sábado, 29 de setembro de 2018

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) IV


DIES IRAE
(Sobre o Desastre do “Aquidabã”)

I
Na vastidão das águas da baía
Tudo é luz, íudo é paz neste momento.
Límpido, ao alto, nos acaricia
O amplo côncavo azul do firmamento.

Do mar ao céu, é mais profunda a calma.
Quer junto a nós, quer na amplidão remota,
Raramente nos ares a asa espalma.
Solitária branquíssima gaivota.

À barra, um transatlântico que ao mastro
Alto., estrangeiro pavilhão desfralda,
Deixando empós um marulhoso rastro,
Corta, solene, a líquida esmeralda.

Nuns tons leves de nítida aquarela,
Sobre um barco de pesca tardo e lento,
Em forma de triângulo, uma vela
Desenha ao longe o bojo pardacento.

Dentro do porto alteia-se a floresta
Dos mastros com suas flâmulas aflantes,
E, num silêncio abrigador de sesta,
Dormem os transatlânticos possantes.

O sol envolve com seu manto de ouro
As fortes naus afeitas às tormentas,
Que, ora, na quietação do ancoradouro,
Parecem grandes aves sonolentas.

Um que, certo, entre todos é o mais forte,
Parece estar sonhando em pompa de galas,
Num tempo em que ele se entregava à sorte.
Debaixo de uma abóbada de balas!

II
Sonha o grande couraçado,
Sonha o navio, e, no sonho,
Revê todo o seu passado
De heroísmo no mar medonho.

Tem dentro de si, contente,
A marujada louça
Que a glória nunca desmente
Do nome de Aqindabã.

Todo ele é uma alma sonora,
É da pátria a própria imagem,
A dar provas, de hora em hora,
De nobreza e de coragem.

Sonha que a sonhar desperta
Por uma alegre manhã
A uma voz que brada: Alerta!
Marujos do Aquidabã.

III
Ao balouço do mar que aos beijos o rodeia,
Todo em galas desperta o potente navio,
E aquela nobre gente aos perigos alheia,
Presto, provas quer dar de luzimento e brio.

A azáfama começa e em toda a plenitude,
Do vigor de um pulmão, as vozes de comando,
Qual hino triunfal de alegria e saúde
Brotam de um peito heróico os ares recortando.

Vibra em roda o estridor clangoroso de festa.
Move-se lado a lado a marujada ativa.
O grande couraçado orgulhoso se apresta
Pronto para aguardar luzida comitiva.

A hora de levantar e de partir não tarda;
Todo o navio anseia em grande açodamenlo
E em cima, no convés, o sol, de cada farda,
Tira efeitos de estranho e ideal deslumbramento.

Brilham fulvos galões; brilham, presas aos ombros,
Dragonas de retrós metálico de escarcha,
E tudo a refulgir envolve a nau de assombros
Nesse apresto sem par de uma imprevista marcha.

O ouro do fivelame e dos botões rebrilha,
Fulge, dos espadins, o ouro que o punho encerra.
E tudo é o resplendor e tudo é a maravilha
De uma festa de paz na grande nau de guerra!

IV
Ei-lo que chega ao porto entressonhado.
Foi suave a travessia
Mas em todos que estão no couraçado,
Não é a mesma a alegria.

A tarde desce. A noite se aproxima.
Foi todo alegre o dia.
Mas agora, nos astros, lá por cima.
Anda a melancolia.

Não pode ser mais calmo nem sereno
O vir da Ave-Maria.
Para a noite que chega sobre um trenó
De meiga nostalgia:

Foi nas águas do Amazonas
Que aprendi a navegar.
Meu Deus, por que me abandonas
Nas feias águas do mar?!

Ao vibrar melancólico da viola,
Aquele ingênuo canto
De um coração nostálgico se evola
Como sonoro pranto.

Do Pará nas ribanceiras
Deixei meus pais a chorar.
E aqui estou nestas canseiras
Da triste vida do mar!

O céu arqueia protetoramente
O amplo azul constelado,
Como que para ouvir a voz dolente
Que embala o couraçado.

Ai! Maranhão do meu berço.
Para por ti eu rezar,
Tem mais contas o meu terço
Do que vagas tem o mar!

Em torno, à vasta quietacão das águas
Mais o silêncio cresce
E só se escuta este gemer de mágoas
Num sussurro de prece:

Do Piauí nas densas matas
Vivia alegre a cantar
E hoje choro estas ingratas,
Duras tristezas do mar!

Este simples e rústico lamento
Tem talvez a virtude
De espairecer algum pressentimento
Do marinheiro rude:

Ao meu Ceará com certeza
Nunca mais hei de voltar.
Foi meu berço a Fortaleza,
Vai ser meu túmulo o mar!

Seja pressentimento ou desengano,
A meiga singeleza
Daqueles sons, tem do destino humano
A infinita tristeza:

Do Rio Grande do Norte
A terra quer se queimar;
Prefiro na seca a morte,
A morrer dentro do mar!

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) V


BARCAROLA

«Corre, voa, borboleta, vai graciosa
Libar ondas de néctar delirante
A anêmona cingir, o lírio, a rosa
Com a asa fugitiva, coruscante.

«Vai sôfrega d'amor e sê ditosa.
Dá-se no céu um caso semelhante
Quando estrelas em noite vaporosa
Se abismam n'uma queda extravagante.

«Vai mariposa, a chama te fascina
Na aresta do ludibrio, como esfinge
Em deserto d'areia cristalina.»

Calam-se as vozes; picam-se as amarras;
A gôndola desliza e o mar atinge
Ao som dos bandolins e das guitarras.

BRIC-À-BRAC

O dono miserável da locanda
O “brocanteur” terrível, sanguinário
Agoniza n'um catre solitário
D'uma alcova minúscula, execranda.

Afinca as mãos convulso n'um rosário,
Ao céu a vida, súplice, demanda,
N'uma imagem de Cristo veneranda
Crava os olhos de abutre, de corsário.

Pois apesar das lágrimas-remorsos
Das vítimas do seu medonho trama
Ruins fantasmas de lívidos escorços.

Nos paroxismos vende, além da cama,
O Cristo a um judeu, e em vis esforços
A alma entrega a Satã, que lh'a reclama.

PAISAGEM

O sol adormecera no horizonte;
As nuvens em retalhos sonolentos,
Parecem nos bizarros tons cinzentos
O grupo despenhado de Phaetonte.

O riacho desliza ao pé do monte
Em frequentes e turgidos lamentos;
A philomela ensina o canto aos ventos
No chorão, que murmura junto á fonte.

A várzea rescende à laranjeira!
Da catedral nas frestas em ogiva
Um rancho d'andorinhas s'enfileira;

E nas trevas soluça a sombra esquiva
Do coveiro, que planta uma roseira
Onde jaz a venal filha adotiva.

"VAE VICTIS"

Rasga sacrílego a amplidão celeste
Um milhafre com azas pardacentas
E a cotovia harmoniosa investe
Armando as garras torpes e cruentas.

Negro como o letargo do cipreste,
Rosna o vento nas franças macilentas,
O sol dardeja n'um palor agreste
Que entusiasma as nuvens corpulentas.

A luz crua p'lo espaço se derrama,
Engrossam os trovões em alcateia,
Rutila do corisco a alegre flama.

A presa que o milhafre saboreia
É o emblema do fraco, o velho drama
Que o sistema do mundo patenteia.

EPISÓDIO BALNEAR

N'uma “soirée” heroica, ígnea e linda
Jurara o fulvo Arthur até à morte
Ser da formosa e pudibunda Olinda
Chumbando a ela p'ra sempre a sua sorte.

Por ela ao inferno iria, o mar ainda
Beberia d'um trago! Ela é seu norte,
Meiga estrela de lúcido transporte,
Palpitante de rubra graça infinda.

De manhã cedo a nossa "Julieta"
Desce nas crespas vagas a banhar-se
Mascarada n'um fato de baeta,

E quando grita prestes a afogar-se,
Chega "Romeu", exibe uma gorjeta,
Mas não vai lá, que teme constipar-se.

“REISCHOFFEN”
6 de Agosto de 1870.

Desfraldam-se estandartes e trombetas,
Ouve-se o crepitar da espingarda;
Quando o canhão rouqueja á retaguarda
Cintila a larga messe das baionetas.

As couraças protegem a vanguarda,
Dos capacetes pousam nas facetas
As crinas marciais, vermelhas, pretas,
Com expressão terrível e galharda.

Bonnemain determina a voz de carga:
Os estribos tilintam, fulge a espada,
Debalde a morte os esquadrões embarga.

N'esta luta ciclópica, gigante,
O exercito francês em retirada
Teve assomos d'heroísmo deslumbrante.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883

Antonio Brás Constante (Engarrafamentos [sem álcool])


Quer conhecer um pedaço do inferno? É fácil (você nem precisa fazer um pacto com o “Tinhoso” para saber como é), basta sair com o seu automóvel e ficar preso em algum engarrafamento. Entramos nos engarrafamentos como alguém que entra em uma garrafa, pois os dois casos acabam sendo um porre. Diferentes de um drinque, que pode ser destilado, os engarrafamentos são amontoados de carros deste lado, daquele lado, de todos os lados. Você fica ali parado, preso naquele lugar por um longo tempo, sentindo-se como um vinho que fica em uma adega para ser envelhecido, porém, ao contrário do vinho, aquela situação não melhora os seus atributos ou lhe faz uma pessoa mais doce e especial; ao contrário, a única coisa que consegue é deixá-lo extremamente azedo.

Os engarrafamentos, assim como as bebidas, nos deixam em uma situação complicada aos olhos de nossos empregadores, que não gostam de funcionários cheirando a álcool, do mesmo modo que não gostam de funcionários chegando atrasados. Seu veículo acaba se transformando em uma garrafa de luxo (pois, novo ou velho, ele ainda custa uma bela grana), onde nesta metáfora você é o líquido ali aprisionado, molhado, suado e exalando o odor de sua própria transpiração. Louco para “vazar” dali. Se pudesse escolher, iria preferir virar um pouco de uísque em um copo para beber, em vez de ter que ficar literalmente “virando roda” na estrada.

Nessas horas, lembra da frase onde orientam: “se beber não dirija”, e fica pensando que o engarrafamento causa o mesmo efeito, pois o impede de dirigir, de seguir o seu caminho. Atrapalhando sua vida. Trazendo sentimentos de frustração, impaciência e raiva, que são servidos de forma seca para você. Sem direito sequer a umas pedrinhas de gelo e rodelas de limão.

Somos pequenas gotas humanas dentro dos engarrafamentos. Somadas a uma infinidade de outras gotas que se encontram na mesma situação que a nossa, esperando o trânsito fluir, para enfim seguirem suas vidas, e quem sabe acharem um rumo melhor para seus destinos do que aqueles reservados para as tais bebidas em nosso organismo.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Olivaldo Júnior (Com a mala cheia de livros*)


Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Clarice Lispector

Pelas ruas, com a mala cheia de livros, acho que pareço um fugitivo de minha própria vida, clandestina essência que me habita e me transmuta em ser. Sou o quê? Poeta, escritor, ensaísta? Não, acho que não sou nada disso. Mas, na instância de tentar fugir com a mala cheia de livros, me livro um pouco de mim, do eu que não tem gostado de ser eu. Eu, que me revisto de palavras, me disfarço com poesia, me refaço a cada letra e melodia, eu mesmo.

Ninguém sabe que, dentro da mala, do oco sem fundo, um mundo, moinho, gira e gera um novo mundo em si. A mala, cheia de livros, denota que um dia eu lerei o que ela contém. Ainda que tenha mais livros do que tempo para ler. “Mas quem quer mesmo sempre acha tempo para tudo...”, dirão alguns, talvez você. Mas careço de tempo. Aliás, não só de tempo, mas de um ser que o administre de forma a fazer meu dia caber em mim, em minha vida.

Abençoado pela mala cheia de livros, que os ganhei, meio que pedi, não vou para casa de pronto. Antes, vou à Oração, quem sabe, só pelo gosto de andar mais um pouco nas ruas com a mala nas mãos, como a exibir seu obscuro conteúdo por aí. Clarice escrevera: Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Carrego, então, o peso da bênção esta noite nas mãos. Ninguém sabe que a mala está cheia de livros. Mas eu, meu ser, ele sabe.
____________________
Nota:
* Escrito ao som de Tocando em frente, canção de Almir Sater e Renato Teixeira, na voz de Maria Bethânia.

Fontes:
Texto enviado pelo autor 

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) V


PRIMAVERA III

Primavera das estações és a mais bela,
Com teu olhar extremamente lindo,
Com teu sorriso, nunca esquecido,
Que nunca foi, e não será fingido.

Quando chega setembro...
Já começo a te esperar.
Pois sei que é nesse mês que voltas,
Voltas a nos encantar!
Não só com a beleza que trazes para a terra,
Como também a do mar.

Com teus jardins floridos,
Aqui ou, em outro lugar.
Ou mesmo com o teu perfume,
Começam a nos deslumbrar.
Mostrando que na verdade...
Igual a ti outra não há.

AMOR PROFUNDO

Quantas saudades
Que me fazem lembrar
Daquela que me disse:
- Eu te amo!
Nunca vou te ferir
Trazendo inseguranças e desenganos

Pois eu te amo
Com amor profundo
Meu coração por ti
Ele enlouquece
Minha alma então
Se enche de alegria
E de ti jamais esquece

Na verdade isso acontecia
Ela era todo carinho e ternura
Que alma doce
Ela possuía

Mas infelizmente aconteceu
O que nem eu nem ela preferiríamos
Numa noite ao amanhecer
Ela passou mal
E suas últimas palavras
Foram essas:
- Sei que vou partir
Mas onde estiver
Estarei sempre pensando em ti

CADA VEZ MAIS BONITA

Quando te vejo sorrindo,
Sinto-me realizado revigora.
Minh’ alma e o coração se agitam,
E passo a ver-te cada vez mais bonita.

Que prazer que alegria,
Quando te vejo contente.
A nossa casa que parecia sombria,
Volta a sorrir novamente.

Tudo porque voltaste, a ter felicidade.
Graças a Deus...
 Que essa infelicidade foi passageira.
Antes éramos infelizes,
E hoje somos felizes a semana inteira.

COM CERTEZA

Quando te vejo com esses olhos tristes,
Pois nascestes para ser feliz.
Porque sofrer por um amor distante!
 Que só te trás magoas e desilusões.

Esquece esse amor sem esperança,
Segue em frente sem desfalecer.
 Sempre buscando alternativas,
 E a vida te ajudará a esquecer.

Procura analisar teus sentimentos,
E verás que tens tudo que almejas...
Segue adiante pensando em Jesus,
Que cedo ou tarde a vitória virá...
Com certeza.

ETERNAMENTE APAIXONADO

Só tu que me fazes esquecer,
Aquele amor de outrora.
Faz tanto tempo,
Que isso passou.
Desde os tempos de escola.
Ela era linda apesar de adolescente,
Vivia alegre e sorria a toa.
Com seus olhos belos...
E sua tez bem clara.
Igual a ela,
Não conheci outra pessoa

Adolescentes iguais a mim.
Vivíamos encantados,
Todos nos queríamos.
Que ela nos desse um sorriso,
Um beijo ou qualquer...
Outro agrado.

Mas ela sempre,
Não nos dava esperanças.
Mesmo assim apesar de tudo,
Um dia que foi maravilhoso.
Ela não sorriu
Perguntou-me:
- Queres ser o meu namorado?
Desde aquele dia...
Eu me tornei eternamente apaixonado

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Gabriela Pais (Amanhã)

Pintura de Fátima Marques (São Paulo/SP)

Amanhã será outro dia fluente,
mais um dia a pensar no futuro
que se vislumbra rio poluente,
na esperança de melhor auguro.

Poderá vir a ser um amanhã triste
com nuvens dispersas acinzentadas,
contudo o bem confiante resiste,
em águas límpidas dinamizadas.

Através das letras, dizer em verso,
que a paz é uma camena luminosa,
é amor que vem dimanar o universo.

Brotem flores na primavera ditosa
e as mentes pra quem o bem é reverso,
a alma esperte e amanheça virtuosa.


Amanhã! Um dia em que o sol nasce e nos traz novas probabilidades. É sempre esperada como se fosse o início de um novo caminho, em que surgem flores nas suas margens, dando vigor a cada mente, para que cada jornada seja repleta de êxito. Uma caixa de oportunidades e a esperança acrescida que alguma realidade ocorra na vida e que seja de melhor atributo para a geração futura, cada escolha abre um novo percurso humano, que às vezes se torna difícil, mas jamais se deve perder o alento, da dádiva do amanhã. 

O amanhã pode ser visto por vários prismas, onde os interesses extrapolam a razão. Viver nas cidades, onde por vezes falta a preocupação moral e nas aldeias e vilas aonde ainda se respira um pouco de amor e respeito. Tudo é um cesto carregado de emoções, em que cada ser necessita um pouco de amor e compreensão para poderem vislumbrar que os espera um amanhã auspicioso.

Nas cidades, em que a existência de lugares onde se erguem barracas sem condições de vivência, bairros onde também se levantam prédios em cimento armado que crescem hirtos e dormentes, estes resultado do progresso que brota por vezes sem qualquer conexão, transformam-se em sítios vazios, solitários e amorfos. 

Civilizações com um padrão de convivência citadina diferenciada devido a várias características, tais como religiosas e culturais entre outras, onde os interesses econômicos, a ganância, a inveja, a malvadez e outros vícios, onde impera a falta de emprego, de interesses, abandono escolar e familiar, fomentam a perversão. Quem dera que surgissem com céu aberto raiado de sol, uma paz áurea para as famílias, poderem ser detentoras de uma existência condigna e assim fruírem de dias mais resplandecentes.

Quem dera que o amanhã despertasse risonho na esperança de que os poderosos, os mandantes, possuíssem liberdade de estro, para se inspirarem e lutarem por um mundo de paz, onde progredisse a dignidade, onde houvesse nobreza de espírito, ética, honra, hoje em dia valores morais tão esquecidos. Que vivessem e pensassem no amanhã...Pois estão a perder o sentido do que será a vida futura de filhos e netos. Poderão, não ter um risonho amanhã!

Quem dera que cada amanhã fosse uma cascata de água límpida vinda da serra. Ouvir o murmurar nascido do lavar das pedras onde o líquido mergulha. Uma acalmia, um cantar em balada das folhas, das flores das árvores e dos arbustos, acompanhadas pelo trinado da passarada. 

Terra onde se conheçam as gentes, se cumprimentem dando a salvação quando se encontram, onde ainda existe a entre- ajuda, a compreensão, o respeito e dignidade.

Terra é mãe natureza, deusa da criação, tudo nos dá e vinga a sua destruição. Não a maltratem, não a queimem, não a decepem. O nosso amanhã nascerá todos os dias, distribuindo amor, cultivando o bem, respeitando o alvorecer do amanhã.

Sempre haverá um amanhã, se acordarmos. Bom... Mau, depende muito das circunstância da vida e da maneira como encaramos os desafios a que somos sujeitos.

Não se quer um paraíso, mas um lugar onde impere o respeito por tudo quanto é vivo, um lugar aprazível, sem receios, apenas pensar e sentir que existe um amanhã!

Fonte:
Gabriela Pais (Portugal)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Vinicius de Moraes (O Casamento da Lua)


O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. E de tanto olharem através de seus telescópios, os bons e velhos sábios foram assumindo um ar preocupado e seus olhos já não sorriam mais; puseram-se, antes, melancólicos. E contaram-me ainda que não era incomum vê-los, peripatéticos, a conversar em voz baixa enquanto balançavam gravemente a cabeça. É que os bons e velhos sábios haviam constatado que a Lua estava não só muito pálida, como envolta num permanente halo de tristeza. E que mirava o Mundo com olhos de um tal langor e dava tão fundos suspiros - ela que por milênios mantivera a mais virginal reserva – que não havia como duvidar: a Lua estava pura e simplesmente apaixonada. Sua crescente palidez, aliada a uma minguante serenidade e compostura no seu noturno nicho, induzia uma só conclusão: tratava-se de uma Lua nova, de uma Lua cheia de amor, de uma Lua que precisava dar. E a Lua queria dar-se justamente àquele de quem era a única escrava e que, com desdenhosa gravidade, mantinha-a confinada em seu espaço próprio, usufruindo apenas de sua luz e dando azo a que ela fosse motivo constante de poemas e canções de seus menestréis, e até mesmo de ditos e graças de seus bufões, para distraí-lo em suas periódicas hipocondrias de madurez.

Pois não é que ao descobrirem que era o Mundo a causa do sofrimento da Lua, puseram-se os bons velhos sábios a dar gritos de júbilo e a esfregar as mãos, piscando-se os olhos e dizendo-se chistes que, com toda franqueza, não ficam nada bem em homens de saber... Mas o que se há de fazer? Frequentemente, a velhice, mesmo sábia, não tem nenhuma noção do ridículo nos momentos de alegria, podendo mesmo chegar a dançar rodas e sarabandas, numa curiosa volta à infância. Por isso perdoemos aos bons e velhos sábios, que se assim faziam é porque tinham descoberto os males da Lua, que eram males de amor. E males de amor curamse com o próprio amor - eis o axioma científico a que chegaram os eruditos anciãos, e que escreveram no final de um longo pergaminho crivado de números e equações, no qual fora estudado o problema da crescente palidez da Lua.

Virgens apaixonadas, disseram-se eles, precisam casar-se urgentemente com o objeto de sua paixão. Mas, disseram-se eles ainda, o que pensaria disso o desdenhoso Mundo, preocupado com as suas habituais conquistas? O problema era dos mais delicados, pois não se inculca tão facilmente, em seres soberanos, a ideia de desposarem suas escravas. Todavia, como havia precedentes, a única coisa a fazer era tentar. Do contrário operar-se-ia uma partenogênese na Lua, o que seria em extremo humilhante e sem graça para ela. Não. Proceder-se-ia a uma inseminação artificial e, uma vez o fato consumado, por força haveria de se abrandar o coração do Mundo.

E assim se fez. Durante meses estudaram os homens de saber, entre seus cadinhos e retortas, e com grande gasto de papel e tinta, o projeto de um lindo corpúsculo seminal que pudesse fecundar a Lua. Um belo dia ei-lo que fica pronto, para gáudio dos bons e velhos sábios, que o festejaram profusamente com danças e bebidas tendo havido mesmo alguns que, de tão incontinentes, deixaram-se a dormir no chão de seus laboratórios, a roncar como pagãos. Chamaram-no Lunik, como devia ser. E uma noite, em que o Mundo agitado pôs-se a sonhar sonhos eróticos, subitamente partiu ele, o lindo corpúsculo seminal, sequioso e certeiro em direção à Lua, que, em sua emoção pré-nupcial, mostrava com um despudor desconhecido nela as manchas mais capitosas de seu branco corpo à espera. Foi preciso que o Vento, seu antigo guardião, escandalizado, se pusesse a soprar nuvens por todos os lados, com toda a força de suas bochechas, para encobrir o firmamento com véus de bruma, de modo a ocultar a volúpia da Lua expectante, a altear os quartos nas mais provocadoras posições.

Hoje, fecundada, ela voltou finalmente ao céu, serena e radiosa como nunca a vira dantes. Pela expressão com que me olhou, penso que já está grávida. Ou muito me engano, ou amanhã deve estar cheia.

Fonte:

Emílio de Meneses (Poemas ao Anoitecer) III


SONETO MITOLÓGICO

Próximo, o lago em que se lança a fonte
Onde Canace a frauta rude escuta,
Que lhe diz que o irmão de meiga fronte
Fauno vencera na porfiada luta.

Propícia é a Noite cujo manto enluta
De Flora o reino todo, o bosque, o monte...
Fora, a campina, o intérmino horizonte...
Dentro, o Mysterio na encantada gruta.

O Segredo a espreitar. A sussurrante
Asa passa de Amor. No pétreo solo,
De musgo o leito e de hera verdejante.

E enquanto fora os ventos solta Eólo
Lá dentro o filho, trêmulo, arquejante,
Beija da irmã o incestuoso colo.

CATECÚMENO

Faltem-me embora para o noviciado
Deste amor que conforta e regenera,
Todas as inocências, todo alado
Bando de sonhos que a inocência gera.

Faltem-me e eu venha já, velho e cansado
Velha lenda que veio, de era em era,
Perdendo o brilho, e entre o templo sagrado
Do teu amor empós uma quimera.

Entre - que importa! encontrarei um teto
E o agasalho das Santas Escrituras,
- Peregrino do amor, pagão do afeto.

E o batismo terei para quem ama.
- Amplo Jordão de águas claras e puras -
Água lustrai que o teu olhar derrama.

RETORNO

Olha! volto de novo, - Olha! de novo à crença.
Eu volto. É o mesmo templo. – O teu olhar traspassa
Rasga, ilumina em fogo, a abóbada suspensa
De onde pende do incenso a mesma nuvem baça.

Sinos rebadalando o glorioso repique...
Toda a massa dos fiéis pelos degraus do altar...
Deixa que suba a prece e que a esperança fique
À flor dos corações como algas sobre o mar.

É o mesmo ainda o canto invisível e crente,
O turíbulo de ouro o mesmo fumo evola,
E do órgão gemebundo o queixume plangente
É o mesmo que noss'alma embriaga e consola.

Aquece-me de novo o mesmo fogo interno,
Chora-me dentro d'alma o mesmo cantochão
Que no ouvido me entrou pelo lábio materno
Como um vinho de Cós num cérebro pagão.

Mas uma timidez de neófito me invade,
A alma se me conturba, a vista emarelece...
Sinto-me tropeçar a cada claridade
E a cada treva sinto um corpo em que tropece...

Por que em ti hão achar o desejado guia
Que o vacilante passo, estradas através,
Conduza onde não haja além da luz do dia
Outra luz que não seja a que vejo a teus pés?

Vem! que por tua voz de madrigais suaves,
Fanático, a pisar, enfebrecido e louco,
Eu descubra o caminho através estas naves
E me tires a venda aos olhos, pouco a pouco.

Aceita no agasalho ardente do teu beijo,
A alma cheia de medo e cheia de terror,
E nesta indecisão do primeiro desejo
Mata o dragão do ciúme e dá vida ao amor.

Faze do teu olhar o meu único teto,
A única inspiração me venha do teu riso,
Que eu não sei se haverá noutrem maior afeto,
Se igual dedicação neste mundo diviso.

Queira a fúria de mar que em teus olhos se mira,
Queira a calma de luar que o teu olhar contém,
Naufragar o temor que esta paixão me inspira
E a esperança banhar da alegria que vem!

O RIO GUERREIRO

Rota a vertente, a rocha rebentando,
Impetuoso em esguicho o campo irrora;
Regato agora, agora largo e brando,
De branca espuma a superfície enflora.

Logo torrente o crespo dorso impando,
- Quer seja noite, quer o veja a aurora –
Légua a légua o terreno conquistando,
Vai caudaloso pelo vale em fora.

Ei-lo afinal - o forte curso findo,
Num esforço estupendo, soberano.
Fero, revolto, arroja-se rugindo

Aos loucos roncos vagalhões do Oceano.
A Pororoca o estrondo repetindo
Eternamente do combate insano!...

SALTO DO GUAÍRA

Largo, oceânico, azul, ora margeando
Campina extensa, ora frondosa mata,
Léguas e léguas marulhoso e brando
O rio enorme todo o céu retrata.

Súbito, as águas, brusco, represando
Em torvelins de espuma se desata;
Vertiginoso, indômito, raivando
Ruge, fracassa e tomba em catarata.

Tomba, e de novo em arco se levanta.
Nada a brancura esplêndida lhe turva,
Em tanto resplendor e glória tanta.

TRAPO

Esta que outrora o linho da cambraia
Na pompa da ostentosa lençaria,
- Folhes e rendas que à secreta alfaia
Ornavam com capricho e bizarria –

Era camisa – e que hoje a nostalgia
Sofre do tempo em que entre a pele e a saia
O perfumado corpo lhe cingia, -
Era ao possuí-la, a última atalaia.

Trampo que encerras o embriagante aroma
Do seu colo moreno, poma e poma,
Ora em tiras te vejo desprezado.

E mais te quero, e mais te achego ao peito
Trapo divino! Símbolo perfeito
De um coração por Ela espedaçado.

Fonte:
Emílio de Meneses. Obra Reunida. 
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.

Antonio Brás Constante (A Idade que Possuímos e a que nos Possui)


Gosto de dizer aos jovens de todas as idades que a idade é uma ferramenta criada para que possamos nos reinventar a cada 365 dias, sempre com um modelo novo, somando acessórios definidos como experiência em nossa bagagem existencial. Porém, para muitos, a idade serve apenas de desculpa, colocando nela toda culpa pela infelicidade de não se tentar novamente viver. E assim a realidade vai nos puxando pelo braço, e em seu abraço nos acomodamos, nos deixamos padecer.

O que é a velhice forjada pelo tecido dos anos, frente a uma alma eterna? Se não existe uma idade certa para se morrer, quanto mais para nos restringir de viver. O maior problema do ser humano é não conseguir aceitar que foi criado com uma essência imortal, alojada dentro de uma embalagem perecível.

Quando somos fisicamente jovens, nossos hormônios nos gritam loucuras, instigando uma mente ainda meio criança aos seus devaneios obedecer. Não somos trens de carga, obrigados a seguir os caprichos das linhas do destino, mas podemos transformar essas linhas em um belo bordado. Eu, por exemplo, sou viciado em viver; se me privarem desse vício, fatalmente irei morrer.

Dizer que temos um destino já traçado só é válido para quem se conformou. Quem não quer seguir pela única estrada existente em uma montanha, sairá da estrada e escalará a rocha, experimentando a intensidade de cada instante, sem olhar para o que já passou, por saber que o que realmente importa é o momento presente e não aquilo que ficou para trás. Mas as pessoas costumam gastar mais tempo reclamando dos sofrimentos de um único passado, do que buscando a chance de tentarem melhorar inúmeras possibilidades de futuro.

Preconceitos e sentimentos de inveja, mesquinharias, egoísmo são drogas mentais que costumam parasitar em indivíduos que deixaram a juventude morrer em seus corações, agindo como se não tivessem mais nada de bom pelo que viver. Somos crianças convivendo com outras crianças, interpretando papéis escritos em moldes pré-fabricados como corretamente adultos.

Vivemos aglutinados em montinhos de gente, que se intitulam como pretensas sociedades, impondo limites de fronteira (fictícios pedaços de terra) para seus próprios irmãos de carne. Crescemos obedecendo a condutas que estabelecem quando devemos nos sentir crianças, jovens, adultos ou velhos, com base apenas em nossa idade física, sem levar em conta a essência de nosso ser. E assim a sociedade (alimentada por nossa torpe moralidade) vai ditando comportamentos e destruindo a eterna juventude que repousa dentro de cada um de nós, esquecendo que nossa vida é tão breve que não temos tempo de envelhecer.

Não devemos ficar parados nas encruzilhadas da existência, como quem veste uma roupa sem nunca mais querer tirá-la. A arte da eterna juventude consiste em rejuvenescer a cada ano que passa, a cada novo dia. Para que assim possamos chegar ao fim de nossas vidas com a alma tão jovem quanto no dia em que nascemos.

Fonte:
Constante, Antônio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

Joaquim de Melo Freitas (Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa vol. 5) IV


Cavatina
(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)

Tenho ideias confusas e geladas
Sobre a escala do amor onde resplende
Lá,  nesse vivo sol, que mais se acende
Ralentando as promessas calculadas.

A gama dos suspiros não atende,
É de mau tom possuir lindas manadas
Diamantes, que se afinam nas ciladas
Das pausas, que o desejo não entende.

Algumas joias quis com ar guapo
E a compasso dos negros agiotas
Outras requer num pródigo – da capo.

Morre-se – diz o adágio – d'alegria
Portanto se eu pagasse em boas  notas
Expirávamos ambos d'harmonia.

No Teatro Anatômico

Sobre a mesa de mármore luxuosa
Descana cintilante formosura
D'uma criança esbelta, uma pintura,
Que parece dormir silenciosa.

As alvas romãs, que a virtude esposa
São como alegre ninho de candura;
Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
Causa pena entrega-la á sepultura.

Os estudantes em pródiga algarvia
Retalhando o cadáver delicado
Jogam chufas de sórdida alegria.

Mais tarde o esqueleto dissecado
Assiste ás preleções d'anatomia
À escuta com ar petrificado.

Epitáfio

Meu coração aqui jaz, erma ruína
Onde habita a ironia, o vil fantasma
Golfão anacoreta entre o miasma
Perseguido pela brisa cristalina.

O lírio, o trevo ri junto á bonina,
Só de raiva a minha alma abdica, pasma
Porque a tristeza famulenta traz-ma
Nas duras garras d'ave de rapina.

Meu coração aqui, sob esta alfombra
Dos pálidos desdéns, justos ciúmes
Adora morto e frio a tua sombra.

Até que emfim - oh céus!- os meus queixumes
Te despertam o choro, que me assombra
Envolvendo o cadáver em perfumes!

Aquarela

Acorda a sombra tácita do lago,
Do rouxinol a cândida volata;
A lua em chispas tremulas de prata
Imprime ao lesto amor um tom presago.

O vento raro e brando com afago
O tredo esquife languido arrebata
E o transporta sutil, como um pirata,
Dando asas ao terror ignoto, vago.

Suspira na floresta a morna aragem,
As 'strellas trocam beijos delirantes,
Que mais excitam castelã e pajem,

Eis brilha uma couraça junto á margem
E a flecha sibilando alguns instantes
Acaba num só golpe os dois amantes.

Testamento

Lego uma trança do cabelo dela
Para atar um cavalo á manjedoura
E as cartas da flácida impostora
Para embrulhar açúcar e canela.

Ao crédulo rival, deixo, leitora,
A licença de entrar pela janela;
Outrossim deixo as ligas e a fivela
Que cingiram a perna encantadora:

Os beijos que me deu ficam comigo
E a memória das noites palpitantes
Há de caber também no meu jazigo.

O seu retrato irá ao lupanar
Pra assistir à luxuria das bacantes
Já que a dona não vai em seu lugar.

Fonte:
Joaquim de Melo Freitas. Garatujas. 
Aveiro/Portugal: Imprensa Commercial, 1883