CORAÇÃO LIVRE
Ao Augusto Rocha
Ah que enfim se rompeu o ergástulo sombrio,
Onde estiveste preso, ó pássaro erradio!
Rompeu-se o espesso véu dessa brutal prisão,
Onde choraste, mas de dor, mas como um cão.
Livre agora, porém, de tudo, sim, de tudo,
A esse cárcere azul, cárcere de veludo,
Mas cárcere cruel, que te fez tanto mal,
Não tornes nunca mais, ó vagabundo ideal.
Não tornes nunca mais, e nunca mais te iludas,
Ao trágico furor dessas cóleras mudas,
A esse nojo, afinal, que tanto ódio te fez,
O incoercível horror banal da fixidez.
Livre. É poder fugir por esse mundo afora...
Quem mais feliz que tu, meu coração, agora?
Livre. O espaço é teu, é teu todo esse ar:
É somente bater as asas e voar...
Segue essa curva azul. É o caminho mais reto,
Ó nômade febril, ó trovador inquieto!
Livre por condição e por índole, tu
Nasceste para ser como um selvagem nu.
Um selvagem, porém, que tem paixão por astros,
Estátuas, capitéis, colunas e alabastros...
Quanto me sinto bem, e como é bom saber
Fugir assim, batendo as asas de prazer!
Ser livre para mim é tudo quanto eu amo:
Não há como poder saltar de ramo em ramo.
Não há gozo melhor, seja lá como for,
Do que esse de voar de uma para outra flor.
Nem orgulho maior e nem glória tamanha
Que o delírio de andar de montanha em montanha!
Olha. Não pares no teu caminho, a não ser
Só para olhar o que for digno de se ver.
O que tiver o dom soberbo de arrancar-te
Numa explosão sincera as lágrimas com arte.
Segue. Na fonte em que beber a ovelha, em paz,
Com as tuas próprias mãos, tu também beberás.
E a árvore sob a qual dormires o teu sono,
Há de dar-te abundante os seus frutos de outono.
E que perfume bom! Que embriaguez assim
Por esse vasto céu, por esse azul sem fim!
O dia é uma canção de luz maravilhosa,
Que se pudesse ouvir cantar por uma rosa...
Segue pois, segue pois, sem saber onde vais...
Nômade, o teu destino é esse e nada mais!
LIED
Ao Júlio Prestes
Num cavalo branco, vales e barrancos,
Caminha p’ras guerras em tempos de paz
Plumas todo verdes, lírios todo brancos...
– Cavaleiro, não vás!
Cavaleiro andante (fulgem armaduras!)
Galopa, galopa, sob estrelas más.
Vai correr o Mundo pelas aventuras...
– Cavaleiro, não vás!
Cavaleiro fino como um argueiro,
Com espada d’ouro, rico falbalás,
Cabelos ao vento – Palmas! – Cavaleiro!...
– Cavaleiro, não vás!
Cavaleiro triste (ceifa a lua nova)
– Que é da sua dama? Que é do seu gilvaz? –
Entra p’los salgueiros caminho da cova...
– Não direi que não vás!
1899
A FOME DE ERISÍCTON
Meu coração é como esse infeliz que um dia
Ceres, p’ra o castigar, deu-lhe fome voraz,
Deu-lhe uma fome tal que quanto mais comia,
Mais queria comer e não ficava em paz.
Era a fome canina, era o horror e a fúria,
De tal maneira que todos os bens vendeu,
E reduzido enfim a uma extrema penúria,
Vendeu o que era seu o que não era seu...
Desesperado até veio a vender a filha
Metra, que era, porém, uma estrela polar,
Tinha a virtude ideal, possuía a maravilha,
O dom de se poder metamorfosear...
Logo, logo que o pai conseguia vendê-la,
Mal se via nas mãos do seu possuidor,
Transformava-se em flor, ou então em cadela,
Em pássaro, em veado, em boi ou em pescador.
Mas a fome cruel daquele esfaimado
Uivava como os cães, os lobos e os chacais,
Nem bem tinha engolido o último bocado,
Sangrando de desejo, ela pedia mais...
Davam-lhe de comer, porém, doentia e louca,
Queria devorar o mundo de uma vez,
O olhar como um demônio, escancarada a boca,
Tomada de um furor bestial de embriaguez.
E tanto desejou, afinal, e tanto ela
Pediu, e soluçou, e ambicionou, e quis,
Que não havendo mais com que satisfazê-la,
Deu em se devorar a si próprio, o infeliz!
Março – 1906
Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011
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