segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VII

Utilizando-se da linha temática regionalista e amorosa, Jorge Amado estrutura e compõe, em plena proximidade com o brasileiro do interior nordestino, as suas representações identitárias, em especial do imigrante árabe, do sul da Bahia, dos meados dos anos Vinte.

Nessa construção, afasta-se da perspectiva etnocêntrica, com a qual, no mais das vezes, se representa o diferente de si. Fugindo ao etnocentrismo, Jorge Amado se aproximaria da concepção interativa da identidade, na qual a identidade se plasma a partir da ‘interação’ entre o eu e a sociedade, como expõe Stuart Hall:

De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. [...] A identidade, então, costura (ou para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis. (HALL, 2001, p. 11-12)

Na utilização dessa visão sociológica, Jorge Amado procede à sua configuração do imigrante árabe pelas letras da aproximação; da ausência de estranhamento, em plena interação com a cultura baiana, como se afere da passagem, na qual Jorge Amado, retomando Machado de Assis, expressa o sentimento de mal estar de Nacib ante o cozinheiro estrangeiro que contratara, a conselho do seu sócio Mundinho, na presença do qual se sente estrangeiro, amedrontado e humilhado, como se pode observar nas passagens a seguir:

O cozinheiro chegou, via Bahia, junto com Mundinho Falcão [...] Nacib embasbacou-se ante o cozinheiro. Estranha criatura: [...] Português de nascimento, de sotaque pronunciado, muitas palavras a caírem depreciativas se seus lábios eram francesas. Nacib humilhado não as entendia [...] Exigia fogão de metal, a carvão. Quanto antes. Nacib sentia-se humilhado e amedrontado. Ia dizer qualquer coisa, o ‘chef de cuisine’ aplicava-lhe um olho crítico, superior, deixava-o gelado. Não fosse o homem ter vindo do Rio, custar tanto dinheiro e, sobretudo, ter sido ideia de Mundinho Falcão, e o mandaria estourar-se no inferno com suas comidas de nomes complicados e suas palavras francesas. [...] Quanto a Nacib, esse brasileiro nascido na Síria, sentia-se estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à exceção do quibe. Era exclusivista em matéria de comida. (AMADO, 1979 1, 340-341)

Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava  o açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. [...] O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da província nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços. (MACHADO, 1994, p. 676)

Nessa concepção interativa, em que lança mão do melhor de nossa tradição literária, Jorge Amado procede à representação de Nacib. Dessa interação não escapará sequer os traços físicos da personagem, curiosamente aproximada do biótipo nordestino, como atesta a descrição física do personagem, em especial o realce de sua “cabeça chata”, traço fisionômico pelo qual se costumava distinguir os brasileiros oriundos do Nordeste:

Frondosos bigodes plantados num rosto gordo e bonachão, de olhos desmesurados, fazendo-se cúpidos à passagem das mulheres. Boca gulosa, grande e de riso fácil. Um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido, “barriga de noves meses”, como pilheriava o Capitão ao perder uma partida no tabuleiro de damas. (AMADO, 1979 1, p. 40 – grifos nossos)

Nesse percurso, Jorge Amado ressaltaria o legítimo pertencimento de Nacib ao Brasil, à Ilhéus, reconhecendo-o como um verdadeiro grapiúna. Recorrentemente assinalada, a condição pátria de Nacib seria ora apontada pelo narrador, ora pelo próprio personagem que, continuadamente, elide sua terra de nascimento, identificando-a apenas como a terra de seu pai, como se afere das passagens abaixo:

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus com quatro anos, vindo num navio francês até à Bahia. Naquele tempo, no rastro do cacau dando dinheiro, chegavam à cidade de alastrada fama, diariamente, pelos caminhos do mar, do rio e da terra, nos navios, nas barcaças e lanchas, nas canoas, no lombo dos burros, a pé abrindo picadas, centenas e centenas de nacionais e estrangeiros [...] Chegavam e em pouco eram ilhenses dos melhores, verdadeiros grapiúnas plantando roças, instalando lojas e armazéns. (AMADO, 1979 1, p. 39)

– Tudo que quiser, menos turco. Brasileiro, – batia com a mão enorme no peito cabeludo – filho de sírios, graças a Deus. [...] – Na terra de meu pai... – assim começavam suas histórias nas noites de conversas longas, quando nas mesas do bar ficavam apenas uns poucos amigos. Porque sua terra era Ilhéus, a cidade alegre ante o mar, as roças de cacau, aquela zona ubérrima onde se fizera homem. Seu pai e seus tios, seguindo o exemplo dos Ashcar, vieram primeiro, deixando as famílias. Ele embarcara depois, com a mãe e a irmã mais velha, de seis anos, Nacib ainda não completara os quatro. Lembrava-se vagamente da viagem na terceira classe, o desembarque na Bahia onde o pai fora esperá-los. Depois a chegada a Ilhéus, a vinda para a terra numa canoa pois naquele tempo nem ponte de desembarque existia. Do que não se recordava mesmo era da Síria, não lhe ficara lembrança da terra natal tanto se misturara ele à nova pátria e tanto se fizera brasileiro e ilheense. Para Nacib era como se houvesse nascido no momento mesmo da chegada do navio à Bahia, ao receber o beijo do pai em lágrimas. Aliás, a primeira providência do mascate Aziz, após chegar a Ilhéus, foi conduzir os filhos a Itabuna, então Tabocas, ao cartório do velho Segismundo, para registrá-los brasileiros. (AMADO, 1979 1, p. 40-41)

Legitimamente brasileiro, posto que ungido pelo velho e persistente “jeitinho nacional”, Nacib usufruiria da cordialidade brasileira, termo aqui utilizado no sentido difundido por Sergio Buarque de Holanda, ao se referir a nossa propensão adversa a todo o formalismo e convencionalismo social (HOLANDA, 1988, p. 106-107), entre eles o disciplinamento burocrático. Desse desvio da legalidade, aprovado pelos moradores de Ilhéus, se deve a condição de brasileiro nato de Nacib, cujo registro civil de nascimento, comprado a preço módico, havia sido consumido pelo incêndio do cartório de Tabocas, como registra ironicamente o narrador:

Processo rápido de naturalização que o respeitável tabelião praticava com a perfeita consciência do dever cumprido por uns quantos mil-réis. Não tendo alma de explorador, cobrava barato, colocando a operação legal ao alcance de todos, fazendo desses filhos de imigrantes, quando não dos próprios imigrantes vindos trabalhar em nossa terra, autênticos cidadãos brasileiros, vendendo-lhes boas e válidas certidões de nascimento. Acontece ter sido o cartório incendiado [...] Livros de registros não existiam, mas existiam idôneas testemunhas a afirmar que o pequeno Nacib e a tímida Salma, filhos de Aziz e de Zoraia, haviam nascidos no arraial de Ferradas e tinham sido anteriormente registrados no cartório, antes do incêndio [...] Como pensar em míseros detalhes legais, como o lugar e a data exata do nascimento de uma criança [...] Acreditava simplesmente na palavra daqueles simpáticos imigrantes, aceitava-lhes os presentes modestos, vinham acompanhados de testemunhas idôneas, pessoas respeitáveis, homens cuja palavra, por vezes, valia mais que qualquer documento legal. (AMADO, 1979 1, p. 41-42)

Assegurada pelo desvio da legalidade, a nacionalidade brasileira de Nacib também se estenderia aos seus familiares, concebidos pelo narrador como conquistadores lendários, heróis do imaginário e da memória popular, juntamente com outros pioneiros e desbravadores de Ilhéus, de origem brasileira. Nesse caminho, Jorge Amado indicia o assunto de seu último livro, A descoberta da América pelos turcos (1994), ao mesmo tempo em que assegura, à família do protagonista, o estatuto de ilhenses por fora e por dentro, expressão popular bem ao gosto nordestino:

Já ilhenses por fora e por dentro, além de brasileiros naturalizados, eram os parentes de Nacib, uns Ashcar envolvidos nas lutas pela conquista  da terra, onde seus feitos foram dos mais heróicos e comentados. Só encontram eles comparação com os dos Badarós, de Braz Damásio, do célebre negro José Nique, do coronel Amâncio Leal. Um deles, de nome Abdula, o terceiro em idade, morreu nos fundos de um cabaré em Pirangi após bater três dos cinco jagunços mandados contra ele, quando disputava pacífica partida de pôquer. (AMADO, 1979 1, p. 40)

A ênfase no caráter brasileiro de Nacib, na sua completa aclimatação pautará toda a narrativa. É notório o esforço do narrador amadiano em confirmar a completa integração de Nacib à vida de Ilhéus, seja como cidadão estimado e respeitado pelos senhores cacaueiros, seja como político, de cujas ações também advêm às mudanças em curso, como demonstram a sua indicação à diretoria da Associação Comercial de Ilhéus e a sua aliança, política e comercial, com Mundinho:

Um dos mais importantes sucessos daquele ano em Ilhéus foi a inauguração da nova sede da Associação Comercial [...] As eleições para a diretoria precederam a da mudança [...] Além do nome de Ataulfo Passos, um outro se repetia nas duas chapas [...] Nacib A. Saad [...] Assim, viu-se eleito Nacib quarto-secretário da Associação Comercial de Ilhéus, companheiro de Ataulfo, Mundinho, Maluf, do joalheiro Pimenta, de outros tipos importantes, inclusive do dr. Maurício e do Capitão. (AMADO, 1979 1, p. 186-188)

O bar de Nacib agora era um reduto de Mundinho Falcão. Sócio do exportador e inimigo de Tonico, o árabe (cidadão brasileiro nato e eleitor) entrara na campanha. E, por mais espantoso que pareça, naqueles dias vibrantes do comício, no maior deles, quando dr. Ezequiel bateu todos os recordes anteriores de cachaça e inspiração, Nacib pronunciou seu discurso. Deu-lhe uma coisa por dentro, depois de ouvir Ezequiel. Não agüentou, pediu a palavra. Foi um sucesso sem precedentes. (AMADO, 1979 1, p. 327)

Utilizando-se da perspectiva interacionista, Jorge Amado compõe o mosaico identitário da Bahia, privilegiando o imigrante árabe. Nessa composição, organizada pelas lentes da simpatia e da afinidade, o aproximará, amorosamente, de Gabriela, sertaneja tangida pela seca no sertão, chegada à Ilhéus abrindo picadas, numa passagem que, embora marcada pela sutileza, lembraria a personagem Iracema, de José de Alencar:

Só Gabriela parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem. Como se não existissem as pedras, os tocos, os cipós emaranhados [...] no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume. (AMADO, 1979 1, p. 84 – grifos nossos)

Não obstante essa sutil aproximação, Gabriela seria, antes, uma espécie de Rita Baiana, recém saída das matas. Configurada pelas tintas do Naturalismo, essa descendente dos nossos aborígines co-divide, com a personagem de Aluísio Azevedo, precursor da vertente naturalista no Brasil, a forte sensualidade, o gosto pela música e pela dança, o forte apelo do amor sexual, a pouca propensão ao seu disciplinamento, através do casamento, num completo alheamento ao formalismo e ao convencionalismo social. Filhas da mesma concepção naturalista, a aproximação entre essas duas personagens seria inevitável, como demonstram as várias passagens das narrativas de Aluisio Azevedo e Jorge Amado.

Representante de uma das nossas feições nacionais, derivada, literariamente, da obra de José de Alencar, O sertanejo (1875), Gabriela é o elemento autóctone com o qual Jorge Amado recria o “encontro”, em seu país regional. Desta feita, elegendo, como mediadores, a intensa conexão sexual, a afinidade de temperamento e, principalmente, a ausência de estranhamento entre o imigrante árabe e a sertaneja nordestina. Reciprocamente, ambos são para si mesmos, o elo que preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exterior’ – entre o mundo pessoal e o mundo público (HALL, 2001, p. 11), como se pode aferir das passagens seguintes.

Ele se havia sentado. Gabriela acomodou-se no chão a seus pés. Tomou-lhe da grande mão e peluda, beijou-lhe a palma naquele gesto que recordava a Nacib, nem mesmo sabia por que, a terra de seus pais, as montanhas da Síria. Depois encostou a cabeça em seus joelhos, ele passou-lhe a mão nos cabelos. O pássaro sossegara, soltou seu trinado. – Dois presentes de uma vez... Moço tão bom! – Dois? – O passarinho e, mais bom ainda, ter vindo trazer. (AMADO, 1979 1, p. 198)

Gabriela o puxou pra si, mergulhando-o nos seios. Nacib murmurou: Bié...E em sua língua de amor, que era o árabe, lhe disse a tomá-la: “De hoje em diante és Bié e essa é a tua cama, aqui dormirás. Cozinheira não és apesar de cozinhares. És a mulher desta casa, o raio de sol, a luz do luar, o canto dos pássaros. Te chamas Bié...” – Bié é nome de gringa? Me chames Bié, fale mais nessa língua... Gosto de ouvir. (AMADO 1979 1, p. 200)

Nesse caminho interativo, marcado por uma reciprocidade estável entre o interior e o exterior, produto da primeira metade do século XX, como acentua Stuart Hall (2001, p. 32), Jorge Amado procede à recriação de sua pátria regional, proposta privilegiada do Modernismo nordestino, pautando-se pela ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade (HALL, 2001, p. 53), como se apreende do fragmento abaixo:

Muita coisa recordava ainda o velho Ilhéus de antes. Não o tempo dos engenhos, das pobres plantações de café, dos senhores nobres, dos negros escravos, da casa ilustre dos Ávilas. Desse passado remoto sobravam apenas vagas lembranças, só mesmo o Doutor se preocupava com ele. Eram os aspectos de um passado recente, do tempo das grandes lutas pela conquista da terra. Depois que os padres jesuítas haviam trazido as primeiras mudas de cacau. Quando os homens, chegados em busca de fortuna, atiraram-se às matas e disputaram, na boca das repetições e dos parabeluns, a posse de cada palmo de terra. [...] Quando o caxixe reinou, a justiça posta a serviço dos interesses dos conquistadores de terra, quando cada grande árvore escondia um atirador na tocaia esperando sua vítima. Era esse passado que ainda estava presente em detalhes da vida da cidade e dos hábitos do povo. Desaparecendo aos poucos, cedendo lugar às inovações, a recentes costumes. Mas não sem resistência, sobretudo no que se referia a hábitos transformados pelo tempo em lei. (AMADO, 1979 1, p. 21-22)

Em sua narrativa da nação grapiúna, Jorge Amado subordina, ideologicamente, as raízes da identidade do sul da Bahia às raízes indígenas e árabes, se valendo de nossa tradição literária, em suas mais variadas vertentes. Nesse aproveitamento escritural, o escritor baiano aproxima, física e culturalmente, as gentes árabes das nordestinas, ao mesmo tempo em que assegura a esses imigrantes, o importante papel de elemento constitutivo de uma feição baiano-nacional.
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continua...

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

domingo, 29 de janeiro de 2017

Folclore Japonês (Kaguya Hime: A Princesa da Lua)

A lenda da Princesa Kaguya também conhecido como o Conto do Cortador de Bambu, cujo título original é Taketori monogatari, data do Século X, é considerada a mais antiga narrativa japonesa existente. 

Kaguya-Hime: A Lenda

Há muito, muito tempo atrás, viveu um homem conhecido como O Velho Cortador de Bambu, ou “Taketori”. Todos os dias, andava entre os campos e as montanhas para colher bambus que, depois, transformava em lindos cestos e nos mais variados artigos. Seu nome era Sanuki no Miyatsuko.

O ancião e sua velha esposa viviam juntos numa casa no meio da floresta. Eles eram muito pobres e solitários, pois não tinham filhos para criar.

Um belo dia, enquanto estava na floresta, o velho Sanuki percebeu entre os bambus um talo cuja base brilhava intensamente. Achando aquilo muito estranho, aproximou-se para examinar melhor e viu uma luz intensa dentro do talo oco. Ele ficou espantado, pois, em anos e anos de trabalho, nunca havia visto algo como aquilo. Muito curioso, ele cortou o bambu e mal pôde acreditar no que viu. Dentro do talo, havia uma garotinha encantadora, com cerca de dez centímetros de altura.

“Uma menina, uma menina! Tão pequena e tão linda, só pode ser um presente dos Deuses!” -Disse o velho homem  – “Eu a descobri porque você estava aqui, entre os bambus que vejo todos os dias. Isso deve significar que você está destinada a ser minha filha.”

Então, ele pegou a frágil garotinha na palma de suas calejadas mãos e a levou para casa, entregando-a aos cuidados da sua esposa para que a criasse. Ao ver a menina, a velha senhora também ficou muito contente e encantada com a criança que possuía uma beleza incomparável, e era tão pequena que eles a colocaram num cesto para protegê-la.

Depois desse dia, por várias vezes, quando o Velho Cortador de Bambu recolhia os bambus, encontrava alguns talos recheados de moedas de ouro que ele juntou e juntou e, dessa forma, tornou-se um homem rico e importante na região. Pouco a pouco, Sanuki abandonou sua rotina de andar pelos campos para cortar bambus, porém, permaneceu sendo tratado e conhecido pelo antigo ofício: o Cortador de Bambu.

Kaguya Hime crescia muito rápido e a cada dia parecia mais bonita. Menos de três meses depois da sua chegada, a pequenina já era alta como uma adolescente. Até então, durante dias e noites, os pais, preocupados com a sua segurança, sequer tinham permitido que a filha saísse de seu quarto protegido por enormes cortinas.

Ninguém poderia acreditar que uma pessoa tão bonita pertencesse a este mundo. A menina tinha uma pureza de traços sem igual no mundo inteiro, e sua presença iluminava a casa com uma luz intensa que não deixava nem um canto na penumbra. Além disso, todas as vezes que o velho homem se sentia desanimado, com alguma dor ou até mesmo com raiva, bastava olhar para a criança e tudo passava. Diante dela, tudo ficava perfeito.

Ao alcançar o tamanho de adulta, um homem sábio de Mimuroto, de nome Imbe no Akita, foi convidado a dar a jovem um nome de mulher. Akita a chamou de “Nayotake no Kaguya-hime”, a Princesa Resplandecente do Bambu Flexível.

Os pais, que cuidavam dela amorosamente, decidiram celebrar o acontecimento com sua entrada na vida adulta. Para a comemoração, a jovem foi cuidadosamente preparada. Seus cabelos foram penteados para cima e a vestiram com trajes longos, de modo que a sua beleza foi ainda mais realçada.

A princesa Kaguya-hime estava deslumbrante. Sua festa, engrandecida por atrações de todos os tipos, durou três dias inteiros. Homens e mulheres foram convidados e se divertiram largamente.

Logo os comentários sobre a beleza da Kaguya Hime se espalharam e vinham jovens de todos os cantos do país para conhecê-la. Todos, encantados com a bela jovem queriam se casar com ela, mas Kaguya não queria se casar com ninguém. “Quero ficar ao lado de vocês dois”, dizia a jovem para seus velhos pais.

Mas cinco jovens nobres, de posições importantes, foram mais persistentes. Eles acamparam em frente à casa de Kaguya Hime e pediam uma chance a ela.

Preocupado, o velhinho chamou Kaguya e disse: “Minha filha, eu gostaria muito de ter você sempre por perto, mas acho justo que se case. Escolha um dentre os cinco rapazes que estão acampados aqui”.

Assim, depois de refletir, a linda jovem decidiu. “Eu me casarei com aquele que me trouxer o objeto mágico que pedirei”.

Um colar feito com os olhos de um dragão, um vaso feito com pedras dos deuses que nunca se quebra, um manto de pele de animal forrado de ouro, um galho que faz crescer pedras preciosas, um leque que brilha como a luz do sol e uma concha que a andorinha põe junto com seus ovos. Estes foram os objetos que Kaguya Hime pediu.

O velhinho levou os pedidos de Kaguya aos pretendentes acampados. Ele sabia que seria muito difícil conseguirem obter tais objetos. Qual não foi sua surpresa quando, ao final de alguns meses, todos os pretendentes trouxeram os presentes para Kaguya. Mas, quando eles foram obrigados a entregá-los a jovem, todos admitiram que os presentes eram falsos, pois conseguir os verdadeiros era uma missão muito difícil. E assim, nenhum deles obteve êxito.

Com a falha de todos os cinco príncipes, Kaguyahime, o velho taketori e sua esposa viveram tranquilos e felizes por uns tempos, como uma família unida. Mas as histórias sobre os feitos e falhas dos príncipes percorreram todo o Japão e chegaram ao ouvidos do imperador.

Este ficou então curioso e fascinado pelos relatos sobre a beleza da princesa, e se interessou em conhecê-la, enviando até seu pai então, um convite para que comparecesse a sede imperial.

Mas mesmo o convite do imperador foi rejeitado pela jovem, o que o irritou e o fez enviar então uma ordem convocativa. Temendo o imperador o cortador de bambu aconselhou à filha que obedecesse, mas ela surpreendeu a todos mais uma vez declarando que não obedeceria a ordem e que nem poderia, pois caso se afastasse de casa, iria dissolver-se em fumaça e desaparecer.

Dessa vez o Imperador não se enfureceu devido a justificativa, mas ficou ainda mais interessado, passaram então a trocar correspondências frequentemente e acabaram se tornando amigos, mas sempre adiando uma oportunidade de se conhecerem, enviando um ao outro poemas e contos. E assim, a família do taketori permaneceu em paz por alguns anos a mais.

Quatro primaveras haviam se passado desde que Kaguya fora encontrada no broto de bambu. Mas ela ficava mais triste a cada dia. Noite após noite, Kaguya Hime olhava para a lua, suspirando. Preocupado, o velho pai um dia perguntou: “Por que está tão triste minha filha?”. “Eu gostaria de ficar aqui para sempre, mas logo devo retornar.” Disse a jovem. “Retornar, mas para onde? O seu lugar é aqui conosco, nunca deixaremos você partir.” Disse o pai aflito. “Este não é o meu reino, eu sou uma princesa de Reino da Lua e, na próxima lua cheia, eles virão me buscar”. Completou tristemente a princesa.

Muito assustados com a reveladora confissão de Kaguya Hime, os velhinhos decidiram pedir ajuda ao imperador do reino onde viviam. O Imperador, em ajuda, prontamente enviou muitos guardas para vigiarem a casa do casal. Um verdadeiro exército foi formado.

No dia seguinte, a temida noite de lua cheia chegou. A casa estava tão vigiada que parecia impossível alguém conseguir levar Kaguya Hime. De repente, uma enorme luz surgiu no céu, como se milhares de luas estivessem presentes ao mesmo tempo.

A luz era tão intensa que ninguém conseguiu enxergar a carruagem que descia, guiada por um grande cavalo alado e muitos seres ricamente trajados. Depois de algum tempo, quando a luz diminuiu, a carruagem já estava voando, em direção à lua. Kaguya Hime não estava mais presente, ela fora junto com a comitiva celestial. A comitiva celeste levou Kaguya-hime de volta à Tsuki-no-Miyako (A Capital da Lua), deixando seus pais adotivos da terra em lágrimas.

Os velhos pais ficaram muito tristes, inconformados voltaram ao aposento de Kaguya e encontraram um potinho, presente da filha querida. Ela havia deixado um pó mágico, uma pequena amostra do elixir da vida que garantiria a vida eterna para os dois.

Mas, sem sua filha amada, os velhinhos não tinham motivo para viver para sempre. Eles recolheram todos os pertences de Kaguya e levaram para o monte mais alto do Japão. Lá, queimaram tudo, junto com o pó mágico deixado pela jovem. Uma fumaça branca foi vista subindo ao céu naquele dia.

A montanha era o Monte Fuji. A lenda diz que a palavra imortalidade (fushi ou fuji) tornou-se o nome da montanha, “Monte Fuji”. Dizem, que ainda hoje, é possível ver a fumaça branca subindo em direção ao céu.

Fonte:  Myths and Legends of ancient Japan in Caçadores de Lendas 

Clarice Lispector (A entrevista alegre)

Há pouco tempo uma moça me telefonou dizendo que era da Editora Civilização Brasileira e que Paulo Francis me pedia para dar uma entrevista a ser publicada num dos livros da série Livro de cabeceira da mulher. Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras. Mas tratava-se de um pedido de Paulo Francis, e não havia como negar. Marquei o dia. E depois fiquei furiosa, até com Paulo Francis. Como é então? O Livro de cabeceira da mulher vende como pão quente e eles ganham dinheiro. A moça entrevistadora ganha dinheiro. E só eu tenho amolação. Tentei telefonar para Paulo Francis e desmarcar. Mas como? Se sou, como todo o mundo, vítima do telefone. Este ou não dava linha, ou dava e não estabelecia ligação. Afinal resignei-me. Mas vou me vingar, pensei, de um modo ou de outro vou me vingar.

Só que não pude nem tive vontade. Na hora marcada, entra-me pela porta adentro uma moça linda e adorável, Cristina. Tem um desses rostinhos difíceis de retratar, porque, apesar dos traços exteriores serem bonitos, o que mais importa são os interiores, a expressão. Estabelecemos logo um contato fácil. O que a fez me informar: também trabalhava para um jornal e seus colegas, ao saberem que ia me entrevistar, tiveram pena dela. Disseram que eu era fogo, que mal falava.

Cristina acrescentou: “Mas você está falando.” – Sim, falei – como resistir? O racionamento de luz começara, e Cristina, para ficar perto das duas velas que acendi, sentou-se no tapete, e já fazia parte da casa.

Suas perguntas eram inteligentes e complicadas, quase todas sobre literatura. Eu disse: mas pensei que o que interessaria à mulher de classe média seria se eu gosto de comer feijão com arroz.

Respondeu tranquila: “chegaremos lá. Aquilo era apenas o começo.” E fui me encantando com Cristina. É noiva. Que pena, pensei. Gostaria que ela ficasse bem sentadinha esperando durante muitos anos que meus filhos crescessem para um deles se casar com ela. Mas ela não pode esperar, meus filhos estão custando a crescer. Me conforto em recomendá-la como entrevistadora.

A entrevista começou com bom humor. Rimos várias vezes. Uma das vezes foi quando ela perguntou o que eu achava do que o crítico Fausto Cunha escrevera. Escrevera – e eu não sabia – que Guimarães Rosa e eu não passávamos de dois embustes. Dei uma gargalhada até feliz.

Respondi: não li isso, mas uma coisa é certa: embustes é que não somos. Podiam nos chamar de qualquer coisa, mas de embustes não. Ora essa, Fausto Cunha. Você, que conheci no casamento de Marly de Oliveira, é até simpático, mas que ideia. Veja se pensa um pouco mais no assunto. Acho que Guimarães Rosa também riria.

Cristina me perguntou se eu era de esquerda. Respondi que desejaria para o Brasil um regime socialista. Não copiado da Inglaterra, mas um adaptado a nossos moldes.

Perguntou-me se eu me considerava uma escritora brasileira ou simplesmente uma escritora. Respondi que, em primeiro lugar, por mais feminina que fosse a mulher, esta não era uma escritora, e sim um escritor. Escritor não tem sexo, ou melhor, tem os dois, em dosagem bem diversa, é claro. Que eu me considerava apenas escritor e não tipicamente escritor brasileiro. Argumentou: nem Guimarães Rosa que escreve tão brasileiro? Respondi que nem Guimarães Rosa: este era exatamente um escritor para qualquer país.

Cristina estava com tosse e eu também: mais um traço de união. A entrevista era entrecortada de acessos de tosse, e até isso serviu para quebrar a cerimônia. Além do mais nenhuma das duas estava tomando um xarope, e pelo mesmo motivo: preguiça; Minha vingança resumiu-se em também entrevistar Cristina. Fiz-lhe várias perguntas, às quais respondeu com simplicidade e inteligência. Sob o pretexto de mostrar-lhe retratos que fizeram de mim, percorri com ela o apartamento quase todo: Cristina era uma das minhas, e tinha o direito de me conhecer através de minha casa. Casa é muito reveladora. Entrou num dos quartos onde um de meus filhos estava deitado lendo à luz de uma vela. Ele nem se incomodou, tão simples é a presença de Cristina. Meu outro filho ia ao cinema com um amigo. E ele, que está na idade de mostrar que é independente da mãe, também não se perturbou em me dar um beijo de despedida, na frente da moça. O outro filho não se importou de interromper-nos para pedir dinheiro para comprar Manchete: era o anoitecer de uma quarta-feira. Terminei tão à vontade que estirei as pernas em cima de uma mesa e fui descendo pelo sofá abaixo até estar quase deitada.

Cristina, você representa o melhor da juventude brasileira. Dá orgulho. Quero que meus filhos um dia venham a ser assim.

Aliás uma pergunta que me fez: o que mais me importava – se a maternidade ou a literatura. O modo imediato de saber a resposta foi eu me perguntar: se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora.

Cristina disse-me: “O crime não compensa. A literatura compensa?” De jeito nenhum.

Escrever é um dos modos de fracassar. Cristina se surpreendeu, perguntou-me então por que eu escrevia. E eu não soube responder.

O engraçado é que a moça veio tão preparada para a entrevista que sabia mais sobre mim do que eu própria. Perguntou-me por que meus personagens femininos são mais delineados do que os masculinos. Protestei em parte. Tenho um personagem masculino que ocupa o livro inteiro, e que não podia ser mais homem do que era.

Cristina, um dia talvez eu a entreviste. Os estudantes universitários vão se identificar com você e quase todos pensarão em casamento. Que seu noivo tome cuidado. Também tenho um amigo que, se a conhecesse, ia se apaixonar do modo mais poético e real. Você é tão
necessária ao Brasil. Muitos rapazes e moças como você, e o Brasil iria para a frente.

Percebo que afinal estou tendo a minha vingança: a moça escreve sobre mim, mas eu vou e escrevo sobre ela. Aliás, Cristina, você quer jantar uma noite dessas comigo? É só me telefonar.

Você vai se casar com um diplomata, mas esse será um jantar não diplomático, na nossa copa provavelmente, pois continuo esquecendo de comprar uma campainha de chamar empregada e na certa não poderemos jantar na sala. Aliás, uma grande amiga dadivosa, mas distraída, disse que tinha mais de uma campainha e que me daria uma. Cadê? Distraio-me e não compro, ela se distrai e não me dá.

Perguntou-me o que eu achava da literatura engajada. Achei válida. Quis saber se eu me engajaria. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos. É possível que este meu lado ainda se fortifique mais algum dia.

Ou não? Não sei de nada. Nem sei se escreverei mais. É mais possível que não.

Perguntou-me o que eu achava da cultura popular. Eu disse que ainda não existe propriamente. Quis saber se eu a considerava importante. Eu disse que sim, mas que havia algo muito mais importante ainda: oferecer oportunidade de ter comida a quem tem fome. A menos que a cultura popular leve o povo a tomar consciência de que a fome dá o direito de reivindicar comida. Vide a nova encíclica que fala no recurso extremo à rebelião em caso de tirania.

Até breve, Cristina, até o nosso jantar. Você parece que também gostou de mim. O que é bom. Mas não sei por que, depois que li a entrevista, saí tão vulgar. Não me parece que eu seja vulgar. E nem tenho olhos azuis.

Fonte:
Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Contos do Oriente (Os três tigres)

Nos últimos anos, nossa aldeia foi infestada por tigres, que devoraram muitas pessoas, mais do que se conseguiria contar. Viajantes que passavam por aqui diziam que isso acontecia também no resto da China.

Segundo muitos, os tigres errantes seriam enviados do céu, encarregados de procurar aqueles que tinham conseguido escapar do seu encontro com uma morte violenta. Outros afirmavam que debaixo da pele do tigre se escondem demônios ferozes, espíritos vingadores no estado de furor extremo. A verdade pode existir nessas duas explicações, mas nenhuma é tão estranha como a do velho Huang.

O velho Huang morava em Mixi, a alguns quilômetros do distrito de Qiao. Ele tinha três filhos grandes na força da idade. Na primavera daquele ano, ele ordenou que eles fossem lavrar o campo nas colinas e durante muitos dias eles saíam bem cedo e voltavam no fim da tarde.

Um dia um vizinho disse ao Huang:

— Teu roçado está cheio de mato.

— Como pode ser? - respondeu o velho Huang. Meus filhos passam lá, trabalhando o dia inteiro.

— Parece que não - respondeu o vizinho.

Intrigado, Huang decidiu seguir seus filhos. Na manhã seguinte, foi atrás deles. Logo que chegaram no bosque, no pé da colina, eles tiraram a roupa e a penduraram em galhos de árvore. Depois se transformaram em tigres, pulando e dando terríveis rugidos.

Aterrorizado, o velho Huang voltou depressa para a aldeia. Ele contou ao seu vizinho o que tinha visto e depois se trancou dentro de casa.

De noite, seus filhos voltaram. Esperaram muito, diante da porta fechada, mas ninguém respondia quando chamavam. No fim, o vizinho saiu e explicou que seu pai os renegava, depois do que tinha visto no bosque.

— O que ele viu foi verdade - reconheceram os rapazes. - Mas não fazemos assim por nossa vontade. É o mestre dos Céus que nos obriga.

Em seguida, o mais velho chamou seu pai.

— Pai, como poderíamos ser ingratos com o senhor? Sua bondade para conosco é sem limites. Ficamos desesperados por termos sido escolhidos já há tanto tempo para esse papel funesto. Nos últimos dias corremos por montes e vales, na esperança de encontrar alguém para pegar nosso lugar, porque não aceitamos a sorte que nos foi reservada. Não deu certo. Agora, mesmo com o senhor sabendo o que está acontecendo, não podemos desobedecer as ordens. No bolso de cima do meu casaco, pai, tem uma caderneta. Pega essa caderneta, pai, senão o senhor está perdido, e teremos nós três aqui assinado sua sentença de morte.

O velho Huang pegou a candeia e procurou no bolso de cima do casaco, de onde tirou a caderneta. Ele leu os nomes de todos aqueles que, no distrito, deviam ser mortos pelos tigres. Seu nome vinha em segundo lugar na lista.

— O que podemos fazer? — gritou, desesperado.

— Abre a porta, respondeu o mais velho. Acho que tem uma saída.

O velho Huang abriu a porta. O filho mais velho pegou a caderneta, e os três filhos, retendo os soluços, inclinaram-se diante do pai. Depois disseram:

— Que seja o destino do Mestre dos Céus. Agora, pai, veste quatro ou cinco calças e camisas, uma por cima da outra, mas não afivela o cinto. E agora, reza ajoelhado. Temos um jeito de salvá-lo.

O velho Huang obedeceu. Nem bem tinha se ajoelhado, seus três filhos já tinham virado tigres e caíram sobre ele com as garras afiadas. Com patadas e dentadas, cada um arrancou uma camada das roupas e foram embora rugindo, com farrapos de roupa na garganta.

Nunca mais eles foram vistos na aldeia, e o velho ainda hoje mora no mesmo lugar.

Fonte: 

Valter Luciano Gonçalves Villar (A Presença Árabe na Literatura Brasileira: Jorge Amado e Milton Hatoum) Parte VI

Gabriela (Juliana Paes) e
Nacib (Humberto Martins)
A perspectiva estético-ideológica adotada e o seu compromisso seriam, recorrentemente, tematizados por Jorge Amado, em seus escritos. Essa insistente tematização se efetivaria das mais variadas formas discursivas. Seja através de entrevistas, seja como elemento de seu próprio discurso romanesco, como se observa em São Jorge dos Ilhéus (1940), ou como elementos paratextuais, como se verifica em Cacau:

Joaquim trata Sérgio com mostras de grande respeito, dá importância ao que o poeta faz e durante muito tempo negou-se a opinar sobre os seus poemas. Porém, certa vez, muito instado pelo poeta, perguntou-lhe por que ele escrevia poesia revolucionária numa forma que nenhum operário poderia ler. Sérgio levara semanas preocupado com o problema e foi devido a essa observação que mudara seus ritmos e procurava, agora, numa busca por vezes frutífera, os ritmos populares. (AMADO, 1981 2, p. 140 – grifos nossos)

Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 1980, p. 8)

Se, no fragmento de São Jorge dos Ilhéus, é o narrador amadiano quem expressa, através do personagem Joaquim, seu projeto escritural, estruturado em dois eixos solidários, o militante e o popular; na epígrafe de Cacau, seria o próprio Jorge Amado quem, revestido do poder autoral, revelaria a sua perspectiva estético-ideológica.

Tornada num leitmotiv crítico de realce da “pouca literatura” amadiana, a epígrafe de Cacau revela, antes de tudo, uma faceta do Modernismo brasileiro que, em suas várias vertentes complementares, busca novas formas de expressão, de redefinição do papel da literatura e do escritor, de reinterpretação da cultura e do homem brasileiro, numa continuidade que se processa via desvio, via descontínuo, ou pelo endosso das velhas soluções propostas, como observa Wilma Mendonça (2002, p. 20). Na realidade, “o mínimo de literatura” e o “máximo de honestidade” amadianos indiciam a busca literária do escritor nordestino em resolver a contradição que caracteriza nossa cultura, como afirma Antonio Cândido, como também o seu engajamento ao contexto escritural e social de sua época, como se apreende das palavras de Luiz Lafetá, em seu estudo sobre o projeto estético e ideológico do Modernismo e da análise de Eduardo Assis Duarte sobre a narrativa Cacau:

Talvez se possa dizer que os romancistas da geração de Trinta, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior [...] a massa começou a ser tomada como fator de arte, os escritores procurando opor à literatura e à mentalidade litorâneas a verdade [...] No trabalho de revelação do povo como criador, que assinalei atrás, nenhum escritor se apresenta de maneira mais característica do que o Sr. Jorge Amado. (CÂNDIDO, 1992, p. 45-49 – grifos do autor)

Decorre daí que qualquer nova proposição estética deverá ser encarada em suas duas faces (complementares e, aliás, intimamente conjugadas; não obstante às vezes relacionadas em forte tensão): enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época. [...] na verdade o projeto estético, que é a crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém o seu projeto ideológico. O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão-de-mundo (justificando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo [...] Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética modernista. (LAFETÁ, 1974, p. 11-13 – grifos do autor)

O “mínimo de literatura” expressa, antes de tudo, oposição à retórica da pompa e circunstância, ao “falar difícil das classes dominantes e da tradição bacharelesca herdada do Império. Acoplado ao “máximo de honestidade”, soa como declaração de guerra à tradição ficcional idealizadora da vida no campo e porta-voz da ideologia do latifúndio. Uma literatura que propagava as imagens do bom senhor e do escravo contente, vivendo num ”paraíso” de fartura e inocência, livre de sofrimentos, longe das contradições. (DUARTE, 1995, p. 58 – grifos do autor)

Na verdade, em sua proposição modernista, Jorge Amado assenhora-se das linguagens populares da Bahia através das quais organiza a sua visão de mundo, em face dos problemas sociais do cenário nordestino. Nessa conjunção, se tornaria num dos escritores de maior repercussão popular entre nós, na mesma medida em que sofre restrições da crítica acadêmica.

Reconhecidamente um dos autores brasileiros mais conhecidos e festejados no Brasil e no exterior, Jorge Amado tinha ciência de que, não obstante o inegável sucesso editorial de sua obra, esta se movia com dificuldades entre os teóricos da literatura no Brasil, como revela em O sumiço da Santa: uma história de feitiçaria: romance baiano, publicada em 1988: 

Inegável audácia de um Autor, velho de idade e de batalhas perdidas, que ainda não conseguiu levar a crítica literária a gozar com a leitura de seus tapácios, de linguagem escassa, vazios de idéias, populacheiros. Quem não estiver de acordo com a inovação não é obrigado a ler. (AMADO, 1992, p. 409-410)

Levando em consideração o projeto literário de Jorge Amado, e as soluções estéticas por ele utilizadas para concretização de seu intento, nos voltaremos, através de um recorte étnico-identitário, à maneira, embora noutra direção, de Lúcia Lippi de Oliveira, para a leitura da narrativa amadiana, Gabriela cravo e canela: crônica de uma cidade do interior, na qual se verifica, através do intercurso amoroso entre o árabe Nacib Saad e a sertaneja mestiça do Nordeste, Gabriela, a representação do imigrante árabe no interior da Bahia.

2.2 NACIB SAAD: UM BRASILEIRO DAS ARÁBIAS

Era comum tratarem-no de árabe, e mesmo de turco, fazendo-se assim necessário de logo deixar completamente livre de qualquer dúvida a condição de brasileiro, nato e não naturalizado, de Nacib. Nascera na Síria, desembarcara em Ilhéus.

Publicada em 1958, dois anos após o afastamento de Jorge Amado do Partido Comunista do Brasil – PCB, a narrativa Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior é apreciada por Alfredo Bosi, juntamente com Dona Flor e seus dois maridos (1966), como “crônica amaneirada de costumes provincianos”, destituída, segundo esse crítico, dos esquemas ideológicos que caracterizaram a primeira fase da literatura amadiana, como se lê em sua História concisa da literatura brasileira:

Mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos (Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos). Nessa linha, formam uma obra à parte, menos pelo espírito que pela inflexão acadêmica do estilo, as novelas reunidas em Os Velhos Marinheiros. Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no “saboroso”, no “gorduroso”, no apimentado do regional. (BOSI, 1980, p. 457)

Em visão assemelhada a Bosi, Tânia Pellegrini apreciaria a narrativa de Jorge Amado. Ao tratar do Sumiço da Santa, uma das últimas narrativas de Jorge Amado, Pellegrini qualificaria essa narrativa como um exemplar bem construído do que se denomina, atualmente, de literatura de mercado. Nessa avaliação, construída a partir de uma perspectiva mercadológica da obra amadiana, Pellegrini assinalaria que os recursos, largamente utilizados por Jorge Amado, não apenas já se encontravam em Gabriela, cravo e canela, como também se apresentavam, nessa narrativa, de forma mais relevada:

O Sumiço da Santa (Amado, 1988), de que nos ocuparemos, apresenta-se como um exemplo bem construído do que hoje se pode chamar de ‘literatura comercial’. Um dos últimos livros do escritor revela-se como um conglomerado de recursos já bastante usados em outros romances seus, com mais ênfase a partir de Gabriela, cravo e canela, considerado um ponto de ruptura no interior do conjunto de sua obra. (PELLEGRINI, 1999, p. 124)

Nessa compreensão, Tânia Pellegrini, como a maioria de nossos críticos, consideraria a narrativa do amor entre Nacib e Gabriela como marco de ruptura, de finalização do projeto ideológico amadiano e, ao mesmo tempo, como ponto de partida de sua trajetória literário-comercial. Assim, vê, no formidável êxito editorial, na contundente recepção popular à Gabriela, cravo e canela, apenas a celebração da nova inclinação de cunho mercadológico, de Jorge Amado:

Só para citar alguns exemplos, Gabriela, cravo e canela, publicada em 1958, vendeu imediatamente duzentos mil exemplares e, em edições sucessivas, atingiu a casa do milhão em 1990 [...] Como se vê, esses números ofuscam – desde a época em que uma indústria editorial brasileira de peso era apenas um quase-projeto – as tímidas tiragens de dois ou três mil exemplares que ainda hoje caracterizam a publicação da grande maioria das narrativas nacionais. (PELLEGRINI, 1999, p. 123)

Ao se voltar para a discussão sobre a relação da literatura/mercado e mídia, Tânia Pellegrini veria, na produção e na recepção literária contemporânea, as determinações mercadológicas e midiáticas, como elementos estruturadores desses escritos. Ao atribuir esses traços à maioria dos escritores jovens, que internalizaram as perspectivas da chamada pós-modernidade, Pellegrini ressaltaria que alguns antigos também se renderam a essas determinações, ilustrando como exemplo lapidar o caso de Jorge Amado:

Dentre estes últimos, o caso de Jorge Amado é lapidar. Tendo iniciado sua carreira literária como autor reconhecidamente engajado, que usava sua ficção como instrumento de luta política, alimentado por todo o contexto político-social das décadas de 1930 e 1940, aos poucos derivou para uma literatura descompromissada, leve crônica de costumes, exótico cartão postal da Bahia [...] O que nos interessa em particular na obra de Jorge Amado é de que maneira ela – um dos baluartes do regionalismo engajado – também acabou incorporando sensivelmente as mudanças nos modos de percepção gerados pelas transformações nos modos de produção da cultura (sobretudo a máquina da indústria cultural, no sentido adorniano do termo). (PELLEGRINI, 1999, 122-124)

Na perspectiva de que a obra mais recente de Jorge Amado se constitui como objeto da indústria cultural, Pellegrini iria, noutra passagem de seu texto, responsabilizar o gosto, ou a falta de gosto, do leitor amadiano, pelo sucesso editorial/comercial do escritor grapiúna, acentuando, antropofagamente, que Jorge Amado é consumido, com grande sucesso por todos os paladares ao redor do mundo (PELLEGRINI, 1999, p.122). Dessa forma, estende aos leitores de Jorge Amado, concebidos como abstratos, médios e poderosos, a desqualificação que procede ao próprio autor, numa passagem em que, contraditoriamente, registra o enorme êxito escritural de Amado, bem antes de Gabriela, cravo e canela.

Jorge Amado é, reconhecidamente, um dos primeiros autores que aqui se podem considerar de ‘profissionais’, ou seja, aquele autor que consegue viver dos lucros auferidos pela venda de seus livros [...] capaz de mobilizar a máquina editorial e as glórias acadêmicas, além de seduzir o mercado estrangeiro e conquistar o abstrato e poderoso ‘leitor médio brasileiro’. (PELLEGRINI, 1999, p. 122-123)

Autodefinindo-se, com simplicidade, como apenas um baiano romântico e sensual (apud BOSI, 1980, p. 455), Jorge Amado inundaria suas narrativas com a temática do amor e da sensualidade, como bem observa Antonio Cândido, em seu texto, “Poesia, documento e história”, como se verifica abaixo:

O amor carrega de uma surda tensão as páginas dos seus romances, avultando por cima do rumor das outras paixões. Na nossa literatura moderna, o sr. Jorge Amado é o maior romancista do amor, da força da carne e de sangue que arrasta os seus personagens para um extraordinário clima lírico. Amor dos ricos e dos pobres; amor dos pretos, amor dos operários, que antes não tinha estado de literatura senão edulcorado pelo bucolismo ou bestializado pelos naturalistas. (CÂNDIDO, 1992, p. 52)

Contemplando, com a temática do amor e da sensualidade, todos os estratos sociais presentes em sua obra, como já observara Antonio Cândido, Jorge Amado transformaria Gabriela, cravo e canela numa verdadeira polifonia amorosa. Há o amor trágico e adúltero de dona Sinhazinha Guedes Mendonça, esposa do coronel Jesuíno, e o dentista Osmundo Pimentel, símbolo desconstrutor do velho código da família patriarcal, cujos assassinatos assinalam, cronologicamente, o início do amor entre Nacib e Gabriela:

Essa história de amor – por curiosa coincidência, como diria dona Arminda – começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, dona Sinhazinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas de Igreja, e o dr. Osmundo Pimentel, cirurgião–dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. (AMADO, 1979 1, p. 9)

Há o idílio, delicadamente insinuado entre o dr. Mundinho Falcão, exportador de cacau e símbolo da nova ordem econômica, e Jerusa, neta do coronel Ramiro Bastos, representante do poder da velha ordem econômica, cuja perspectiva de um desfecho feliz funciona como solução conciliatória, preservadora da posição, do prestígio e das vantagens das antigas e poderosas famílias dos senhores do cacau, como indicia, continuadamente a narrativa:

Houve ainda duas sensações no baile. Uma foi quando Mundinho Falcão [...] reparou na moça loira de pele de fina madrepérola, de olhos cor do azul celeste: – Quem é? – perguntara. – A neta do coronel Ramiro, Jerusa, filha do dr. Alfredo. Sorriu Mundinho, parecia-lhe divertida ideia [...] O aniversário do coronel Ramiro [...] Mundinho Falcão não fora à missa nem lhe levara pessoalmente o seu abraço. Mandara, porém, um grande ramalhete de flores para Jerusa, com um cartão onde escrevera: “Peço-lhe, minha jovem amiga, transmitir a seu digno avô meus votos de felicidade. Em campo oposto ao dele, sou, no entanto seu admirador”. Foi um sucesso [...] O próprio coronel Ramiro Bastos, ao ler o cartão e olhar as flores, comentou: É sabido esse senhor Mundinho! Se me manda o abraço por minha neta, não posso deixar de receber... Por um curto espaço de tempo chegou-se a pensar num acordo [...] Esse Mundinho, podre de rico, rapaz elegante do Rio, combatia num combate mortal a família dos Bastos. Uma luta com jornais queimados, homens surrados, atentados de morte. Fazia frente ao velho Ramiro, disputava-lhe os cargos, levava-o a ataques de coração. E, ao mesmo tempo, dava um conto de réis, duas reluzentes notas de quinhentos, por meia dúzia de xícaras de louça barata, prenda da neta de seu inimigo [...] Tonico Bastos espiava a conversa. Não entendia esse tipo. Sonhava ainda com um acordo de última hora, a salvar o prestígio dos Bastos. (AMADO, 1979 1, p. 192; 229; 299 – grifos nossos)

Se o amor entre Mundinho e Gerusa não se realiza no tecido narrativo, Jorge Amado, à maneira de Gregório de Matos, é extremamente discreto quando se volta para as relações sensuais do feminino patriarcal, isto é, das mulheres brancas e de posse, o acordo sonhado e esperado por Tonico Bastos se concretizaria plenamente, como demonstra a passagem na qual Mundinho, vencedor, revela o desejo de não prejudicar a família dos Bastos, principalmente o pai de Jerusa: Não penso em perseguir ninguém. Não sou disso. Ao contrário, o que desejo é discutir com o senhor a maneira de não prejudicar o Dr. Alfredo (AMADO, 1979 1, p. 335)

Há o amor romântico, tísico e infeliz, de Ofenísia pelo Imperador. O amor adúltero de Glória, amásia do coronel Coriolano e Josué, professor, metido a poeta, como anota o narrador. Os amores dos pobres, das prostitutas, dos retirantes. Entrelaçadas, em meio ao cenário da transformação econômico-política de Ilhéus, essas múltiplas narrações amorosas, tecidas pela simpatia e cumplicidade do narrador, não ofuscam e nem comprometem a primazia do amor entre Nacib e Gabriela, caracterizada como doida paixão, como o ponto de irradiação de toda a vida ilheense, como o qualifica o narrador, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas [...] Ninguém, no entanto, fala desse ano, da safra de 1925 à de 1926, como o ano do amor de Nacib e Gabriela e, mesmo quando se referem às peripécias do romance, não se dão conta de como, mais que qualquer outro acontecimento, foi a história dessa doida paixão o centro de toda a vida da cidade naquele tempo, quando o impetuoso progresso e as novidades da civilização transformavam a fisionomia de Ilhéus. (AMADO, 1979 1, p. 19)

Estruturado por essa temática, o romance narra, em meio ao contexto do apogeu do cacau no sul da Bahia e das grandes transformações econômicas que caracterizam o Nordeste cacaueiro, a relação amorosa entre o imigrante árabe, Nacib Saad, e a imigrante sertaneja, cujo sobrenome, ou epíteto, nos remete aos cheiros do mundo do Oriente: Gabriela, cravo e canela.

Oriunda da cultura popular, mais propriamente do cancioneiro baiano, universo do qual Jorge Amado se alimenta e estrutura o seu projeto estético, Gabriela é personagem de  versos anônimos, das modinhas cantadas pelos trabalhadores da zona cacaueira, transposta para a cultura letrada, como ressalta, em epígrafe, o próprio escritor:

‘O cheiro de cravo,
A cor de canela,
Eu vim de longe
Vim ver Gabriela’.
(Moda da zona de cacau, apud AMADO, 1979 1, p. 8)

Nessa transposição e transfiguração do popular, Jorge Amado elaboraria a sua primeira 
narrativa em que o imigrante árabe é elevado à condição de protagonista, como explicita o narrador amadiano, ao anunciar o assunto de sua narração romanesca, como se lê, nas páginas iniciais de Gabriela, cravo e canela:

Aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) na cidade de Ilhéus, em 1925, quando florescia o cacau e imperava o progresso – com amores, assassinatos, banquetes, presépios, histórias variadas para todos os gostos, um remoto passado glorioso de nobres soberbos e salafrários, um recente passado de fazendeiros ricos e afamados jagunços, com solidão e suspiros, desejos, vingança, ódio, com chuvas e sol e com luar, leis inflexíveis, manobras políticas, o apaixonante caso da barra, com prestidigitador, dançarina, milagre e outras mágicas ou um brasileiro das arábias. (AMADO, 1979 1, p. 11)
______________________
continua…

Fonte:
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Universidade Federal da Paraíba – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Programa de Pós-Graduação em Letras. João Pessoa/PB, 2008

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Folclore de Campos dos Goytacazes (Ururau, da Lapa)

Entende-se por FOLCLORE o conjunto de crenças, lendas, festas, trava-línguas, parlendas, advinhas, superstições, artes e costumes de um povo. Muitos nascem da pura imaginação das pessoas, principalmente dos moradores das regiões do interior do Brasil. Tal conjunto, normalmente é passado de geração a geração, por meio dos ensinamentos e da participação real dos festejos e dos costumes. De origem inglesa, o folclore é uma palavra originada pela junção das palavras folk, que significa povo; e lore, que significa sabedoria popular. Formou-se então a palavra folclore que quer dizer sabedoria do povo. 

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde havia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio, patrimônio histórico de Campos, foi demolido, seu espaço serviu como um estacionamento, durante muitos anos e hoje é um shopping.

Em Campos destacam-se algumas manifestações folclóricas, tais como: Jongo,Cavalhada, Mana-Chica, danças típicas, Folia de Reis, Boi Pintadinho, que a cultura transformou em Boi-de-Samba, além da lenda do URURAU DA LAPA, que passaremos a narrá-la a seguir.

Essa lenda campista possui várias versões diferenciadas. Uma dessas versões conta que aconteceu, por volta de 1700, uma história de amor proibido entre um rapaz pobre e uma moça rica. O rapaz passou a ser perseguido pela ira do Coronel, pai da moça, protagonista desse amor proibido.

Combinados de fugir no dia da festa de São Salvador, padroeiro da cidade, foram surpreendidos pelos capangas do coronel que matam o rapaz e o jogam no Rio Paraíba do Sul. O deus das águas, vendo a maldade do coronel, eternizou a vida do rapaz e o encantou, transformando-o em um Ururau. Ururau é um enorme jacaré, de papo amarelo, que vive nas proximidades da curva da Lapa, assombrando as pessoas.  De vez em quando, quando é noite de Lua cheia, o Ururau  vem à superfície do rio, para matar a saudade de sua amada. Não a encontrando, pega algumas meninas (geralmente desse orfanato) para levá-las com ele. 

O coronel, arrependido, por medo de receber o castigo divino, como penitência desse seu pecado, mandou vir um sino de ouro de Portugal, para a Igreja da Lapa. Mas o Ururau, sem querer deixar que o coronel se penitenciasse pelo seu pecado, atacou e virou o navio que trazia o sino, que naufragou. O sino foi parar no fundo do rio Paraíba do Sul. Este sino de ouro está lá, no fundo deste rio, na curva da Lapa, até hoje. E o Ururau é o seu guardião.

Fontes:
Talita Batista – Seção da U.B.T. de Campos dos Goytacazes.
Imagem: https://www.behance.net/gallery/A-Lenda-do-URURAU-da-LAPA

Cidade de Campos dos Goytacazes/RJ (alguns aspectos)


Campos dos Goytacazes é um município do interior do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil. De acordo como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui uma população de 487 186 habitantes. É a mais populosa cidade do interior do Estado. Este é o município de maior extensão territorial do Estado do Rio de Janeiro, ocupando uma área de 4 826,696 quilômetros quadrados. 

Localizam-se no município, importantes universidades públicas. Segundo o IBGE, Campos dos Goytacazes teve, em 2013, o sétimo maior PIB do Brasil, sendo a cidade brasileira, que não é capital, com o maior PIB nacional, naquele ano.

Originalmente foi habitada pelos índios da tribo Goitacá, que se caracterizavam por ter um porte atlético, serem exímios nadadores e muito hábeis na arte de lidar com cavalos. Guerreiros, defendiam o seu chão do domínio estrangeiro, com muita garra, chegando a ter fama de antropófagos. 

Com a chegada dos padres jesuítas e beneditinos, na região e da pacificação junto aos índios é que as terras passaram a ser conhecidas pelos colonizadores e senhores de engenhos. A colonização de origem portuguesa porém, só se iniciou a partir de 1627, quando o governador Martim Correia de Sá, em reconhecimento ao heroísmo nas lutas contra os índios, doou algumas porções de terra da capitania aos SETE CAPITÃES, que, em 1633, construíram currais para o gado, próximos da Lagoa Feia e da ponta de São Tomé.

A partir de então, começou a verdadeira ocupação de origem portuguesa na cidade de Campos. Os capitães moravam em seus engenhos, no Rio de Janeiro e Cabo Frio, arrendando quinhões de suas sesmarias, contribuindo, assim, para o crescimento da população. A criação do gado, neste período, se multiplicou de forma assombrosa, assim como a diversificação de atividades.

Os canaviais começaram a aparecer nas regiões mais elevadas da planície. A política, até então estável, foi quebrada com a chegada de latifundiários poderosos, entre eles Salvador Corrêa de Sá e Benevides, que abusou do poder e da posição (pois era o governador da capitania na época), estabeleceu parcerias com os religiosos, que se beneficiavam na partilha da planície. Começaram, então, as lutas pelas terras. 

De um lado, herdeiros dos SETE CAPITÃES, pioneiros, colonos, campeiros e vaquejadores; de outro, os ASSECAS, herdeiros de Salvador de Sá. Durante aproximadamente 100 anos, a capitania viveu em conflitos pela posse das terras. A Coroa chegou a retomar a terra várias vezes, mas, devido às crises vividas pela mesma, voltou para as mãos dos Assecas. Somente em 1752, com a compra da capitania e a contribuição pecuniária da própria população, é que a região foi finalmente pacificada.

No decorrer do domínio dos Assecas, predominava a pequena propriedade, mas também condicionada pelo meio natural, devido à inexistência de áreas contínuas de grande extensão, já que havia inúmeras lagoas. Campos possui um importante bacia hidrográfica, formada pela Lagoa de Cima, Lagoa do Vigário, Lagoa Limpa, Lagoa do Sapo, Rio Paraíba do Sul e Lagoa Feia.

A partir do domínio da CANA-DE-AÇÚCAR, a região passou por um período de recuperação, mas continuava isolada da capital do Estado do Rio de Janeiro. No início dos anos 1800, toda a planície encontrava-se ocupada e partilhada, mas ainda restavam quatro latifúndios: Colégio dos Jesuítas e São Bento (correspondentes à cidade de Campos e seu entorno), Quiçamã, além da fazenda dos Assecas, onde surgiu o povoado da Barra Seca (atual município de São Francisco de Itabapoana).

No ano de 1833, foi criada a Comarca de Campos e, em 28 de março de 1835, a Vila de São Salvador é elevada à categoria de cidade, com o nome de CAMPOS DOS GOYTACAZES. A pecuária e o cultivo da cana-de-açúcar se estenderam pela planície entre o Rio Paraíba do Sul e a Lagoa Feia. Em 1875, a cidade tinha 245 engenhos de açúcar, com 3 610 fazendeiros estabelecidos na região. 

A primeira USINA foi construída em 1879, com o nome de Usina Central do Limão, pertencente ao doutor João José Nunes de Carvalho. Devido à sua importância, a cidade de Campos recebeu a visita de D. Pedro II quatro vezes. Na primeira, em 1883, o imperador inaugurou a luz elétrica na cidade, passando assim a ser a primeira cidade da América do Sul a ter luz elétrica.

Ao final dos anos 1980, os municípios de Campos, Macaé e Conceição de Macabu, tinham uma agroindústria açucareira expressiva. A ascensão de São Paulo como maior produtor nacional, seus altos níveis de produtividade, além da expansão da área cultivada pela cana-de-açúcar no Nordeste do país, aliados à falta de modernização do complexo campista, fizeram com que a região passasse a ser coadjuvante no contexto nacional. 

O endividamento de algumas usinas obrigou muitas delas a se fecharem, atingido, consequentemente, a economia da região Norte Fluminense. A descoberta do PETRÓLEO na bacia de Campos, nos anos 1970, e a construção do Superporto do Açu têm contribuído para a recuperação da região, nos dias de hoje.

A história de Campos é rica em importantes acontecimentos políticos. Foi um dos primeiros do Brasil a embarcar voluntários para a guerra do Paraguai, em 28 de janeiro de 1865, pelo vapor Ceres.

Foi a primeira cidade da América Latina a ter energia elétrica, em 24 de julho de 1883. O movimento abolicionista também encontrou eco em Campos. A campanha abolicionista teve seu ponto alto em 17 de julho de 1881, com a fundação da Sociedade Campista Emancipadora, que propagava a luta pela emancipação dos negros, tendo, na pessoa do jornalista Luiz Carlos de Lacerda, o seu maior expoente. 

O grande vulto José Carlos do Patrocínio, o "tigre da abolição", foi também um dos principais nomes da luta pelo fim da escravidão, que mudaria os destinos políticos do Brasil imperial, preparando-o para a proclamação da República do Brasil.

Vários campistas governaram o Estado do Rio de Janeiro, como Nilo Peçanha, eleito pela primeira vez para o período de 1903 a 1906 e, pela segunda vez, de 1914 a 1917. Nilo Peçanha foi eleito vice-presidente do Brasil e assumiu o mandato, de 1909 a 1910, com a morte de Afonso Pena. Mais recentemente, o ex-prefeito de Campos, o radialista Anthony Garotinho foi eleito governador, em 1998. A sua esposa Rosinha Garotinho concorreu à sua sucessão e foi eleita em 2002. Esse mesmo grupo político permaneceu no poder até 2016, quando foi eleito o jovem vereador Rafael Diniz, por uma expressividade esmagadora de votos e passará a ser o novo prefeito da cidade a partir de 2017.

A cidade de Campos dos Goytacazes tem um total de mais de 150 bairros. A LAPA é um bairro da cidade, de origem operária, formada em torno de uma fábrica de tecidos que existia, na cidade. Neste bairro, em uma curva do rio Paraíba do Sul, existe a Igreja da Lapa, onde existia um orfanato, que foi mantido por uma ordem religiosa, cujas irmãs de caridade cuidavam de meninas órfãs, algumas abandonadas à porta da Igreja, outras colocadas na Roda dos Enjeitados, existente no antigo prédio da Santa Casa de Misericórdia de Campos (no centro da cidade), instituição que essas freiras ajudavam a administrar. Esse prédio foi demolido, junto com esse patrimônio histórico de Campos.

Campos tem muitas bordadeiras e artesãs. Existe uma feira municipal, cujas barracas são montadas no centro da cidade, com os mais variados trabalhos artísticos de bordados em ponto de cruz, tricô e crochê. Encontram-se lá também barracas de doces e salgados. 

Cidade do açúcar e do petróleo, Campos notabiliza-se, além da produção da cachaça. pela produção de muitos DOCES, como a GOIABADA e melado. Entre os doces típicos de Campos, destaca-se o CHUVISCO. Sabemos que as portuguesas são notáveis na habilidade de preparar doces, utilizando-se da gema e da clara de ovos. No Brasil, somente as campistas e as gaúchas de uma forma geral dominaram a arte de fabricar, além dos chuviscos a ambrosia e o papo de anjo. Além de docerias e fábricas, o doce é produzido de forma artesanal e caseiro por diversas cozinheiras, residentes em diversos pontos do município, que fabricam o doce por encomenda, para as festas de casamento, aniversário, batizado e jantares especiais. 

O doce chamado CHUVISCO já foi tema de teses e pesquisas em universidades campistas. Em 2011, foi tombado como patrimônio imaterial da cidade pelo Conselho de Preservação do Patrimônio Municipal (Coppam). O doce é parte da culinária portuguesa e chegou ao Rio com a vinda da Família Real, em 1808. Diz-se que os portugueses utilizavam claras de ovos para engomar as roupas e, para aproveitar as gemas, faziam o chuvisco. 

A receita foi parar em Campos e, mais de cem anos depois, pelas mãos de Nilze Teixeira de Vasconcellos, a Mulata Teixeira ficaram ainda mais famosos. Conta-se que os ex-presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek teriam saboreado a guloseima da Mulata Teixeira quando visitavam Campos. 

O chuvisco pode ser cristalizado (como é este da foto abaixo), caramelado, em calda, com nozes, passas ou chocolate. Ele é produzido, em larga escala, por fábricas do município e também de forma artesanal por pequenas docerias. As gemas são batidas pelo menos cem vezes até a massa engrossar. De colherinha em colherinha, o doce é frito na calda de açúcar, três vezes, passa-se o chuvisco no primeiro tacho para ressecar. No segundo, para incorporar o açúcar. E no terceiro, para ficar molhado, com uma calda mais fina. Existem clientes campistas que moram no exterior e encomendam esse doce. 

Fonte:
Talita Batista – Seção da UBT de Campos dos Goytacazes.