terça-feira, 1 de novembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cap. VII


VII
A pílula falante

No outro dia a menina levantou-se muito cedo para levar a boneca ao consultório do doutor Caramujo. Encontrou-o com cara de quem havia comido um urutu recheado de escorpiões.

— Que há, doutor?

— Há que encontrei o meu depósito de pílulas saqueado. Furtaram-me todas...

— Que maçada! — exclamou a menina aborrecidíssima. – Mas não pode fabricar outras? Se quiser, ajudo a enrolar.

— Impossível. Já morreu o besouro boticário que fazia as pílulas, sem haver revelado o segredo a ninguém. A mim só me restava um cento, das mil que comprei dos herdeiros. O miserável ladrão só deixou uma — e imprópria para o caso porque não é pílula falante.

— E agora?

— Agora, só fazendo uma certa operação. Abro a garganta da boneca muda e ponho dentro uma falinha, respondeu o doutor, pegando na sua faca de ponta para amolar. Já providenciei tudo.

Nesse momento ouviu-se grande barulheira no corredor.

— Que será? — indagou a menina surpresa.

— É o papagaio que vem vindo — declarou o doutor.

— Que papagaio, homem de Deus? Que vem fazer aqui esse papagaio?

Mestre Caramujo explicou que como não houvesse encontrado suas pílulas mandara pegar um papagaio muito falador que havia no reino. Tinha de matá-lo para extrair a falinha que ia pôr dentro da boneca.

Narizinho, que não admitia que se matasse nem formiga, revoltou-se contra a barbaridade.

— Então não quero! Prefiro que Emília fique muda toda a vida a sacrificar uma pobre ave que não tem culpa de coisa nenhuma.

Nem bem acabou de falar, e os ajudantes do doutor, uns caranguejos muito antipáticos, surgiram à porta, arrastando um pobre papagaio de bico amarrado. Bem que resistia ele, mas os caranguejos podiam mais e eram murros e mais murros.

Furiosa com a estupidez, Narizinho avançou de sopapos e pontapés contra os brutos.

— Não quero! Não admito que judiem dele! – berrou vermelhinha de cólera, desamarrando o bico do papagaio e jogando as cordas no nariz dos caranguejos.

O doutor Caramujo desapontou, porque sem pílulas nem papagaios era impossível consertar a boneca. E deu ordem para que trouxessem o segundo paciente.

Apareceu então o sapo num carrinho. Teve de vir sobre rodas por causa do estufamento da barriga; parece que as pedras haviam crescido de volume dentro. Como ainda estivesse vestido com a saia e a touca da Emília, Narizinho viu-se obrigada a tapar a boca para não rir-se em momento tão impróprio.

O grande cirurgião abriu com a faca a barriga do sapo e tirou com a pinça de caranguejo a primeira pedra. Ao vê-la à luz do sol sua cara abriu-se num sorriso caramujal.

— Não é pedra, não! — exclamou contentíssimo. — É uma das minhas queridas pílulas! Mas como teria ela ido parar na barriga deste sapo?...

Enfiou de novo a pinça e tirou nova pedra. Era outra pílula! E assim foi indo até tirar lá de dentro noventa e nove pílulas.

A alegria do doutor foi imensa. Como não soubesse curar sem aquelas pílulas, andava com medo de ser demitido de médico da corte.

— Podemos agora curar a senhora Emília — declarou ele depois de costurar a barriga do sapo.

Veio a boneca. O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca.

— Engula duma vez! — disse Narizinho, ensinando à Emília como se engole pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.

Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo instante. A primeira coisa que disse foi: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca!” E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho, atordoada, disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir outra mais fraca.

— Não é preciso — explicou o grande médico. — Ela que fale até cansar. Depois de algumas horas de falação, sossega e fica como toda gente. Isto é “fala recolhida”, que tem de ser botada para fora.

E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.

— Ora graças! — exclamou a menina. — Podemos agora conversar como gente e saber quem foi o bandido que assaltou você na gruta. Conte o caso direitinho.

Emília empertigou-se toda e começou a dizer na sua falinha fina de boneca de pano:

— Pois foi aquela diaba da dona Carocha. A coroca apareceu na gruta das cascas...

— Que cascas, Emília? Você parece que ainda não está regulando...

— Cascas, sim — repetiu a boneca teimosamente.

— Dessas cascas de bichos moles que você tanto admira e chama conchas. A coroca apareceu e começou a procurar aquele boneco...

— Que boneco, Emília?

— O tal Polegada que furava bolos e você escondeu numa casca bem lá no fundo. Começou a procurar e foi sacudindo as cascas uma por uma para ver qual tinha boneco dentro. E tanto procurou que achou. E agarrou na casca e foi saindo com ela debaixo do cobertor...

— Da mantilha, Emília!

— Do COBERTOR.

— Mantilha, boba!

— COBERTOR. Foi saindo com ela debaixo do COBERTOR e eu vi e pulei para cima dela. Mas a coroca me unhou a cara e me bateu com a casca na cabeça, com tanta força que dormi. Só acordei quando o doutor Cara de Coruja...

— Doutor Caramujo, Emília!

— Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando o doutor CARA DE CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.

— Beliscão — emendou Narizinho pela última vez, enfiando a boneca no bolso. Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o tempo poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu.

— Melhor que seja assim, — filosofou Narizinho. — As idéias de vovó e tia Nastácia a respeito de tudo são tão sabidas que a gente já as adivinha antes que elas abram a boca. As idéias de Emília hão de ser sempre novidades.

E voltou para o palácio, onde a corte estava reunida para outra festa que o príncipe havia organizado. Mas assim que entrou na sala de baile, rompeu um grande estrondo lá fora — o estrondo duma voz que dizia:

— Narizinho, vovó está chamando... Tamanho susto causou aquele trovão entre os personagens do reino marinho, que todos se sumiram, como por encanto. Sobreveio então uma ventania muito forte, que envolveu a menina e a boneca, arrastando-as do fundo do oceano para a beira do ribeirãozinho do pomar. Estavam no sítio de dona Benta outra vez. Narizinho correu para casa. Assim que a viu entrar, dona Benta foi dizendo:

— Uma grande novidade, Lúcia. Você vai ter agora um bom companheiro aqui no sítio para brincar. Adivinhe quem é?

A menina lembrou-se logo do Major Agarra, que prometera vir morar com ela.

— Já sei vovó! É o Major Agarra-e-não-larga-mais. Ele bem me falou que vinha.

Dona Benta fez cara de espanto.

— Você está sonhando, menina. Não se trata de major nenhum.

— Se não é o sapo, então é o papagaio! — continuou Narizinho, recordando-se de que também o papagaio prometera vir visitá-la.

— Qual sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacaré. Quem vem passar uns tempos conosco é o Pedrinho, filho da minha filha Antonica.

Lúcia deu três pinotes de alegria.

— E quando chega o meu primo? — indagou.

— Deve chegar amanhã de manhã. Apronte-se. Arrume o quarto de hóspedes e endireite essa boneca. Onde se viu uma menina do seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e de um olho só?

— Culpa dela, dona Benta! Narizinho tirou minha saia para vestir o sapão rajado — disse Emília falando pela primeira vez depois que chegara ao sítio.

Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:

— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno...

A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.

— Que é, sinhá? — perguntou.

— A boneca de Narizinho está falando!... A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira.

— Impossível, sinhá! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mecê.

— Mangando o seu nariz! — gritou Emília furiosa. — Falo, sim, e hei de falar. Eu não falava porque era muda, mas o doutor Cara de Coruja me deu uma bolinha de barriga de sapo e eu engoli e fiquei falando e hei de falar a vida inteira, sabe?

A negra abriu a maior boca do mundo.

— E fala mesmo, sinhá!... — exclamou no auge do assombro.

— Fala que nem uma gente! Credo! O mundo está perdido...

E encostou-se à parede para não cair.
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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