
de outro Deus ou vários.
Laços entrançados,
gemidos, crepúsculo
sempre continuado.
O homem arrependo-me
da criação de Deus,
mas agora é tarde.

VERDADE

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

ÚNI DÚNI TÊNI

úni dúni têni
salamêni.

Balança, meu bem, balança
entre um e outro trapézio.
No verde tom da esperança,
a cor de prata do césio.

Circula o risco no espaço
como sangue nas artérias.
Os saltos mais perigosos
são fiorituras aéreas.

No limite da coragem,
no vão entre céu e terra,
um anjo luminescente
zomba da morte e da guerra.

É anjo? ou mulher? ou homem?
Sobre a pergunta sem nexo,
o novo arco-íris desdobra
todos os raios do sexo.

"UM CHAMADO JOÃO"

"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?

Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?

Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?

João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?

Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?

Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?

Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeíam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar."

TODO DIA É MENOS UM DIA

Todo dia é menos um dia;
menos um dia para ser feliz;
é menos um dia para dar e receber;
é menos um dia para amar e ser amado;
é menos um dia para ouvir e, principalmente, calar !

Sim, porque calando nem sempre quer dizer
que concordamos com o que ouvimos ou lemos,
mas estamos dando a outrem a chance de pensar,
refletir, saber o que falou ou escreveu.

Saber ouvir é um raro dom, reconheçamos.
Mas saber calar, mais raro ainda.
E como humanos estamos sujeitos a errar.
E nosso erro mais primário, é não saber:
Ouvir e calar !

Todo dia é menos um dia para dar um sorriso.
Muitas vezes alguém precisa, apenas de um sorriso
para sentir um pouco de felicidade !

Todo dia é menos um dia para dizer:
- Desculpe, eu errei !
Para dizer:
- Perdoe-me por favor, fui injusto !

Todo dia é menos um dia;
Para voltarmos sobre os nossos passos.
De repente descobrimos que estamos muito longe
E já não há mais como encontrar
onde pisamos quando íamos.
Já não conseguiremos distinguir nossos passos
de tantos outros que vieram depois dos nossos.

E se esse dia chega, por mais que voltemos;
estaremos seguindo um caminho, que jamais
nos trará ao ponto de partida.

Por isso use cada dia com sabedoria.
Ouça e cale se não se sentir bem;
Leia e deixe de lado, outra hora você vai conseguir
interpretar melhor e saber o que quis ser dito.

Milton Hatoum (Dois Irmãos)


Milton Hatoum volta ao romance com um drama familiar em cujo centro estão dois filhos de imigrantes libaneses: os gêmeos Yaqub e Omar. O enredo do romance trata, basicamente, do (não) relacionamento entre os irmãos.

O ponto de onde é feita a narração é uma posição bastante privilegiada e natural para o desenvolvimento da história. O narrador é um personagem, coisa que não sabemos de imediato, mas no desenvolvimento do livro. O narrador é, na verdade, o filho bastardo de um dos gêmeos com a empregada que mora no fundo da casa dos pais deles. Essa posição próxima, porém não íntima, e o interesse do narrador em descobrir quem é seu pai, o torna o narrador ideal para este romance.

Narrado em primeira pessoa, a história se passa em Manaus de 1910 a 1960. Os dois irmãos nunca se entendem, até que Yaqub é obrigado a ir para o Líbano. Quando volta, cinco anos depois, sente-se deslocado dentro de sua própria família, enquanto as intrigas continuam. Aliás, o sentimento de deslocamento é o que sustenta a narrativa, e traz o drama familiar para a esfera do universal.

Segundo Hatoum, o imigrante é um sujeito dividido, sofre de uma espécie de dualidade do lar, da pátria. Nesse sentido, os dois irmãos funcionam como uma metáfora dessa dualidade. Um se identificando mais com o Brasil e o outro se sentindo estrangeiro, diferente, muitas vezes sendo referido apenas como “o outro” pelo Narrador, que, por sua vez, também é um deslocado, filho da empregada com um dos gêmeos, mas sem saber qual deles.

Entre esse duelo fraternal, Hatoum ainda constrói a dificuldade de um homem apaixonado pela esposa, que perde a atenção dela para os filhos; um filho bastardo que tenta descobrir qual dos gêmeos é seu pai; a história do imigrante de origem árabe no Brasil e a expansão comercial da região norte; e o retrato de uma sociedade pequeno burguesa, que se mostra tão previsível no norte do Brasil, quanto na França, dos escritores de grande influência para o autor manauara, Flaubert e Balzac (juntamente ao norte-americano William Faulkner).

Esses temas vão se dissolvendo com o passar do tempo da história. Mas não perdendo em importância ou se resolvendo e sim, se entranhando cada vez mais à narrativa.

Uma tensão leve é a convidada cativa do texto de Hatoum, que se faz presente em todo o livro. As páginas a serem lidas vão rareando nas mãos e as soluções são, no máximo, indicadas.

Aliando essa tensão à fluência textual (no melhor estilo de seus autores de influência), Hatoum nos conta uma história isenta de lições moralizantes ou advertências.

O que nos toma ao final da leitura é um sentimento de incompletude e incerteza. Espaços em aberto. Muitas perguntas, muitas possibilidades, poucas certezas.

Esse espaço de incerteza é que fascina no momento da leitura e não frustra ao deixar perguntas. É a máquina narrativa de Hatoum, funcionando direitinho.

ENREDO

No início do século XX, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado.

Omar é o beberrão boêmio, mimado, conquistador e revolucionário. Yaqub é o engenheiro que construiu sua vida independentemente de ajuda, magoado com a família, tímido, conservador e que se muda de Manaus (cenário da história) para São Paulo.

Essa diferença de personalidade faz parte do pacote ‘história de irmãos gêmeos’. Assim como a constante competição entre eles.

Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana, em que os dois tinham todo o tempo do mundo para deitar na rede do alpendre e se entregar aos prazeres sensuais. Pelo que nos conta o narrador, Halim estará sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares: a desmedida dedicação de Zana a Omar, seu filho preferido; o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família supostamente para amenizar os conflitos com Omar; a relação amorosa entre os gêmeos e a irmã, Rânia. De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho.

Milton Hatoum faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.

TRECHO ESCOLHIDO

Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador. No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai conversava em português com os clientes do restaurante: mascateiros, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.

Fonte:
Passeiweb

Júlia Lopes de Almeida (Harmonias)


Tudo é música na natureza, até as ostras cantam!

Cada dia que passa nos traz uma surpresa magnífica. Esta, que talvez não tivesse comovido ninguém mais, fez-me cair das mãos estupefatas o Jornal do Comércio, em que ela veio fixada, como afirmação de um sábio professor, cuja palavra não pode ser posta em dúvida.

Mal haja quem fizer ouvidos surdos a uma tão bela revelação da poesia universal. Esse será de um materialismo indigno deste século, que há de ser todo cheio de sublimes divulgações. Digam embora que tudo é velho e revelho no mundo inteiro. Mentira; ali está a prova: as ostras têm voz, em que expandem as queixas da sua alma com "gritinhos agudos, seguidos de murmúrio suave mas expressivo".

É assim que diz a noticia. Ora, onde há expressão há sentimento, logo esses gelatinosos moluscos, feios e informes, tão repugnantes e tão saborosos, dão para a divina harmonia dos dias e das noites o seu contingente ignorado de soluço ou de riso!

Não bastava à ostra ser mãe da pérola. Tal glória não a elevou nunca no pasmado conceito das multidões. Essa preciosa concreção calcária que as mulheres adoram e os ourives exploram, é, bem como o aljôfar, o nácar e a madrepérola, de tamanha impassibilidade, que nunca suspeitamos, por via dela, que na concavidade das conchas em que a ostra se espapa, mole e gomosa, ressoasse a voz do gozo ou do sofrimento.

Foi preciso que a orelha, naturalmente cabeluda, de um grave e sábio professor se inclinasse para as anfractuosidades de um rochedo, para que o divino mistério da alma ignorada do molusco se revelasse ao mundo.

Se as palavras que esse fato denunciaram, em vez de terem sido pronunciadas solenemente em um — congresso de pesca — por um homem cogitador e insuspeito, tivessem saltado da língua da Sirineta, que foi feita per contare solamente as belezas do mar, de que é o espírito, a gente levantaria os ombros com o sorriso com que acolhe as mais lindas fantasias e iria continuando a comer ao almoço, sem remorso e com apetite, as famosas ostras cruas.

Mas daqui em diante já virá uma pontinha de desgosto amargar esse prazer maldoso. A gota de limão que contrair o molusco ainda vivo, nos dará a sensação de que estamos a espremer torturas sobre um ser digno da nossa veneração, porque sabe conhecer o sacrifício!

Antes de a meter na boca é preciso aproximar do ouvido a ostra que temos de deglutir.

Foi esta a nova preocupação que inventou o tal senhor sábio, como se já não tivéssemos tantas! Mas, não faz mal! Ficamos assim sabendo que não há na criação nada que seja absolutamente mudo.

Quantas e quantas vezes a literatura alude ao decantado rumor do silêncio, que nos traz da solidão dos campos ou da vastidão das águas murmúrios frauduleiros de ignota magia? Foi talvez num desses instantes em que a orquestra universal toca em surdina, que o sábio investigador, deitando-se sobre a areia fofa de uma praia, junto a uma velha rocha ostreira, percebeu a tênue voz dos moluscos através as camadas das conchas sotopostas.

Vamos, que a surpresa não devia ter sido pequena, nem tampouco desagradável. Não tardará muito que alguém nos venha dizer o diapasão em que cantam essas pobres enclausuradas, cujo estilo trará à mente, já presumo! a forma de um hino sacro... O passo rude está dado; ciência e acaso, de mãos dadas, descobriram o segredo das ostras; elas cantam, e um homem, naturalmente barbado e muito sério, como convém a um sábio e grande professor, cuja palavra não pode ser posta em dúvida, teve a coragem de o declarar em uma sessão de congresso. O principal está feito; o resto virá depois.

Virá depois, mas levará seu tempo. A interpretação da música e a sua definição estou vendo que não é coisa fácil!

Ainda há pouco, uma pessoa que estimo e cuja opinião em música acato como a melhor, me disse que a opera Saldunes tem muita beleza e larga inspiração. Alegrei-me; mas a par desta, quantas me disseram que não a tinham entendido?

Não entender! Mas a música não é uma língua estranha, que se precise traduzir com dicionários! Ai dela, se assim fosse; deixaria então de ser arte divina para ser fria ciência; deixaria de ser a grande pacificadora, tão necessária ao atribulado coração humano, para ser uma coisa impenetrável e rígida, a que só com esforço as multidões chegariam.

A maioria do público que vai ao teatro ouvir uma opera, não trata, por incompetente, de averiguar se ela é feita desta ou daquela maneira, se a sua instrumentação obedece a todos os primores de uma orquestração opulenta, se a sua tessitura é perfeita, e as suas harmonias bem combinadas.

O que ele vai buscar lá é a emoção, o sentimento que transbordara e se evolará da música com a espontaneidade perturbadora com que o perfume sai de uma flor!

Parece-me que a arte, a não ser para os artistas, não é coisa que se entenda, mas que se sinta. Que importa à maioria que os processos por que tal partitura é feita, sejam complicados e ela dolorosamente trabalhada, se do seu conjunto espinhento e bravio não voou nem uma frase que lhe fizesse vibrar os nervos impassíveis?

Em verdade é muito freqüente ouvir-se dizer: eu não gostei desta ou daquela opera, porque não a entendi.

Essa modesta confissão de incompetência, que, aliás, só é feita em relação à música, visto que para as outras artes toda a gente se julga habilitada e com direito a uma crítica definitiva, deve, até certo ponto, consolar os maestros...

Ah, diante das harmonias da natureza é que não há tanto embaraço: elas entram-nos pela alma a dentro sem que para isso tenham de forçar o entendimento. Quem compreenderá jamais a contextura dessa grande opera em que tomam parte desde o asqueroso sapo dos brejos, até à sentimental patativa dos laranjais?

Ninguém; e todavia todos a sentem e a adoram. É por isso que, por sobre as areias movediças ou as asperezas agrestes dos rochedos mudos, roçam na avidez de uma curiosidade insaciável as cabeludas orelhas dos sábios naturalistas.

Certos de que neste velho mundo tudo é novo, os seus ouvidos esperam ainda, esperarão sempre, surpreender no próprio seio das coisas mudas, vozes ignoradas e perfeitas.

Esta, que o grave professor do Congresso de Pescaria descobriu nas ostras, é deveras extraordinária! Como os cisnes, o viscoso molusco desprende na hora extrema, após um grito agudo, um canto suavíssimo...

Haverá quem, depois disto saber, ingira sem comoção e sem remorsos as saborosas ostras cruas, cruas e vivas?! Não!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Academia de Letras do Brasil de Mariana (Convite: Sarau)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 382)


Uma Trova Nacional

Quando as pétalas se abraçam,
tem-se o milagre da flor.
Quando as vidas se entrelaçam,
tem-se o milagre do amor!
–A. A. DE ASSIS/PR–

Uma Trova Potiguar

Um mistério me alucina
no medo que todos têm:
transpor a negra cortina
que dá acesso ao além.
HÉLIO PEDRO SOUZA/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - Curitiba/PR
Tema: IMAGEM - M/E

“O homem foi por Deus criado
à Sua imagem”... somente.
Deus o fez capacitado
para um viver plenamente.
–MARIA CONCEIÇÃO FAGUNDES/PR–

Uma Trova de Ademar

Sem família e muito pobre,
de um filho que o amor lhe deu,
feito um exame... Descobre
Que nem esse filho é seu!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Há mentiras doces, belas,
que até parecem verdade.
A maior de todas elas
se chama felicidade...
–ELTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

Prevenir é Melhor!
–VITOR COSTA/DF–

Para alguns a voz rouquenha
considerada charmosa,
pode ser que ela contenha
certa beleza enganosa.
Cuide antes que o câncer venha
no laringe e acabe a prosa.

Estrofe do Dia

Quando é dia primeiro de novembro
sinto dentro de mim muita alegria,
pois todo ano nesta data eu me lembro
que Malu Mourão, aniversaria.
E eu buscando no meu imaginário
o que dizer neste seu aniversário,
encontrei este simples dossiê;
que foi feito de verso e de poesia
para eu poder dizer-lhe, neste dia...
“Meus Parabéns Malu, Para Você!!!”
–ADEMAR MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Aurora Boreal
–RENÃ LEITE PONTES/AC–
(à Malu Mourão no seu Aniversário)

Na nota lá, no dia das estrelas,
minha alma transpassou o umbral mundano,
na caravela do grande oceano
transcendental das grandes caravelas.

No plasma sideral das coisas belas,
muito engendrada no divino plano,
mais além dos penares das favelas,
movida ao gozo do silêncio arcano,

Nasci... das dores, no fragor de um Hino.
quis nascer novamente nesta Terra,
por deferência do Reitor Divino.

E, declamando um verso alexandrino,
vou degustar a causa que me espera,
avançar e abraçar o meu destino.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cap. VII


VII
A pílula falante

No outro dia a menina levantou-se muito cedo para levar a boneca ao consultório do doutor Caramujo. Encontrou-o com cara de quem havia comido um urutu recheado de escorpiões.

— Que há, doutor?

— Há que encontrei o meu depósito de pílulas saqueado. Furtaram-me todas...

— Que maçada! — exclamou a menina aborrecidíssima. – Mas não pode fabricar outras? Se quiser, ajudo a enrolar.

— Impossível. Já morreu o besouro boticário que fazia as pílulas, sem haver revelado o segredo a ninguém. A mim só me restava um cento, das mil que comprei dos herdeiros. O miserável ladrão só deixou uma — e imprópria para o caso porque não é pílula falante.

— E agora?

— Agora, só fazendo uma certa operação. Abro a garganta da boneca muda e ponho dentro uma falinha, respondeu o doutor, pegando na sua faca de ponta para amolar. Já providenciei tudo.

Nesse momento ouviu-se grande barulheira no corredor.

— Que será? — indagou a menina surpresa.

— É o papagaio que vem vindo — declarou o doutor.

— Que papagaio, homem de Deus? Que vem fazer aqui esse papagaio?

Mestre Caramujo explicou que como não houvesse encontrado suas pílulas mandara pegar um papagaio muito falador que havia no reino. Tinha de matá-lo para extrair a falinha que ia pôr dentro da boneca.

Narizinho, que não admitia que se matasse nem formiga, revoltou-se contra a barbaridade.

— Então não quero! Prefiro que Emília fique muda toda a vida a sacrificar uma pobre ave que não tem culpa de coisa nenhuma.

Nem bem acabou de falar, e os ajudantes do doutor, uns caranguejos muito antipáticos, surgiram à porta, arrastando um pobre papagaio de bico amarrado. Bem que resistia ele, mas os caranguejos podiam mais e eram murros e mais murros.

Furiosa com a estupidez, Narizinho avançou de sopapos e pontapés contra os brutos.

— Não quero! Não admito que judiem dele! – berrou vermelhinha de cólera, desamarrando o bico do papagaio e jogando as cordas no nariz dos caranguejos.

O doutor Caramujo desapontou, porque sem pílulas nem papagaios era impossível consertar a boneca. E deu ordem para que trouxessem o segundo paciente.

Apareceu então o sapo num carrinho. Teve de vir sobre rodas por causa do estufamento da barriga; parece que as pedras haviam crescido de volume dentro. Como ainda estivesse vestido com a saia e a touca da Emília, Narizinho viu-se obrigada a tapar a boca para não rir-se em momento tão impróprio.

O grande cirurgião abriu com a faca a barriga do sapo e tirou com a pinça de caranguejo a primeira pedra. Ao vê-la à luz do sol sua cara abriu-se num sorriso caramujal.

— Não é pedra, não! — exclamou contentíssimo. — É uma das minhas queridas pílulas! Mas como teria ela ido parar na barriga deste sapo?...

Enfiou de novo a pinça e tirou nova pedra. Era outra pílula! E assim foi indo até tirar lá de dentro noventa e nove pílulas.

A alegria do doutor foi imensa. Como não soubesse curar sem aquelas pílulas, andava com medo de ser demitido de médico da corte.

— Podemos agora curar a senhora Emília — declarou ele depois de costurar a barriga do sapo.

Veio a boneca. O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca.

— Engula duma vez! — disse Narizinho, ensinando à Emília como se engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.

Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca!” E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada, disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.

— Não é preciso — explicou o grande médico. — Ela que fale até cansar. Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isto é “fala recolhida”, que tem de ser botada para fora.

E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.

— Ora graças! — exclamou a menina. — Podemos agora conversar como gente e saber quem foi o bandido que assaltou você na gruta. Conte o caso direitinho.

Emília empertigou-se toda e começou a dizer na sua falinha fina de boneca de pano:

— Pois foi aquela diaba da dona Carocha. A coroca apareceu na gruta das cascas...

— Que cascas, Emília? Você parece que ainda não está regulando...

— Cascas, sim — repetiu a boneca teimosamente.

— Dessas cascas de bichos moles que você tanto admira e chama conchas. A coroca apareceu e começou a procurar aquele boneco...

— Que boneco, Emília?

— O tal Polegada que furava bolos e você escondeu numa casca bem lá no fundo. Começou a procurar e foi sacudindo as cascas uma por uma para ver qual tinha boneco dentro. E tanto procurou que achou. E agarrou na casca e foi saindo com ela debaixo do cobertor...

— Da mantilha, Emília!

— Do COBERTOR.

— Mantilha, boba!

— COBERTOR. Foi saindo com ela debaixo do COBERTOR e eu vi e pulei para cima dela. Mas a coroca me unhou a cara e me bateu com a casca na cabeça, com tanta força que dormi. Só acordei quando o doutor Cara de Coruja...

— Doutor Caramujo, Emília!

— Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando o doutor CARA DE CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.

— Beliscão — emendou Narizinho pela última vez, enfiando a boneca no bolso. Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o tempo poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu.

— Melhor que seja assim, — filosofou Narizinho. — As idéias de vovó e tia Nastácia a respeito de tudo são tão sabidas que a gente já as adivinha antes que elas abram a boca. As idéias de Emília hão de ser sempre novidades.

E voltou para o palácio, onde a corte estava reunida para outra festa que o príncipe havia organizado. Mas assim que entrou na sala de baile, rompeu um grande estrondo lá fora — o estrondo duma voz que dizia:

— Narizinho, vovó está chamando... Tamanho susto causou aquele trovão entre os personagens do reino marinho, que todos se sumiram, como por encanto. Sobreveio então uma ventania muito forte, que envolveu a menina e a boneca, arrastando-as do fundo do oceano para a beira do ribeirãozinho do pomar. Estavam no sítio de dona Benta outra vez. Narizinho correu para casa. Assim que a viu entrar, dona Benta foi dizendo:

— Uma grande novidade, Lúcia. Você vai ter agora um bom companheiro aqui no sítio para brincar. Adivinhe quem é?

A menina lembrou-se logo do Major Agarra, que prometera vir morar com ela.

— Já sei vovó! É o Major Agarra-e-não-larga-mais. Ele bem me falou que vinha.

Dona Benta fez cara de espanto.

— Você está sonhando, menina. Não se trata de major nenhum.

— Se não é o sapo, então é o papagaio! — continuou Narizinho, recordando-se de que também o papagaio prometera vir visitá-la.

— Qual sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacaré. Quem vem passar uns tempos conosco é o Pedrinho, filho da minha filha Antonica.

Lúcia deu três pinotes de alegria.

— E quando chega o meu primo? — indagou.

— Deve chegar amanhã de manhã. Apronte-se. Arrume o quarto de hóspedes e endireite essa boneca. Onde se viu uma menina do seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e de um olho só?

— Culpa dela, dona Benta! Narizinho tirou minha saia para vestir o sapão rajado — disse Emília falando pela primeira vez depois que chegara ao sítio.

Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:

— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...

A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.

— Que é, sinhá? — perguntou.

— A boneca de Narizinho está falando!... A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira.

— Impossível, sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê.

— Mangando o seu nariz! — gritou Emília furiosa. — Falo, sim, e hei de falar. Eu não falava porque era muda, mas o doutor Cara de Coruja me deu uma bolinha de barriga de sapo e eu engoli e fiquei falando e hei de falar a vida inteira, sabe?

A negra abriu a maior boca do mundo.

— E fala mesmo, sinhá!... — exclamou no auge do assombro.

— Fala que nem uma gente! Credo! O mundo está perdido...

E encostou-se à parede para não cair.
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa