segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Lausimar Laus (O Guarda-Roupa Alemão)


O guarda-roupa alemão, segundo romance de Lausimar Laus, publicado em 1970, a autora reconstitui parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por imigrantes alemães, valorizando os conflitos culturais e identitários pertinentes aos deslocamentos espaciais e culturais dessa população.

O romance narra, em dois cenários diferentes, Blumenau e Itajaí, a vida dos imigrantes em Santa Catarina. Pelo ponto de vista de Homig, a história da família Ziegel e, através dela, a da imigração alemã no Vale do Itajaí. Quilômetros abaixo, na barra do rio, e pela perspectiva da professora Lula, a da imigração açoriana. A imigração alemã é, no entanto, o ponto central do livro.

Lausimar Laus preocupou-se em registrar as influências culturais trazidas pelos alemães (Goethe, Heine, Verlaine), assim como o folclore catarinense presente na região.

O romance O guarda-roupa alemão é em si mesmo a voz desta cultura híbrida na busca da identidade cultural. Identidade esta que abriga intersecções relativas ao gênero, ao lugar e à experiência. A voz de Lausimar é única na representação de um contexto determinado social e culturalmente, marcado pela feminilidade e suas relações ideológicas e de poder.

Constantemente aparecem as canções dos canoeiros e o modo de falar catarinense (obrados, trasantonte, constipação). Homig representa essa mistura cultural, a qual se constituiu na soma de diferenças. O processo de construção dessa cultura híbrida, seus confrontos identitários serão uma das direções de leitura do romance, desenvolvidas ao longo desse trabalho.

A obra dá destaque às tensões do Estado Novo com a perseguição aos alemães, o medo daí decorrente, as humilhações impostas a um dos protagonistas, o velho Werther no final da guerra: Uma avalanche de gente reunida na praça. Banda de música e tudo (...), vinha o velho Werther com um saco pendurado no pescoço, com a cara de Hitler desenhada em cima. Na praça, (...), mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro (...) e obrigado a beber óleo de carro.

Lausimar mescla, de maneira prazerosa, o cômico, o trágico, o poético. Além disso, seu trabalho com a linguagem é cuidadoso e detalhado. Com Lula nos vem o linguajar de origem açoriana, seus termos característicos, o emprego do “tu”, ainda usado, com o verbo na segunda pessoa, apenas no litoral catarinense e no cearense, justamente onde os açorianos se fixaram.

Do núcleo alemão, os termos que se usam em Santa Catarina, as gozações feitas com os sermões do padre, obrigado a falar português de repente, no período getulista, e mais as idéias nazistas e não-nazistas, as perseguições políticas, o amor realizado e aquele que não se encontra, porque procurado onde não pode estar, como na história de Menininha.

O texto é narrado inicialmente por Homig, o último descendente da família Ziegel e que tinha o dever de abrir a gaveta do guarda-roupa onde estava guardado um segredo de família. O guarda-roupa é a peça que acompanhou as quatro gerações da família. Sentado à sua frente, Homig reconstitui a história destas gerações.

Lausimar Laus deixa claro, em carta para um amigo, que tudo o que escreve vem de suas vivências e, de forma bastante explícita, comenta sobre o guarda-roupa e sua relação com esta peça fundamental dentro do seu romance:

O guarda-roupa era um móvel que havia em casa de minha avó Maria Amélia Stuart, mãe de minha mãe, que se casara com um norueguês. Era, de fato, um móvel alemão, quase até o teto, que me fazia, quando criança, pensar muito nele. Tinha milhões de coisas antigas dentro dele e até figurinos do século XVIII. A minha imaginação maquinava sempre. Pra mim ele não era um móvel. Era gente, porque eu sempre falava muito sozinha, como se houvesse gente a minha volta, quando criança.

O romance de Lausimar Laus retoma parte da história da cidade de Blumenau, colonizada por alemães a partir de 1850, preocupando-se com o registro de fatos históricos reais relativos ao contexto social e político dos primeiros cem anos da cidade. Esse período compreende a chegada dos alemães pioneiros, os quais deviam expulsar os índios e demarcar as terras, até a época da nacionalização imposta por Getúlio Vargas, quando a comunidade de origem alemã sofre grandes repressões. Além da preocupação com a realidade histórica, a autora explora, com muita propriedade, os conflitos culturais e identitários relativos à experiência da imigração, quando duas ou mais culturas devem conviver com suas diferenças e, a partir daí, estabelecer uma nova ordem simbólica para suas referências. Esses conflitos culturais incluem questões relativas à nação, à raça e ao gênero.

O registro dos acontecimentos históricos na narrativa é uma preocupação constante da autora. As enchentes de 1880 e de 1911, as primeiras fábricas da região, Hering e Kormann, a política regional e nacional e suas personalidades, Vitor Konder, a Guerra do Paraguai, a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, o período de nacionalização imposto por Getúlio Vargas constroem o cenário do romance.

Foco narrativo

O tempo da narrativa não segue a cronologia e avança de acordo com o fluxo descontínuo do pensamento do personagem, assim como os vários pontos de vistas que se misturam em uma espécie de fusão de terceira e primeira pessoas. Partes são narradas em primeira pessoa pelo próprio Homig e outras extraídas do diário de sua tia Hilda e de seu avô Klaus, de onde partem os pontos de vista de sua avó Sacramento e da professora Lula.

A narração da terceira pessoa onisciente é feita com maior presença nas descrições de Homig e de seus sentimentos neste dia de reflexão sobre sua história de vida. Por isso, pode-se pensar em um mais um ponto de vista, o do Guarda-roupa alemão, já que este recebe um tratamento humanizador na narrativa de Homig e, estando um à frente do outro, as considerações parecem ser feitas a partir do olhar do próprio guarda-roupa. Homig, o sensível. Chapéu meio desabado na testa. A calça de veludo surrada, puxando mais para o cinza. Houve tempo em que era azul.

Personagens

As mulheres são as personagens centrais de todas as histórias lembradas por Homig. Sua bisavó Ethel, a Grossmutter, e sua avó índia, Sacramento são suas maiores referências, pois foi criado por elas. Sua mãe morreu moça, numa epidemia da gripe espanhola, e seu pai na Segunda Guerra Mundial. São estas duas personalidades contraditórias que marcam a vida de Homig, percorrendo toda a narrativa. Ethel é caracterizada pela típica alemã, trabalhadora, saudosa de sua pátria, impondo sempre a disciplina e a ordem da casa. Porém, por trás da rigidez com os outros e, principalmente, consigo mesma, havia uma mulher sonhadora, ligada à arte e à liberdade. Homig encontra em umas das gavetas do guarda-roupa desenhos de sua bisavó e entende que sua vida dura de colona destruiu muitos de seus sonhos. No meio dos desenhos, uma foto:

Mas como a bisavó fora bonita! Puxa vida! Até que aquele cabelo complicado, com uma grande igrette na cabeça, lhe dava uma graça estupenda. A legenda diz que ela nascera em Paris, de pais alemães e era autora de composições, onde se harmonizavam cores de extrema suavidade.

Tà certo. E a gente nunca soube da genialidade da Grossmutter. Pelo menos vó Sacramento só contava sobre aquela mulher forte como granito. Era lidando. Plantando flores, mas também plantando aipim. O morango. Cavando a terra. O avental sempre muito branco, rodeado de bordado inglês. Pesadona. Vermelha. Dando ordens. Organizando as festas da colônia. Aconselhando o marido. Nunca em jeito macio. Ás vezes, quando o velho Ziegel lhe fazia que não com a cabeça, ou resmungando, contra suas intenções, ela levantava a testa e dizia alto:

- “Mann, ajuda-me. Eu me esforço demais. Quebro todos os atalhos para não encontrar comigo mesma. Porque o dia em que eu encontrar comigo, não sei mesmo o que acontecerá. (pág. 32)

Sacramento é a figura da avó carinhosa, compreensiva e religiosa, com quem Homig tem grande afinidade. Sua adaptação à idéia de casamento e aos costumes alemães, assim como sua iniciação sexual são narrados através do diário de Klaus. Sua ingenuidade e meiguice marcam todos os episódios em que está envolvida, e estes são os sentimentos lembrados por Homig. Ele que ouvia suas histórias enquanto contava as “preguinhas” de seu rosto.

Hilda é a filha mais nova de Ethel, uma figura rapidamente caracterizada no romance, mas com uma personalidade marcante. Amante da liberdade e desprendida de qualquer preconceito. Suas atitudes chocam a todos: Pegava o cavalo bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava a vontade. O falatório da vizinhança (p. 6). Em seu diário estão suas indagações sobre a vida e os códigos que a regem, acreditando na natureza das coisas e dos sentimentos como obras de Deus, então, não podem ser pecados. Todos acham que foi para Alemanha, segundo ordens de sua mãe, mas seu verdadeiro destino só é revelado no final do romance.

Grande parte da narrativa é construída a partir do ponto de vista de Lula, uma professora brasileira, vinda de Itajaí, para ministrar aulas de português em uma escola pública. Sua figura é mencionada, inicialmente, no diário de Klaus, mas através de sua mente uma história à parte é contada, a dos brasileiros, descendentes de açorianos, de espanhóis, vindos de Itajaí, de Florianópolis. Estes que chegam a Blumenau na tentativa de uma vida melhor. Lula mora na casa de uma tia, Maria Clara, junto com duas primas, Cidinha e Dora.Viveu dificuldades econômicas em Itajaí, junto à sua avó e seus irmãos, os quais ainda são sua grande preocupação. Através de seu ponto de vista dois importantes episódios são narrados: a enchente de 1911 e o caso de menininha. Desde as notícias da enchente, até a chegada das águas, o abandono das casas e o refúgio das pessoas para o convento das irmãs, o local mais alto da cidade, são vividos pela narração de Lula.

Menininha é filha adotiva de seu Tibúrcio e dona Tita, casal amigo de Itajaí, favorecido economicamente. Foi criada com muito zelo e rigidez pelos pais, os quais não a deixavam sair sozinha de casa, nem ter muitas amizades. Por causa de uma hérnia, seu Tibúrcio deve ser operado e deixa a filha aos cuidados de Dona Maria Clara, única pessoa em quem confia para isso. Menininha, porém, é muito bonita e apaixonada pela vida e esta é a primeira oportunidade para viver suas aventuras longe da prisão de sua casa. Lula descobre seus encontros, às escondidas, com um homem casado, seu Ataliba, foguista do “vaporzinho” Blumenau. Menininha faz revelações de suas experiências homossexuais para Lula, a qual, muitas vezes, sentiu-se atraída por sua beleza. Enfim, Menininha acaba trabalhando como “china” em Itajaí, casa-se, mas nunca se desliga de suas atividades.

Homig, personagem-narrador, o homem que constrói toda a história da família a partir de lembranças que se cruzam no tempo, num tempo que cruza fronteiras constantemente, é resultado da cultura híbrida que se constitui na soma de distintas partes: a língua alemã (dentro de casa), a língua portuguesa (na escola), a língua francesa (da avó indígena). Em uma cena do romance, Homig se encontra na rua tentando afirmar-se como brasileiro diante uma situação que exigia esse tipo de comportamento. Em casa, no entanto, apesar da mãe dirigir-se a ele em língua portuguesa, todas as referências são da cultura alemã.

Temática

O romance aborda várias temáticas sobre a colonização alemã na região de Blumenau. A demarcação de terras e o confronto com os índios são acontecimentos narrados pelo avô Klaus, o qual mostra respeito pela cultura nativa e acaba apaixonando-se por uma indiazinha de doze anos criada por freiras francesas. Sacramento é a vó índia de Homig, representante da simplicidade e religiosidade, por quem ele tem muito carinho e só lembranças ternas. As dificuldades enfrentadas por Sacramento quanto à compreensão da língua, à adaptação aos novos costumes e, principalmente, quanto à rejeição por parte de Ethel, mãe de Klaus, que não aceitava o casamento do filho com uma “bugra”, estão também registradas no diário do avô.

O rigoroso trabalho no campo e com as coisas da casa aparece constantemente na narrativa, mostrando, mais especificamente, a dedicação das mulheres à organização familiar, à educação dos filhos e à manutenção da cultura germânica, pela qual têm tanto orgulho. As descrições das casas, dos jardins, das vestimentas e da própria cidade, demonstram que os imigrantes viveram muitos anos em um núcleo germânico fechado e que recebiam pouca interferência de fora.

Abordagens como racismo, choque entre culturas distintas, o amor dos imigrantes pela pátria distante, assim como a assimilação de diferentes culturas pelas novas gerações, estão registradas na narrativa. Muitos desses conflitos são apresentados através de cenas que chegam ao cômico, construindo uma caricatura do imigrante alemão. É o exemplo da tia de Homig, Herna, a qual, necessitando uma transfusão de sangue, tem como único doador compatível o mulato Praxedes, tripulante do “vaporzinho” Blumenau. Herna, alemã nacionalista, entusiasta da “Nova ordem” proposta por Hitler, não aceitava misturar seu sangue com o de um mulato brasileiro: “Brasileiro tem sífilis...”. O doutor Büchmann, ginecologista conceituado e conhecido por sua personalidade autoritária, acaba usando da força física para realizar tal transfusão, inclusive com as enfermeiras, as quais recebiam caneladas, quando não faziam como foi mandado. Para complicar a situação, o voluntário a salvar a vida da alemã, em meio a tantos xingamentos, acaba desistindo da ação por achar um desrespeito à sua raça:

Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou mais é m’imbora. Deixa esse diabo morrê de uma vez...fico dês das 6 da manhã im jejum pra sarvá uma merda dessas e ela ainda me chama de sifílico?... O Dr. Büchmann, vermelho como um pimentão, os dentes cerrados, a boca aberta, agarrou o mulato, deu um safanão, jogou-o na cama e disse com todas as suas forças e todos os seus erres: “Fai a merrrdaaa!”. O Praxedes, de mulato que era, passou a meio desbotado...(p. 153)

Enredo

Lausimar Laus conta, através de uma linguagem simples, descontraída e, muitas vezes, carregada de um grande senso de humor, a história de quatro gerações de uma família de imigrantes alemães, os Ziegel, colonizadores da cidade de Blumenau. A família Ziegel é o centro da narrativa, porém várias outras histórias familiares cruzam-se entre si, tecendo, assim, um painel dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau. A autora faz referências desde a chegada dos alemães, por volta de 1850, aos conflitos e ao extermínio dos índios daquela região, até a segunda guerra e o período de nacionalização imposta por Getúlio por volta de 1940.

A história é contada, inicialmente, por Homig, um homem de sessenta anos, solteiro, doente do coração. Sua sensibilidade aguçada alerta que sua vida está chegando ao fim, assim como a história de sua família, já que é o último descendente dos Ziegel. Na casa onde viveu toda sua infância, sentado em frente ao guarda-roupa alemão, Homig revive várias histórias de sua família na colônia de Blumenau. O guarda-roupa é uma peça que veio da Alemanha há cem anos com seus bisavós, Ervin Ziegel e Ethel Moltke, e acompanhou todas as gerações da família, sempre no mesmo lugar, guardando documentos importantes, enxovais e segredos.

Homig tem a incumbência de abrir uma gaveta do guarda-roupa, a qual foi trancada por sua bisavó ao falecer, contendo um segredo que só deveria ser revelado ao último Ziegel vivo. É chegada a hora de abrir a gaveta, pois a casa onde viveu toda sua infância foi vendida, encerrando o ciclo de sua família. Na verdade, havia mais um primo que ainda estava vivo, Ralf. Dez anos mais velho que Homig, chegou da Alemanha já adulto e formado e, por isso, viveu apenas parte da história dos Ziegel em Blumenau. A atitude de abrir a gaveta é hesitada várias vezes e Homig leva um dia inteiro para se decidir enquanto, em frente ao guarda-roupa, as lembranças de vida lhe vêm à cabeça. É Ralf quem o ajuda abrir a gaveta e quem, afinal, descobre o segredo da família, pois Homig já bastante debilitado física e emocionalmente, é levado para o hospital.

Fonte:
Passeiweb

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