Moleque do meu tempo, em Óbidos, não dispensava em casa ou na rua uma brincadeira de bola, de pião, jogo de carteira de cigarro, belário, camonha, empinar papagaio ou simplesmente jogar pedra nas frondosas mangueiras que existiam na cidade, que o tempo e o desleixo das administrações foram deixando acabar.
Todo o time da minha faixa etária era por completo integrado nesse fuzuê, cujos mestres perlustravam os bancos das escolas municipais e ali concebiam as brincadeiras, algumas de duvidoso bom gosto, como aquela de jogar bomba de São João, comprada nas barracas dos marreteiros da Praça de Sant’Ana, em cima dos cães vira-latas só para vê-los correr sem rumo, latindo em desespero pelo açoite dos estampidos. Coisa de moleque espora, com certeza...
Vez por outra a adrenalina aumentava. Era quando eu resolvia subir a Serra da Escama para passarinhar lá no alto, inicialmente armado de baladeira e com o passar dos anos, com rifle calibre 22 de repetição e ferrolho na culatra. Perdi a conta das piaçocas abatidas no Lago Pauxis (que me perdoe o IBAMA, na época chamado IBDF), das cobras venenosas ou não que atravessavam o meu caminho e das saborosas “santa cruz”, uma espécie pouco maior que a codorna, que no Nordeste é conhecida como “avoante”, a exemplo daquelas, degustadas nos espetos de improvisadas fogueiras.
Quando não apareciam as minhas imbiaras prediletas, ficava eu sentado em um dos canhões Armstrong lá no alto da serra, desfrutando a bela visão da curva estreita do Rio Amazonas, com os telhados da cidade servindo de pano de fundo ao intenso verde da paisagem, compondo um quadro contraposto, naquilo que os poetas chamam de harmonia dos contrastes, até hoje registrada em minha memória.
Nesse dia não foi diferente. Atravessei a ponte de madeira sobre o Laguinho, inspecionei suas margens atrás de uma que outra piaçoca e, a míngua de pássaros que não pipiras e bem-te-vis, subi a serra pela tortuosa trilha que eu conhecia como a palma da mão. Lá do alto, recuperado o fôlego (ufa!!), fiquei maravilhado com a frondosa mangueira recheada de frutos amarelos, no ponto de serem consumidos. Com a ajuda da faca que sempre portava, deliciei-me com aquela iguaria presenteada pela natureza, o suficiente entretanto para não ser vítima de indigestão.
Tudo parecia estranhamente calmo à minha volta. Aliás, deliciosamente calmo. Um silêncio convidativo me impedia de empreender o caminho de volta, apesar do velho jargão de que “pra baixo todo santo ajuda...”. Demorei-me o que pude, desfrutando daquela paz só encontrável no elevado das montanhas. Quem já esteve nas serras gaúchas, cariocas ou cearenses ou em Campos do Jordão que o diga. Só que tudo tem um limite, a tarde ia se findando - soava a hora do regresso.
Redobrei a cautela por causa das cobras. Já adulto, esse sobrosso levou-me a procurar pelo “mestre” curandeiro Didico Assis, que, após um ritual de iniciação, tornou-me imune a sua peçonha. Isto porque desde criança, sempre tive medo delas. Tanto medo, que quando via uma, preferia matá-la primeiro e depois verificar se era ou não venenosa. Dessa regra não escapavam nem as inofensivas jibóias ou as mal humoradas pepéuas. Cheguei ao sopé do morro sem qualquer atropelo. Bastava agora vencer uma largura de uns duzentos metros, driblando as terríveis touceiras de juquirís e jurubebas, para atingir a cabeceira da ponte. E foi o que fiz, olho pregado no murizal, atento ao menor movimento do capim.
Foi quando ouvi o piado característico e insistente. Apurei o ouvido para vencer o barulho do vento, assim identificando o rumo daquele ruído familiar. A aproximação foi lenta. Ergui com o cano da arma o tufo de capim e para minha surpresa, lá estava um pinto pedrês praticamente saído do ovo, piando de fome ou com saudades da mãe. Fiz uma busca ao redor na tentativa de encontrar a galinha e nada; ele estava mesmo sozinho no meio do mato e com a noite caindo, morreria de fome ou devorado pelas serpentes.
Segurei-o nas mãos colocando-o dentro do bornal que eu trazia atracado no boldrié e assim cheguei em casa com aquela preciosidade, despertando a curiosidade da família, que queria saber onde e como eu conseguira aquele inusitado troféu. Explicações dadas e aceitas, foi o pequeno animal solto em nosso quintal, uma espécie em miniatura de Arca de Noé, onde proliferavam patos, galinhas, galos, porcos e outros bípedes e quadrúpedes, sempre lembrados às vésperas de algum aniversário ou no dia de Natal.
Ocorre que o pinto passou a desfrutar de mordomias. Para início de conversa, comia milho moído na minha mão, pelo menos uma vez ao dia. Eu aparecia no quintal e lá vinha ele atrás de sua porção de comida fosse ou não hora da chepa. Não satisfeito com esse tipo de tratamento diferenciado, deu de andar atrás de mim pela casa e pelo quintal, tal qual um cachorro anda atrás do dono. E de tanto comer na hora ou fora de hora, cresceu precocemente e virou um frangão robusto, enfrentando nosso galo “Argentino” em renhidas disputas pelo escancarado amor das galinhas, que o cortejavam abertamente. Situação complicada essa, que estava a merecer uma solução, que ainda não se poderia vislumbrar qual era.
Nessa época eu tinha uma bicicleta comprada na “Casa Gina”, que ficava bem ao lado da “A Pernambucana” e nela eu fazia miséria nas ladeiras da Cidade Presépio, sempre em alta velocidade. A sucessão de tombos era uma conseqüência natural dessa imprudência; meus braços e pernas viviam permanentemente feridos e quando estavam sarando, outra queda me impunha novas cicatrizes, inclusive no rosto, uma das quais torna até hoje incômoda a prosaica tarefa de fazer a barba. Quando esse fato aconteceu, eu estava me recuperando de uma derrapagem que sofrera na ladeira do mercado, que fez desaparecer a pele do meu joelho direito.
Minha mãe se queixou que uma quantidade exagerada de urubus vivia à espreita em nosso quintal, pousados na cerca de pau-a-pique, esperando a hora de brigar pelos rebotalhos de carne que eram descartados por nossa empregada doméstica, a bondosa Eulália. Um deles, inclusive, de maneira acintosa e precipitada, entrou voando dentro de casa, na tentativa de saciar a fome, quase fazendo minha querida irmã Edna (que tinha medo até dos filmes do Drácula), desmaiar de pavor. Foi a gota d’água! Chegou-me o apelo materno para que eu desse um jeito naquela insustentável situação, de vez que os vizinhos também se queixavam do mesmo abuso da urubusada, mas não tomavam nenhuma iniciativa.
Urubu de Óbidos é igual a urubu do Ver-o-Peso ou de qualquer outra parte. Adora uma bagunça. E com autorização de dona Lady, decidi solucionar aquele aflitivo problema. Combinei com a Eulália que ela me avisaria o dia em que cuidaria da carne, para atrai-los. E assim foi feito. Ela começou seu trabalho como se nada de anormal fosse ocorrer, cantarolando baixinho “Coração de Papel”, música de sua predileção; esgueirei-me por trás de um tambor de água que ficava bem próximo, empunhando o rifle e dali pude enquadrar na alça de mira o urubu mais vistoso e ousado, que vivia aporrinhando a rotina da minha casa.
Não obstante, antes do tiro fatal, senti uma dor lancinante no bendito joelho esfolado, cuja pele eu perdera na ladeira do mercado. Olhei e vi que era o desgraçado do frangão, de quem nem estava lembrando, que pelo vício de andar atrás de mim, dera uma senhora beliscada no ferimento, arrancando parte dele e fazendo o sangue jorrar com abundância, impondo-me uma dor que me fez gritar, para a sorte daquela revoada de corvos que simplesmente bateu asas, sumiu, como que fazendo gozação da minha cara.
A juventude é uma fase de impulsos, por isso julgo dispensável contar os detalhes do final dessa história. O almoço do dia seguinte foi um suculento frango, que eu particularmente comi com um misto de fome e de desforra, porque o ferimento infeccionou (“arruinou”, como diria o mestre Bereco), obrigando-me a recorrer aos inestimáveis serviços da Zuraia, a zelosa enfermeira da Santa Casa de Misericórdia, até sua completa cicatrização.
Jamais senti remorso pelo que fiz, pois o próprio pedrês não soube valorizar as regalias que desfrutou no seu privilegiado espaço. Ademais, faltou-lhe o necessário instinto para assimilar uma lição básica nas regras de sobrevivência no mundo dos animais, isto, sem qualquer eiva de duplo sentido: pinto que trai o dono tem mais é que levar o farelo.
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