sexta-feira, 15 de março de 2019

Lima Barreto (A Barganha)


as palavras com *, ver o vocabulário ao final do texto
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E o “turco”, desde muito cedo, andava pelos subúrbios a mercar aqueles coloridos registros de santos. Havia um são João Batista, com a sua tanga, o seu bordão de pastor e o seu inocente carneiro que olhava doce tudo o que via fora da estampa; havia um Cristo com o coração muito rubro à mostra, coroado de espinhos, e os olhos revirados para o Céu que naquele dia estava lindo, de um profundo azul-cobalto; havia uma Ceia em que Jesus presidia, mansueto e resignado, apesar de se saber traído, e havia muitos outros santos e santas que o “turco” levava, alguns enrolados, mas outros diante do seu peito arquejante das suas caminhadas de humilde bufarinheiro*, daquelas modestas paragens da cidade.

E ele ia:

— Compra, sinhor! Muita bonita!

Das casas, às vezes, lá saía uma mulher ou outra, de cores as mais variadas, e indagava com desprezo:

— Olá! O que é que você leva aí?

Miguel José parava, aproximava-se da porteira e respondia:

— Santa, sinhora! Muita bonita!

— Que santos tem?

— Muitas, sinhora. Tuda bonita.

Desenrolava os registros e a rapariga começava a examinar. De repente, à vista de uma daquelas oleo-gravuras, ela gritava:

— Leocádia! Leocádia!

Lá do interior da casa respondiam:

— Que é?

A outra acudia:

— Vem cá. Vem ver uma coisa.

Vinha uma outra rapariga e a que estava, recomendava, mostrando um dos quadros do “turco”:

— Vê só como é lindo este Menino Jesus.

A outra examinava e concordava. O “turco” se animava e perguntava:

— Não quer compra ele?

Uma delas ia ao encontro da pergunta do bufarinheiro:

— Quanto é?

— Barata, sinhora.

— Quanto?

— Dois mil-réis.

— Chi, meu Deus! É caro, muito mesmo.

O pobre ambulante não fazia negócio algum; e continuava com a sua carga sagrada a palmilhar aquelas ruas que são mais propriamente veredas.

Ainda se houvesse árvores, sombra que amaciasse aquela manhã quente, embora linda e cristalina, o seu ofício seria suportável; mas não as havia. Tudo era descampado e as ruas eram batidas pelo sol em chapa. Lá ia ele. As calças ficavam-lhe pelos tornozelos; o chapéu era de feltro, mas não se sabia se era preto, azul, cinzento. Tinha todas as cores próprias a chapéus dessa espécie. Em um pé calçava uma botina amarela; em outro, um sapato preto.

— Cumpra, sinhor! Coisa bonita de Deus! Cumpra.

Foi dizendo isto a um petulante crioulo, muito preto, de um preto fosco e desagradável, cabeleira grande, gordurosa, repartida ao alto, e o chapéu a dançar-lhe em cima dela; foi dizendo isto a ele que lhe ia acontecendo urna grande desgraça naquela manhã. O negro, ao ouvi-lo, chegou-se muito junto ao “turco” e indagou com um ar autoritário:

— Que é que você está dizendo?

O humilde armênio pensou logo que tratava com um soldado de polícia à paisana, pois lhe parecia que, na terra em que estava, todos os pretos são soldados e podem prender todos os armênios.

Com essa convicção, Miguel José respondeu cheio de respeito e acatamento:

— Dizia, sinhor: cumpra santo muita bonita.

O negro perfilou-se todo, tomou uns ares judiciais ou policiais, chegou o chapéu de palha para a testa e disse:

— Você parece que não é civilizado.

— Cumo, sinhor?

— Sim, você é herege, inimigo de Nosso Senhor.

— Não, sinhor.

O preto desarmou-se um pouco de seus ares judiciais ou policiais, tomou-se mais suave, quis fazer de penetrante e sagaz. Perguntou:

— Você come carne de porco?

E Miguel José olhou as montanhas pedregosas que ele via lá, longe, esbatidas* no azul profundo da manhã, ressaltando quase inteiramente na ambiência translúcida do dia, e lembrou-se da sua aldeia armênia, das suas cabras, das suas ovelhas, dos seus porcos.

A sua fisionomia dura contraiu-se um pouco e os seus olhos de carneiro quiseram chorar de recordação, de sofrimento, de mágoa. Ele se encheu todo de uma pesada tristeza; mas pôde responder:

— Sim, senhor, eu coma.

— Então você é cristão? insistiu o preto.

— Sim, sinhor; diga a sinhor sou cristão.

— Admira.

— Por quê, sinhor?

— Porque você diz “vender” “comprar” santos.

— Cuma se diz então?

— Troca-se. Aprenda — está ouvindo! É falta de respeito, é sacrilégio dizer comprar ou vender santos. Aprendeu?

— Sim, sinhor. Obrigada, sinhor.

E o crioulo se foi, deixando o pobre armênio arrasado por mais aquele déspota que passava sobre a sua pobre raça; mas mesmo assim, continuou na sua mercancia*.

Lá se foi ele por aquelas ruas de tão caprichoso nivelamento que permite as carroças que por lá se arriscam andarem no ar com burros e tudo. Lá ia ele:

— Cumpra, sinhor! Muita bonita.

Subia, descia ladeiras; parava nas portas; mas não fazia negócio algum.

Num pequeno campo, encontrou uma porção de crianças a empinar papagaios. Parou um pouco para ver aquele divertimento interessante que as crianças da sua terra não conheciam. Veio um pequenote:

— Ó Zê! O que é que você leva aí?

— Santo, menina. Pede mamãe compra uma.

— Ora, esta! Lá em casa tem tanto santo — para que mais um? Vende ali, aos “bíblias”.

Miguel José percebeu bem a malícia da criança, pois de uma feita caíra na tolice de oferecer um registro a essa espécie de religiosos e se vira atrapalhado. Não que o tivessem maltratado, mas um deles, baixinho, com um pincenez* muito puro de vidros cristalinos, o levara para o interior da casa, lera-lhe uma porção de coisas de um livro e depois quisera que ele se ajoelhasse e abandonasse os registros. Noutra não cairia ele…

Continuou o caminho, mas estava cansado. Ansiava por uma sombra, onde repousasse um pouco. Havia muitas árvores, mas todas no interior das casas, nas chácaras, nos quintais ou nos jardins. Uma assim pública, na margem da rua, em terreno abandonado que o abrigasse aí, por uns dez minutos, ele não encontrava.

E seria tão bom descansar assim fazendo o seu minguado almoço, para continuar até à tarde a sua faina, vendo se ganhava pelo menos uns dez ou cinco tostões de comissão com a venda daquelas coisas sagradas.

E continuou o seu caminho, tendo sempre exposta diante do peito a imagem de Cristo, coroado de espinhos, a mostrar o coração muito rubro, com os seus misericordiosos olhos a procurar o Céu, naquela manhã muito linda, de um profundo azul-cobalto…

Afinal, achou uma mangueira, maltratada, cheia de ervas parasitas, a crescer na borda do cominho, num terreno desocupado. Sentou-se, tirou da algibeira um naco de pão dormido, uma cebola e pôs-se a comer, olhando as montanhas pedroucentas* que assomavam ao longe e lhe faziam lembrar a terra natal. Ele não tinha nenhum nítido pensamento sobre a vida, a natureza e a sociedade…

Não tardou que se lhe viesse juntar um companheiro. Era também um “volante” como ele; mas a sua mercancia era outra, menos espiritual. Vendia sardinhas, de que trazia um cesto cheio. Era um português, cheio de saúde, de força, de audácia. Vinha suado, mais do que o armênio; entretanto, não dava mostras de ter ressentimentos nem do sol nem da dureza do seu ofício. O armênio olhou-o com inveja e pensou de si para si:

— Como é que esse homem pode ser alegre, pode ter esperanças?

O português, sem auxílio, arriou o grande cesto na sombra e sentou-se também cheio de confiança e desembaraço.

Foi logo dizendo:

— Bons dias, patrício.

Miguel José fez uma voz sumida:

— Bom dia, sinhor.

O português, sem mais aquela, observou:

— Qual senhor! Qual nada! Cá entre nós, é você pra baixo. Isto de senhor é lá pros doutores, não é para nós que andamos aqui aos tombos.

E emendou comunicativo:

— Que diabo — ó patrício! — que tu comes pra aí?

O “turco” disse-lhe e o Manuel da Silva considerou:

— Lá na minha terra, há quem goste disto; mas eu nunca me acostumei. Cebola pra mim, só na comida. Numa bacalhoada, ah!…

Miguel José continuava a mastigar sua cebola com pão, enquanto Manuel da Silva contava a féria. Contada que ela foi, disse bem alto:

— Pela hora que é, as coisas não vão mal. Até o meio-dia vendo tudo…

Guardou o dinheiro na bolsa que tinha a tiracolo e perguntou subitamente ao companheiro de acaso:

— Você já vendeu muito hoje, patrício?

— Nada, sinhor.

— Está você a dar com o tal de senhor! Pergunto se você já vendeu alguma coisa hoje, homem!

— Nada.

— O que é que você vende?

— Santo, sinhor.

— Santo?

— Sim; santo.

— Deixa ver isto, como é? fez o português curioso.

O armênio passou-lhe os registros coloridos e o vendedor de sardinhas pôs-se a olhá-los com espanto e deslumbramento artístico de aldeão simplório. Achou tudo aquilo bonito: aquele Jesus, mostrando o coração; são João, com o carneirinho; o Menino Jesus — tudo muito lindo aos seus olhos maravilhados de camponês cândido e enfeitiçado pelas coisas do senhor vigário.

Refletiu de si para si: “Coisas tão bonitas, se não as vendeu, é porque este ‘turco’ é mesmo burro. Comigo, já as tinha vendido, ganhado dinheiro e ficado com algumas, pra pôr lá no quarto”.

Veio-lhe uma ideia.

— Patrício! Você quer fazer um negócio?

Os olhos de carneiro do armênio luziram mais forte e com mais esperança.

— Qual é? perguntou ele.

— Tenho ali na cesta cerca de vinte mil-réis de sardinhas, vendidas a duas por um vintém. Se você vendê-las a vinte, ganha o dobro. Quer você trocar estes santos pelo cesto de sardinhas?

Miguel José rapidamente pesou os prós e contras da operação comercial. Sabia bem, por experiência própria, que a população, até as crianças, se mostrava refratária à mercadoria espiritual de que ele era portador; e, pelo que lhe vira ainda agora nas mãos, a do seu companheiro não se portava da mesma forma.

Em se tratando de sardinhas, as coisas não corriam da mesma maneira como no tocante a santos. Considerou bem e logo respondeu:

— Tá feita, sinhor.

Os dois se despediram e trocaram de carga. Miguel José voltou a passar pelos mesmos lugares em que oferecera os registros, sem nenhum resultado; mas, quando apregoou as sardinhas, não teve mãos a medir. Vendeu-as a vintém, então fez escambos de compensação e, de tal forma correram-lhe as coisas que, dentro de três horas, tinha vendido tudo, podia pagar os registros à loja e lucrava cinco mil e tanto.

Manuel da Silva, o alegre português das sardinhas, saiu muito ancho com os seus registros; mas não foi logo vendê-los.

A frugalidade do “turco” tinha-lhe dado uma fome extraordinária. Procurou uma casa de pasto e comeu a fartar, acompanhado de um bom martelo de verdasco.

Bem alimentado, satisfeito, dispôs-se a “trocar” o são João Batista, Menino Jesus, correndo a sua freguesia de peixes e crustáceos.

Batia as portas:

— Mamãe, dizia uma criança, está aí o seu Manuel.

A mãe perguntava lá de dentro:

— Ele traz camarão?

— Não, mamãe; quer vender santos.

— Para que deu agora, seu Manuel! Ora, vejam só! Vender santos. Diga a ele que não quero.

Dessa e de outra maneira, ele foi percorrendo em vão sua freguesia das sardinhas, sem mercar uma única estampa religiosa.

A sua alegria matinal se ia e todo o seu desgosto se voltava terrível contra ele mesmo. Não fora o “turco” que o embrulhara; fora ele mesmo que propusera aquele negócio. Era castigo. Ia tão bem com as sardinhas, para que fizera aquela barganha?

Andou até quase a noitinha e nada vendeu. Ao recolher-se, ainda quis ver as oleo-gravuras que o haviam deslumbrado.

Mirou uma, mirou outra e, olhando-as firmemente, refletiu:

— Se não fosse por faltar o respeito devido a Nosso Senhor Jesus Cristo, que ai está, eu havia de dizer que tudo isso são coisas do diabo que aquele “turco” me impingiu. Nunca mais! Tarrenego*!
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vocabulário:
Bufarinheiro = vendedor ambulante de bugigangas
Esbatidas = de tom ou colorido pálido
Mercancia = ato de mercanciar, mercadejar, primeira palavra para mercado, negociação.
Pincenez = modelo de óculos que não apresenta hastes. A fixação se dá fixando o óculos sobre o nariz.
Pedroucentas = com um montão de pedras.
Tarrenego! - interjeição. exprime desagrado, repulsa ou censura; tesconjuro.

quarta-feira, 13 de março de 2019

J. G. de Araújo Jorge (12 Trovas Marias)


1
A essa Maria que passa
minha oração já compus:
- Maria cheia de graça !
- Maria cheia de luz!

2
Deus pôs no céu três Marias
na mesma constelação,
e na noite de meus dias
mais três, no meu coração...

3
Há tantas Marias, tantas,
que quantas há eu nem sei. . .
Sei que há belas, feias, santas, . . .
...e a Maria que eu amei. . .

4
Há tantas Marias, tantas,
quantas são as aves no ar,
as nuvens no céu, e as plantas
na terra, e as ondas do mar...

5
Mar adoçado com mel,
dia de luz, claro dia,
misto de mar, terra e céu,
eis o teu nome: Maria.

6
Maria , nome tão doce
que nos sugere outro mar,
mar que salgado não fosse...
... doce até de pronunciar...

7
Maria Clara, Maria
dos Anjos, da Conceição...
E aquela que eu chamaria
Maria do coração. . .

8
Marias que não tem fim ...
. . . das Dores, do Ó, do Socorro . . .
A que diz morrer por mim
e a Maria por quem morro . . .

9
Ó Maria concebida
para ser o meu pecado...
Nos teu braços, minha vida
é um barco desarvorado.

10
Ó Marias . . . Repetidas
simbolizais a mulher,
se há sempre nas nossas vidas
uma Maria qualquer . . .

11
Ó Marias, que eu agora
junto na mesma quadrinha:
- Do céu, a Nossa Senhora,
- da Terra, a senhora minha...

12
Por duas Marias erra
meu viver de déu em déu:
- a que me perde na terra,
- a que me salva, no céu.

Fonte:
J.G. de Araujo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. IV, 1965.


Leon Eliachar (Dicionário de Bolso) Letras N até S

N

Namoro
— passatempo a quatro mãos.

Noivado — período de desajustamento antes do casamento.

O

Oba — palavra que todo revistógrafo brasileiro usa para encerrar o seu show musicado. Na Espanha se usa OLÉ e nos Estados Unidos, IUHU.

Ópera — conjunto de pessoas que praticam os maiores desatinos cantando.

Orador — sujeito que quando abre a boca faz todo mundo fechar os olhos.

P

Palavrão — equipamento mais importante do motorista.

Patrocinador — único sujeito que paga para ouvir seus programas.

Perdão — melhor maneira de esquecer o erro do próximo até a primeira oportunidade.

Pêsames — palavras de gentileza sempre recebidas com a cara fechada.

Plágio — outro sujeito ter tido a nossa ideia primeiro.

Pontualidade — coincidência de duas pessoas chegarem com o mesmo atraso.

Problema — é isso que a gente tem e pede pros outros resolver mas os outros também têm e pedem pra gente resolver.

Procurador — é esse sujeito que passa o dia inteiro nos procurando para saber qual a atitude que deve tomar em nosso lugar.

Promissória — intervalo entre uma assinatura e um milhão de desculpas.

Q

Quadro-negro
— é esse quadro que sempre sai branco nos desenhos.

Quarto de hora — são esses quarenta minutos que a namorada nos pede para retocar a pintura no toalete.

Quinta-feira — dia em que percebemos que não fizemos esta semana tudo o que vamos deixar para a semana que vem.

R

Rascunho
— é o que a gente escreve cinco vezes de forma diferente em cima do mesmo papel e quando vai passar a limpo não entende mais o que escreveu.

Recibo — comprovante que a gente guarda toda a vida pra provar que pagou e só dão de duvidar que não pagamos no dia em que resolvemos rasgá-lo.

Rede — coisa que só para de balançar quando a gente dorme.

Regente — sujeito que só enfrenta o público de costas.

Relógio de pulso — algema que nos prende apenas por um pulso.

Renúncia — gesto que se torna nobre porque não há outro jeito.

Reta — uma curva cortando caminho.

Retrato — isso que a gente fica por conta quando não sai parecido e mais por conta quando sai.

Retrocesso — tecla que não entra no curso de datilografia mas que os datilógrafos acabam usando mais.

Rotina — é esse esforço que a gente faz diariamente para sair da rotina.

S

Sacrifício
— pequena cota do nosso "eu" que depositamos na boa fé alheia para sacar com juros.

Saldo — grande estoque que encalha e o comerciante resolve vender uma peça de cada vez.

Sapato — condução de pobre.

Saudade — retrocesso do pensamento.

Secretária — moça que arruma a vida do patrão e desarruma a da patroa.

Segredo — isso que vai rolando de ouvido em ouvido e volta sempre com mais detalhes.

Sexo — coisa que antes de Freud era indecência; depois, psicanálise.

Sinal luminoso — é isso que abre precisamente com a buzina do carro que está atrás do nosso.

Striptease — uma mulher vestida de olhos.

Suéter — é essa peça de lã que as mulheres usam para fazer os homens suarem.

terça-feira, 12 de março de 2019

Contos e Lendas do Mundo (África: O Irmão Coelho e o Bebê de Alcatrão)

As histórias do Irmão Coelho eram contadas primeiramente pelos escravos afro-americanos, e são provenientes dos mitos de animais de África. Estas histórias foram registradas por um jornalista de origem europeia, chamado Joel Chandler Harris.

- Toca a levantar, Irmão Raposo! - disse o Irmão Coelho numa manhã soalheira, passando a correr pelo seu inimigo sonado. Agora, o Irmão Raposo era maior do que o coelho, mais forte do que ele e tinha dentes mais afiados, mas o Irmão Coelho estava sempre a levar a melhor sobre ele!

O Irmão Raposo planejou mudar tudo isso - para sempre. A razão por que estava com um ar meio sonolento não se devia ao fato de o barulhento do Irmão Coelho ter acabado de acordá-lo. Não, o Irmão Raposo estava cansado porque estivera a planejar travessuras até tarde.

Rastejara até ao poço de alcatrão, onde o pez borbulhava do chão e moldara um pedaço de modo a parecer-se com um coelho bebê.

Depois, o Raposo levou o bebê de alcatrão e sentou-se no meio do canteiro de terra que ele sabia que o Irmão Coelho palmilhava todos os dias até à sua plantação de alfaces. Então, foi sorrateiramente até casa e enroscou-se, fingindo ter estado lá a dormir toda a noite.

Quando o coelho agarrou o bebê de alcatrão, saudou-o.

- Bom dia, jovem - disse ele. - Onde estão a tua mamã e o teu papá?

Como é óbvio, o bebê de alcatrão não respondeu, porque ele era isso mesmo: um bebê feito de alcatrão. Nessa altura, o Irmão Coelho deu-lhe um bom abanão - só para descobrir que as suas patas se agarravam a ele como cola. Depois, utilizou as patas traseiras para se libertar do alcatrão pegajoso e também elas ficaram coladas.

 Foi então que o Irmão Raposo surgiu. Estivera escondido num buraco, sempre à espreita.

 - Parece que esta noite vou ter guisado de coelho! - riu-se ele. - Acho que vou pôr-te ao lume! - disse, agarrando o Irmão Coelho pelas orelhas.

- Oh, então está bem - disse o coelho. - Pensei que me ias atirar para aquele canteiro de roseiras-bravas.

- Pensando melhor, vou esfolar-te e depois comer-te - disse o raposo, aborrecido por o coelho não parecer estar assustado com a ameaça.

- Desde que não me atires para dentro do canteiro - suplicou o Irmão Coelho.

- Ou posso pendurar-te numa árvore - disse o Irmão Raposo.

- Parece desagradável - concordou o Irmão Coelho. - Mas não tão desagradável como o canteiro.

- Então é mesmo para aí que vais! - exclamou o raposo. Libertando-o do bebê de alcatrão, atirou-o ao ar... e o Irmão Coelho aterrou no canteiro de rosas-bravas cheias de espinhos.

- Obrigado por me soltares, Irmão Raposo - gritou o Irmão Coelho. Esqueceste-te que nós coelhos nascemos e crescemos no meio das roseiras bravas. - E, com isto, foi-se embora saltitando.

Tal como um escravo consegue enganar o seu dono com astúcia, mais uma vez o Irmão Coelho derrotara o Irmão Raposo fazendo-o passar por parvo.

Fonte:

Arthur de Azevedo (A Dívida)


I

Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de São Paulo. Depois da cerimônia da colação do grau, foram ambos enterrar a vida acadêmica num restaurante, em companhia de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São José. Aí se entregaram à recordação da sua vida escolástica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos e este para a capital do Império. As malas estavam feitas.

– Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá tantas voltas!

– Não creio, respondeu Veloso. Vais para a tua província, casas-te, e era uma vez o Montenegro.

– Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas ideias a respeito do casamento, ideias que são, aliás, as mesmas que tu professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro.

– Isso dizem todos…

– Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto de saber que eu quando digo, digo.

– Pois sim, mas há de ser difícil que em Santa Catarina te possas livrar do conjugo vobis. Na província ninguém toma a sério um advogado solteiro.

– Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem ser casados.

– Não me engano tal. Na província o homem solteiro, seja qual for a posição que ocupe, só é bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras.

– Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?

– Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos. Queres fazer uma aposta?

– Como assim?

– O primeiro de nós que se casar pagará ao outro… Quanto?

– Vê tu lá.

– Deve ser uma quantia gorda.

– Um conto de réis.

– Upa! Um conto de réis não é dinheiro. É preciso que a aposta seja de vinte contos, pelo menos.

– Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar vinte contos de réis?

– O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem

– Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!

– Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas estampilhas.

– Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação recíproca, passada com todos os efes e erres!

Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.

– Senta-te e escreve o que te vou ditar.

Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse:

– Pronto.

Eis o que o outro ditou e ele escreveu:

"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de réis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse pagamento, além da presente declaração, a minha palavra de honra."

– Agora eu! disse Veloso, sentando-se:

"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de réis…etc."

As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando cada um com a sua.

No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte.

II

Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo da família dele, paternalmente se ofereceu para encaminhá-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu escritório.

Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente. Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações no comércio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa, frequentando a alta sociedade, gastando à larga.

O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porém, deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteção com que foi recebido.

Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.

– Olha que aquilo está de pé!

– Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.

– Se te casas, não te perdoo a dívida.

– Nem eu a ti.

Os dois bacharéis separaram-se friamente. Veloso não pagou a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se às vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro:

– Então? ainda não és noivo?

– Não.

– Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos…

III

Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito. Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente.

Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rápida e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela elegância do vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras.

Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um físico de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara.

Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressão que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro, ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labareda a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso é que se deixou vencer pela insistência com que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiníveis sorrisos que nas batalhas do amor equivalem a uma capitulação.

O acordo tácito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hóspede na arte de namorar, chegou a perguntar a si mesmo se não era tudo aquilo o efeito de uma alucinação.

O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:

– Vamos jantar.

À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de notável, colocaram Montenegro ao lado da moça.

Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e completa, da sua fascinadora vizinha.

Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam por Lalá, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma irmã de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores. Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima educação que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessário para viverem ambas sem recorrer ao auxilio de estranhos nem de parentes. Para não ser muito pesada à tia, Lalá ganhava algum dinheiro dando lições de piano e canto em casas particulares; eram os seus alfinetes.

– Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa. Quando é preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha tia.

E elevando a voz:

– Não é assim, titia?

– É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem saber de que se tratava.

Lalá era suficientemente instruída, e tinha algum espírito mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciáveis, tomaram proporções exageradas na imaginação de Montenegro.

Este disse também a Lalá quem era, e contou-lhe os fatos mais interessantes da sua vida, exceção feita, já se sabe, da famosa aposta de São Paulo.

E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas confidências que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que não foram poucos.

Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lalá cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressão, e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria. Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade.

Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça num último aperto de mão.

Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor de vinte contos de réis.

IV

Nesse mesmo dia Montenegro estava sozinho no escritório, e trabalhava, quando entrou o Conselheiro Brito.

– Bom dia, Gustavo.

– Bom dia, conselheiro.

O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os olhos:

– Gustavo, aquilo não te serve.

– Aquilo quê?

– Faze-te de novas! A Lalá.

– Mas…

– Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos. Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é tempo. Tu conhece-a?

– Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar
dela o melhor conceito.

– Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não me importa que fumem perto de mim.

– Então ela…?

– Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e não tem podido, por conseguinte, escapar á implacável maledicência dos fluminenses. Demais, está habituada ao luxo, ao luxo da rua, que é o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Não é mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o que bem te parecer.

Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada, calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo de seu pai o dissuadisse de requisitar a moça, – não pelas consequências morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha, de satisfazer uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar de todos os seus esforços, não conseguira até então pôr de parte nem o terço daquela quantia.

Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais conselhos que pedisse à razão, por mais que procurasse iludir-se a si próprio, Montenegro não conseguia libertar-se da impressão que lhe causara a moça. O seu coração estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois do seu encontro com Lalá, esta não lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de reação.

"Doutor. – Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto, não imagina como sofro por não saber os motivos que atuaram no seu espírito para interromper tão bruscamente… a leitura. Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que me tranquilize ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque só eu abro as minhas cartas. – Lalá."

A primeira ideia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar o seu procedimento, se recusasse a explicação com tanta delicadeza solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano categórico e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:

"Lalá. – Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me imponho para renunciar à ventura e á glória de pertencer-lhe; mas um motivo imperioso existe, que se opõe inexoravelmente à nossa união. Não me pergunte que motivo é esse; se eu lhe revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta dizer-lhe que a objeção não parte de nenhuma circunstância a que esteja ligada a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza.
Adeus, Lalá; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. – G. M."

– Que conselho me dá vosmecê? perguntou Lalá à sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.

– O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo… e talvez possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido, minha filha. O Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade.

No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:

"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do Senador Vergueiro. Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que eu e sente-se ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que nos entendamos de viva voz. – Lalá."

O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuía todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia dessa viagem de bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado, Lalá sabia já qual o motivo pecuniário que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de Montenegro.

– O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente considerável; mas… eu sou mulher e talvez consiga…

– O quê? perguntou Montenegro sobressaltado.

– Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.

Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem lhe magoar os dedos.

Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade.

– Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis dar um níquel.

O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:

– Foi por conta daqueles vinte, – sabes?

– Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se também.

V

Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso recato que é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal das suas condições de insolvabilidade, desistira mentalmente de considerá-lo um noivo possível, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga", palavras à-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que se ia tornando penoso e ridículo.

Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu parabéns, e dai por diante só se lembrou de Lalá como de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante mas nunca sua esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira impressão. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos lábios com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão foi tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.

VI

Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano extravagante e o punha em prática enquanto ele, tranquilo e despreocupado, imaginava que ela o houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se com a tia, que não primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritório e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular.

A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.

– Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.

Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o jantar do Conselheiro Brito.

Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso perguntou-lhe, terminada a história, em que poderia servi-la.

– Sou amada por um homem que é digno de mim, e o nosso casamento depende exclusivamente do doutor.

– De mim?

– A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miserável quantia a felicidade… de uma órfã.

– Não compreendo.

– Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.

– Ah! ah!…

– Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução, que tomei, de vir falar-lhe.

– Acredito.

– Qual é a sua resposta?

– Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho... mas perder assim vinte contos de reis…

– Recusa?

– Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de amanhã venha buscar a resposta.

A conversação continuou por algum tempo, e Veloso começou a sentir pela moça a mesmíssima impressão que ela causara a Montenegro.

Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição todos os seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.

– Feliz Gustavo!

– Feliz… por quê?

– É amado!

– Oh! não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão desenfreada!

– Ah!

– É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor não abrir mão da dívida, e ele não se puder casar, não creia que eu me suicide!

Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois, quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras:

– Não!… Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu marido, e…

– E…?

– E eu… tenho ciúmes.

No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela própria velha.

– Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que o outro… Não o deixes escapar, minha filha!

A verdade é que Veloso não se introduziu em casa de Lalá com boas intenções; mas a esperteza da moça e as indiscrições do advogado determinaram em breve uma situação de que ele não pôde recuar.

Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora ajustado esse consórcio imprevisto.

VII

No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório, quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido de Lalá.

– Não acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao Conselheiro Guedes.

– Não; mas não o gastes; afianço-te que terás ocasião mais oportuna para devolvê-lo.

E assim foi.

A lua-de-mel não durou dois meses. Os dois esposos desentenderam-se e logo se separaram judicialmente. Ele voltou à vida de solteiro e ela tornou para casa da tia.

Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em casa dele.

Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes termos:

"Doutor Veloso. – Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos de réis, porque a divida que ele representa é uma estudantada imoral, sem nenhum valor jurídico. – Gustavo Montenegro."

                                                                             Fonte: Arthur de Azevedo. Contos Fora da Moda.

domingo, 10 de março de 2019

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) VII



MEU QUERIDO PORTUGAL
Minha homenagem em especial a todos os portugueses... 
Radicados ou não nesse belo Portugal

Meu querido Portugal! Com teus encantos profundos.
Tu és pequenininho, mais és grande para o mundo...
És conhecido em toda parte, da Europa ao Japão.
Graças as tuas belezas que despertam multidões.

Meu querido Portugal! Tu és um predestinado.
Para descobrir novas terras para isso fostes criados.
E nunca foste esquecido...
Pois por Deus és sempre lembrado.

Tua missão foi divina, e repleta de muita luz.
Para descobrir novas terras...
E através da catequese ganhar almas para Jesus.
O mestre crucificado e morto pregado na cruz.  

MULHER PORTUGUESA

Lembro-me de ti oh beleza estrangeira...
...sem igual!
Tu es toda encantamento.
És filha de Portugal.

Deste país valoroso, de navegantes famosos...
De poetas e escritores,
Tu tens no corpo a beleza.
Na alma a grande nobreza...
No teu coração nascem flores!

És mulher formada a vista.
Que a todos, tu conquistas...
Sem teres dificuldades!
Em Portugal és rainha,
Que pena não seres minha...
Pois te amo de verdade!

Tua música é divina!
O teu fado me fascina!
Faz-me lembrar o passado...
A grande Amália Rodrigues
Que partiu nos deixando saudades!

CARNAVAL É UMA QUIMERA

Carnaval é uma quimera,
Vestida de fantasia...
Nos lábios um belo sorriso,
Cheio de hipocrisia.

É festa milenar, pois e pagam...
Com certeza, vivendo de ilusões,
De uma suposta alegria
Porém causando tristeza.

São noites e dias felizes para qualquer folião,
Que fogem da realidade,
E às vezes sem condição,
Pois gastam tudo que tem,
E ficam até sem o pão.

Graças a Deus que as igrejas,
Fazem retiros excelentes,
Para louvar ao senhor,
Pois pensamos diferentes,
Não gostamos do pecado,
Pois Deus está com a gente.

CHRISTINE
 Christine és tu a própria beleza,
Tu és algo de divino, és obra da natureza.
Desta natureza perfeita,
Que vai das matas a flor,
Tu és todo encantamento,
Tu te desmanchas em amor.

És filha do universo, dos rios...
...das matas e da flor!
Tu és toda iluminada,
Tu te desmanchas em amor;

Às vezes nas tuas horas de tristeza e dissabor;
Ajoelhas-te de mãos postas,
Pedindo auxílio ao Senhor;
E nesse instante também,
Tu te desmanchas em amor.

Das flores és a mais bela,
Moldada pelo criador,
Teu coração sei que é puro,
Tua alma tem valor,
Em qualquer lugar do mundo,
Tu te desmanchas em amor.

TE AMO

Tu és uma mulher meiga e bonita,
Teus carinhos são tão grandes como a tua calma,
Às vezes quando não estas contente...
É porque motivos outros te feriram a alma.

Alma tão boa de bondade eterna,
Bondade esta que a todos encanta,
Te amo tanto, que quero que um dia,
Tu sejas minha, muito minha, oh Santa!

Vives no mundo com objetivo...
De acabar com a senda da maldade,
Nascestes mesmo para praticar o amor,
Para mostrar a tua dignidade.

És para todos nós que te rodeiam.
O anjo bom, a fada da bondade,
Isto porque em toda tua vida,
O que mais fizestes foi à caridade.

VEM MATAR O MEU DESEJO

Onde estás, oh, minha amada!
Vem matar o meu desejo.
Quero ver-te nos meus braços
E amar-te o tempo inteiro.

Vem correndo, vem depressa,
Oh bela filha do sul,
Meu coração te espera.
Delirante e sonhador,
Quero cobri-te de beijos,
 E ofertar-te o meu amor.

Quero amar-te, oh, querida!
Enquanto vida eu tiver
Quero aconchegar-te ao peito...
Venhas de onde vier!
Quero dizer para o mundo,
Que sempre te amei!
E jamais amarei outra mulher.

Fonte: O poeta

Cora Coralina (Bondade também se Aprende!)


"Sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores".

Um repórter perguntou à Cora Coralina o que é viver bem?

Ela lhe disse: "Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo pra você, não pense.

Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velha. Eu não digo. Eu não digo estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.

Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê.

O bom é produzir sempre e não dormir de dia.

Também não diga pra você que está ficando esquecida, porque assim você fica mais.

Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.

Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica. Você vai se convencendo daquilo e convence os outros. Então silêncio!

Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou?

Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás.

Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.

Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.

Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor. Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.

Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir."

Jorge Amado (Mar Morto) 2a. e 3a. partes


Resumo comentado por Jayrus Luna

2ª parte

A segunda parte da obra denomina-se O PAQUETE VOADOR (nome do segundo barco de Guma) e compõe-se de nove capítulos.

Primeiro capítulo - Roteiro do mar grande

Meses de dificuldades no cais. Poucas viagens. Trabalho só para a boia. Quando Guma estava de bom humor, Lívia acompanhava-o, às vezes ficava sozinha, com o velho Francisco, ouvindo as histórias do cais. Sabia que o marido estava no mar e que podia não voltar. Gostou quando Esmeralda, amásia de Rufino, veio morar junto dela. Era uma mulata bonita e peituda.

Às vezes, a professora Dulce passava por lá e dava dois dedos de prosa. Esmeralda não gostava de Rufino que, se morresse no mar, ela arranjaria outro, ele já era o quarto. E ficava com insinuações para cima de Guma, que evitava, pois ela era amásia de Rufino, que era seu amigo.

Guma no "Valente" e mestre Manuel no "Viajante sem Porto" apostam corrida. Guma ganha. Andando pela praia, Lívia e Maria Clara encontram duas ciganas, e uma delas disse a Lívia que eles, ela e o marido, estavam passando por dificuldades, que as coisas iriam melhorar, que Guma corria grande perigo. Já há um ser que se move dentro de Lívia.

Segundo capítulo - Esmeralda

Grávida, Lívia procura Dr. Rodrigo, que ajudava as mulheres do cais e não se negava, inclusive, a fazer anjos, pois era um favor para muitas daquelas mulheres que passavam fome.

Guma, ao saber que ia ser pai, avisou a todos, primeiro a Rufino, e foi comemorar no Farol das Estrelas. Esmeralda falou a Guma que não tinha topado ainda com um homem que lhe fizesse um filho. Não queria um filho de Rufino. Ela era preta e queria melhorar a família. E mais uma vez, insinuou-se para Guma. Lívia passou mal e quase abortou. Guma chamou Esmeralda e doutor Rodrigo para ajudá-lo.

Enquanto Lívia dorme, Guma, sozinho com Esmeralda, deita-se com a amásia do seu melhor amigo. Depois, num momento de cólera, ameaça matá-la, quando ouve os passos dos tios de Lívia que chegavam com o velho Francisco. Lívia passava bem.

Terceiro capítulo  - Eram cinco meninos
Após a melhora de Lívia, Guma viajou, fugindo das perseguições de Esmeralda e tentando evitar Rufino, pois havia quebrado a lei do cais, traindo seu melhor amigo. Sentia vergonha. Encontrou Rufino no mar com a canoa engolindo água, parte da carga de açúcar perdida, que foi removida para o "Valente". Lívia e Esmeralda esperam os seus homens no cais. Somente Guma chega e, ao subir a ladeira com Lívia, Esmeralda sente ciúme. Guma fugia dela.

Leôncio, dado como morto, irmão do velho Francisco e tio de Guma, chega misteriosamente. Todos se assustam, principalmente o velho Francisco que pede que ele vá embora, mas Lívia permite que ele fique por duas noites. Saiu para andar pelo porto e nunca mais voltou. Guma tem receio de que Esmeralda conte a Rufino o seu relacionamento com ele. Esmeralda tinha os seios pontudos, e Rufino estava enrabichado por ela.

Na viagem seguinte, Rufino perguntou a Guma se ele já tinha ouvido falar de Esmeralda no cais. Veem os destroços de três saveiros. Salvam a tripulação. Eram cinco crianças que o pai esperava. Só sobrou uma.

Quarto capítulo - Água mansa

Depois do novo desaparecimento de Leôncio, velho Francisco pouco parava em casa, vivia no cais, bebia no Farol das Estrelas, voltava sempre bêbado. Rufino já desconfiava de que Esmeralda andava enganando-o, de que era corno. Achou uma carta dela endereçada a um marinheiro do "Miranda".

Num passeio de canoa, com troca de acusações, Esmeralda, sabendo que ia morrer, conta em detalhes o seu envolvimento com Guma, mas Rufino não acreditou. E ela ria. E foi rindo que morreu. Rufino abriu a cabeça dela com o remo: matou-a e, depois, jogou-se no mar para ser comido pelos tubarões. Morreu sem alegria. Só encontraram, depois, pedaços dos cadáveres.

Guma trabalhando no mar, Lívia achava cada vez mais que a vida dele corria perigo. Os tios dela iam visitá-la, queriam que Guma deixasse aquela vida do cais e fosse trabalhar na cidade alta.

Quinto capítulo - O "Valente"

" Valente" era o nome do saveiro de Guma. Aqui, Jorge Amado destaca a volta de Chico Tristeza, um negro que fora embora há muito tempo e, agora, voltava hercúleo, contando histórias. Trouxe um xale de seda para a sua mãe que vendia cocada.

A história que mais impressionou a todos foi a da África. Ali, vida de negro era pior que vida de cachorro. Lá, num descarregamento do Lloyd Brasileiro, os negros trabalhavam sob o chicote do branco. Aí, um preto que era foguista do navio, de nome Bagé, viu um negro ser chicoteado. Tomou o chicote das mãos do branco francês e, à frente de todos, deu-lhe uma surra. Nunca ninguém tinha visto aquilo. Chico Tristeza foi embora. Seu navio só demorou dois dias.

Sexto capítulo - O Filho

O Dr. Rodrigo foi chamado, pois Guma, no acidente, ficou com um ferimento na cabeça, mas primeiro teve que atender Lívia. Nasceu o filho de Guma. Ao invés de ficar alegre, Guma estava triste: seu filho nasceu, e ele não tinha um saveiro. Com a ajuda do dr. Rodrigo, comprou de João Caçula, para pagar em parcelas, o "Roncador", que passou a chamar de "Paquete Voador".

Sétimo capítulo - Toufick, o árabe

Nesse capítulo, aparece a figura do árabe Toufick, que chegou na terceira classe de um navio e vivia em uma aldeia entre os desertos. Com sua mala de mascate, sem conhecer direito a língua, já vendia sombrinhas, seda barata e bolsas às empregadas e criadas da Bahia. Aos poucos, foi conhecendo a cidade; morava num bairro árabe da Ladeira do Pelourinho.

Por suas qualidades de comerciante, foi trabalhar para F. Murad, o árabe mais rico da cidade, dono de uma casa de tecido que tomava quase todo um quarteirão e contrabandista de seda.

Oitavo capítulo - Contrabandista

Frederico, o filho de Guma e Lívia, já começava a andar, mas não queria saber de brincar com trenzinho, ursinho ou palhaço. Preferia brincar com um barquinho numa bacia de água, prenúncio de que teria o destino do pai.

O "Roncador", comprado a prazo de João Caçula, havia-se transformado em "Paquete Voador". Guma devia a dr. Rodrigo, que não cobrava, mas João Caçula vivia no seu pé, querendo que ele vendesse o barco para lhe pagar o que devia.

Toufick propõe a Guma que aceite transportar o contrabando de sedas, serviço feito por Xavier, que o deixou na mão. Guma podia ganhar, de uma só vez, até quinhentos mil réis e pagar o seu saveiro em dois ou três meses. Guma reluta, mas, por extrema necessidade, aceita o serviço, recebendo cem mil réis de adiantamento. Na primeira viagem, conhece Haddad, outro contrabandista, e F. Murad, o árabe mais rico da cidade.

Rodolfo e Lívia já desconfiavam de que Guma estava metido no negócio de contrabando, até que ele, encurralado e sem argumentos, diz a ela que, quando acabasse de pagar o "Paquete Voador", deixaria aquela vida.

Guma pagou o saveiro. Tomou amizade ao árabe Toufick. A vida havia melhorado. Guma tinha duzentos e cinquenta mil réis em casa e estava livre de dívidas. Em breve, quando juntassem um conto de réis, deixariam aquela vida para morar na cidade alta. Dariam um destino melhor para o filho.

Nono capítulo - Terras de Aiocá

Guma manda avisar a Rosa Palmeirão, nas terras do Norte, que o "neto" dela já havia nascido. Lívia a recebeu como uma irmã. Guma, enfrentando um grande temporal, numa das viagens de contrabando, com Toufick, Haddad e, desta vez, com Antônio, jovem árabe e filho de F. Murad, naufraga com o "Paquete Voador". Os tubarões devoram Haddad, Guma salva Toufick e fica ouvindo os gritos e F. Murad, na praia, pedindo pelo filho. Guma volta ao mar, pega o jovem que é jogado na praia pela forte correnteza.

Numa luta mortal com tubarões, Guma desaparece. O vento joga o "Paquete Voador" na areia do porto.

3ª parte

A terceira parte da obra denomina-se MAR MORTO e possui quatro capítulos.

Primeiro capítulo - O mar é doce amigo

 No "Viajante sem Porto", mestre Manuel, dr. Rodrigo, o velho Francisco, Maneca, Maria Clara e Lívia chegam ao local onde Guma desapareceu. O velho Francisco acende uma vela. Onde o pires parasse, lá estaria o corpo. Era só mergulhar. Todas as tentativas foram em vão. Guma desapareceu salvando dois, teve a morte mais heroica do cais.

Segundo capítulo - A noite é para o mar

Aqui, temos a volta da mãe de Guma, depois de vinte anos, velha e trôpega, meio cega. Toufick agradece a Lívia por Guma ter salvado a vida dele e a de Antônio. Murad, pai de Antônio, mandara uma certa quantia em dinheiro. Em certa estação de rádio da Bahia, alguém pede às mulheres que rezem para encontrar o corpo de uma marinheiro que morreu afogado. Lívia assume o comando do "Paquete Voador".

Terceiro capítulo - Hora da noite

Lívia sente o peso da solidão. O seu homem estava longe, morto no mar. Outros homens rondavam a sua porta. Para ela, a noite continua. A noite sem estrelas do mar morto.

Quarto capítulo - Estrela

A professora Dulce olha da escola. Os saveiros saem. Lívia, bem frágil, e Rosa Palmeirão, de navalha na saia e punhal no peito, seguem no veleiro. Rosa Palmeirão parece um homem em cima do "Paquete Voador".

O velho Francisco, olhando para o mar, vê Lívia em pé, no "Paquete Voador". E grita para os outros no cais: "- Vejam! Vejam! É Janaína."

Era a segunda vez que ele a via. 

Segundo Jorge Amado, "assim contavam na beira do cais."

Fonte:

sábado, 9 de março de 2019

Mario Quintana em Prosa e Verso 8


A CANÇÃO DO MAR

Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar...

O mar é embalado
Pelos afogados!

O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar...

São eles que tentam
Que tentam falar!

Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar...

Um dia viremos
Vestidos de algas

Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas

Um dia viremos
Com barcos e remos

Um dia...

Dorme, filhinha...
São vozes, são vento, são nada...

BILHETE

Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...

ELEGIA NÚMERO ONZE

Não, não é uma série de pontos de exclamação
— é uma avenida de álamos...
E o que, e para quem, clamariam então?!
Deserta está a cidade.
Todas as avenidas, todas as ruas, todas as estradas atônitas
se perguntam se vêm ou se vão...
Em nada lhes poderiam servir esses postes de quilometragem:
estão apenas desenhados, como num mapa.
Ah, se houvesse uns passos, ainda que fossem solitários...
Se houvesse alguém andando sozinho... e bastava!
São os passos
— são os passos que fazem os caminhos.
Deserta está a cidade.
Se houvesse alguém andando sozinho
— para ele se acenderiam então, como um olhar, todas as cores!
Porque a cidade está cega, também.
O que não é visto por ninguém
não sabe a cor e o aspecto que tem.
A cidade está cega e parada com a descor de um morto.
Porque tudo aquilo que jamais é visto
— não existe...

O SILÊNCIO

Há um grande silêncio que está sempre à escuta...
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!

E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.

OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

POEMA EM TRÊS MOVIMENTOS

I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
— como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.

II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu — sem saionará nem nada —
por uma porta diferente.

III

E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.
O límpido cristal

Que límpido o cristal de abril!... Um grito
não vai como os da noite — para os extramundos...
Todas as vozes, todas as palavras ditas — cigarras presas
dentro do globo azul — vão em redor do mundo
e a ninguém é preciso entender o que elas dizem;
basta aquele bordoneio profundo
que vibra com o peito de cada um...
palavras felizes de se encontrarem uma com a outra
nas solidões do mundo!

Fonte:
Mário Quintana. Esconderijos do tempo.

Mark Twain (O Noivado infeliz de Aurélia)


Devo esclarecer que não conheço, em absoluto, a signatária do referido documento, que se assina simplesmente Aurélia Maria – provavelmente um pseudônimo.

A pobre garota tem o coração transtornado pelos infortúnios que vem sofrendo. E sente-se tão perturbada pelos conselhos, uns diferentes dos outros, de amigos ignorantes e inimigos insidiosos, que não sabe mais o que fazer mais para se ver livre da teia do destino, na qual parece encontrar-se presa para sempre.

Nervosa, recorre a mim, suplicando-me que lhe dirija os meus conselhos, falando-me com uma eloquência extraordinária, que tocaria o coração de uma estátua.

Ouçamos a sua triste história.

Aurélia tinha dezesseis anos – diz ela – quando encontrou e amou, com todo o ardor de uma alma apaixonada, um rapaz de New Jersey, chamado Wilhamson Brockinridge Caruthers, quase seis anos mais velho que ela.

Com o consentimento de seus pais, ficaram noivos, e durante um largo período tudo correu muito bem, como se os noivos estivessem imunizados contra os instantes de desgraça que sempre tocam à humanidade.

Um dia, entretanto, a face da realidade transformou-se. O jovem Caruthers caiu de cama com varíola, e da espécie mais virulenta e terrível. Quando ficou bom, tinha o rosto desfigurado, a pele marcada pelas bexigas. Já não era o mesmo, porque a sua beleza desaparecera para sempre.

Aurélia pensou logo em romper o seu compromisso, mas, por uma questão de piedade para com o infeliz, limitou-se a transferir o casamento para depois, como que dando uma oportunidade ao pobre rapaz.

Acontece que na véspera do casamento, Caruthers, quando acompanhava com os olhos um balão que subia aos céus, caiu, distraído, num poço, e quebrou uma perna. Tiveram de amputá-la acima do joelho.

Novamente Aurélia teve a intenção de acabar com o noivado e novamente o amor triunfou. O casamento foi transferido e ela deixou que o tempo corresse.

Outra infelicidade aguardava o noivo caipora. Caruthers perdeu um braço quando de uma descarga imprevista de um canhão, numa festa cívica. Ainda na convalescença. três meses depois, teve o outro esmagado numa prensa agrícola.

O coração da pobre Aurélia foi horrivelmente machucado por essas verdadeiras calamidades. Era enorme a sua aflição, por ver seu jovem noivo abandoná-la pedaço por pedaço e imaginar que, com esse sistema de progressiva redação, com pouco nada mais restaria do rapaz. E doía-lhe verificar que nada podia fazer por ele.

Em seu desespero, coitada, como um negociante que teima num negócio e tem prejuízo regularmente, todos os dias, Aurélia sentia um grande e profundo arrependimento por não haver casado logo de início com Caruthers. antes que ele sofresse tão alarmante depreciação. Mas, encarando a situação com ânimo firme, resolveu pôr à prova, ainda uma vez, as lamentáveis disposições do seu noivo.

Foi marcado o dia do casório e de novo turvou-se o céu com as nuvens da desilusão. É que Caruthers caiu doente com um acesso de erisipela e foi então que perdeu um dos olhos.

Os pais e os amigos da moça, tendo em vista que a sua generosa obstinação já excedia os limites normais, novamente intervieram e insistiram para que se considerasse nulo o seu noivado.

Aurélia chegou a hesitar, apesar da sua imensa bondade de sentimentos, porém respondeu a todos que, refletindo direito sobre o assunto, verificara que não tinha nenhuma razão de queixa contra o noivo.

Foi transferida a data do casamento, e eis que Caruthers quebra a outra perna.

Para a pobre noiva foi bem triste o dia em que, no hospital. viu os cirurgiões mandarem arrastar para um canto o saco que continha mais uma parte do corpo do seu amado.

Aurélia sentiu uma emoção cruel, percebendo que mais um pedaço do homem que iria ser seu esposo ia desaparecer. Sentiu, sobretudo, que o campo de suas afeições mais puras diminuía a olhos vistos. Contudo, não atendeu aos rogos dos seus, quanto à anulação do seu compromisso, e só fez mesmo transferir o casamento.

Enfim, poucos dias antes da data fixada, aconteceu outra desgraça. Foi o seguinte: durante o ano, os índios de Owen River arrancaram o couro cabeludo de um só homem, e este homem foi Wilhiamson Brockiridge Caruthers, de New Jersey.

Ainda assim, o pobre-diabo fez-se transportar imediatamente para a casa de sua noiva, o coração transbordante de alegria, embora tivesse perdido os cabelos para sempre. Apesar de todo o seu desgosto, ainda deu graças a Deus por haver-se salvo, mesmo por esse preço exorbitante.

A esta altura, Aurélia está indecisa quanto à atitude que deve tomar. Ainda ama o noivo – é o que ela me escreve em sua carta. O noivo ou o pedaço de noivo que lhe resta. Ama-o de todo o coração, porém sua família se opõe terminantemente ao casamento.

Caruthers é pobre e não pode mais trabalhar. Por sua vez, Aurélia não tem o necessário para que possam viver os dois juntos, com relativo conforto.

– Que devo fazer? – eis o que ela me pergunta, numa indecisão cruel.

Esta é, com efeito, uma questão delicada. Questão cuja resposta deve decidir sobre o destino de uma mulher e de um pedaço de homem.

Estou certo de que seria assumir uma grande responsabilidade responder indo além de uma simples sugestão.

Quanto custaria a reconstituição de um Caruthers completo? Se Aurélia tem algum recurso, deve comprar para o seu noivo mutilado umas pernas artificiais, um olho de vidro e uma cabeleira postiça, para torná-lo apresentável. Feito isto, seria conveniente que lhe desse um prazo improrrogável de noventa dias, ao fim do qual, se o rapaz não torcer o pescoço, poderá arriscar-se a casar com ele.

Não creio que assim procedendo Aurélia se aventure a grande risco, de qualquer maneira. Se Caruthers ainda uma vez cede à tentação estranha de quebrar alguma coisa sempre que se lhe apresenta a ocasião propícia, sua próxima experiência na certa será fatal, e então a pobre noiva poderá ficar tranquila, casada ou não. Casada, as pernas de pau e outros objetos, propriedade do defunto, ficarão como herança para a viúva, e assim Aurélia não perderá nada, a não ser, na realidade, o último pedaço vivo dum esposo honesto e infeliz, que durante a vida toda não fez outra coisa senão contentar os seus extraordinários instintos de autodestruição.

É tentar a sorte, portanto. Refleti bastante sobre o assunto, e este me parece o melhor partido a tomar no caso.

Decerto, Caruthers teria agido com acerto se houvesse tentado quebrar o o pescoço logo da primeira vez, tratando de fazer coisa definitiva. Já que escolheu outro método, dispondo-se a prolongar o sacrifício o mais possível, não se pode criticá-lo, por haver feito o que lhe pareceu melhor. Deve-se é procurar tirar o melhor proveito das circunstâncias, sem o menor ressentimento.

quinta-feira, 7 de março de 2019

J G Araujo Jorge (Trovas de Amor)


1
Ah, pudesse eu ser o mar
que te envolve e acaricia
e que te pode beija
todinha... como eu queria!

2
Ah, quando escuto teus passos
meu coração se acelera,
que um só minuto em teus braços
compensa a angústia da espera!

3
Amor de carne e de beijo,
em que, bem sei, já não crês.
Mesmo em sonho, ainda vejo,
Tu, nem na lembrança o vês.

4
Amor que sofro, que almejo,
mata-me logo de vez!
Longe que estejas, te vejo,
Ao teu lado, nem me vês...

5
Amor que tudo promete,
falso amor das Colombinas:
- juras e beijos: confete!
Abraços - de serpentinas!

6
Antes verdade isto fosse:
dizer que não penso em ti...
Mas basta ver-te, e acabou-se!
Me esqueço que te esqueci.

7
Às vezes não acredito:
- como há de findar assim
o nosso amor infinito ,
se o infinito não tem fim?

8
Assim mesmo te agradeço
depois que tudo passou,
os momentos verdadeiros
que o falso amor deixou...

9
Assim tão só, como eu fico,
tão sem ti, neste amargor,
quem dirá que eu já fui rico,
milionário de amor?!

10
Bendigo o amor e percorro
seu caminho, que conduz
a esse calvário em que morro
nos teus braços, minha cruz!

11
Como o quadro na moldura,
como a rosa no botão,
como Deus na criatura,
- estas no meu coração.

12
Definir a eternidade
é fácil, já a defini:
é o instante de saudade
que eu vivo longe de ti.

13
Digo em vão que te maldigo
( ó pretensão tola e louca! )
- e tudo o que penso e digo
vira trova em minha boca!

14
Disto a ninguém dou a palma
- eu te conheço melhor:
desnudei-te o corpo, a alma,
sei-te, inteirinha, de cor...

15
Dúvidas cruéis, verdadeira,
angústias turvas, espessas...
Chego a querer que não queiras
pra que depois não me esqueças...

16
E dizer que foste um dia
tudo o que eu quis... e foi meu...
E hoje... nem és poesia
que foi tua... e te esqueceu...

17
Eis uma flor, que em meu peito
mudou de espécie, em verdade
Era amor, - amor- perfeito!
E acabou sendo... saudade!

18
Em contrição te contemplo
deusa a quem vou adorar...
Meu coração, é o teu templo,
meu amor, o teu olhar!

19
Era tanto o que eu pedia?
Por que negavas assim?
Afinal eu só queria
que tu te desses à mim...

20
Este amor nunca se apaga:
é chama que me incendeia,
é espuma a florir na vaga,
é vaga a brincar na areia.

21
Explica-me tu, querida,
este absurdo, por favor:
- ser Senhor de tua vida
e Escravo do teu amor?

22
Foi Carnaval, riso e cor,
- menos sonho que alegria...
E o que restou desse amor?
Nada mais que fantasia.

23
Foi um amor de verdade
sei agora, ao ver a flor,
pois esta flor, - a saudade –
só nasce em cova de amor...

24
Foram horas bem vividas
que os dois souberam colher;
se foram ou não fingidas,
que importa agora saber?

25
Fui tudo para esse amor
belo, puro, cruel, devasso...
Fui pirata, fui pierrot,
fui arlequim, fui palhaço...

26
Louco de amor, te busquei,
e ao te encontrar, percebi
que não fui eu que te achei;
eu, sim, é que te perdi.

27
Mentimos. Estamos quites
Eu menti, mentiste, eu sei.
E embora não acredites
mesmo mentindo eu te amei.

28
Mentiste? Foste mesquinha?
Que importa se já não cremos?
Importa é que foste minha
que eu fui teu, e que vivemos!

29
Mentiste. A felicidade
só mentida, assim se expande...
Nem podia ser verdade
felicidade tão grande.

30
Moeda de estranho valor,
que o coração faz cunhar,
quanto mais se gasta o amor,
mais se tem para gastar...

31
Na despedida - com pressa -
escrever me prometeste.
Esqueceste da promessa,
ou apenas me esqueces-te?

32
Não há remédio: estou doente.
É doença este amor por ti!
Não te esqueço, e justamente
por pensar que te esqueci.

33
Não voltes, pois se voltasses
não me verias aqui...
É que hoje sou muitas faces,
mas, por dentro, já morri...

34
Nesta trova tão singela
meu coração vai trair-se...
Quer dizer o nome dela,
mas, para que iludir-se?

35
No teu olhar há dois sóis,
na tua alma, um mal-me-quer,
e há duas luas redondas
no teu corpo de mulher...

36
Nos teus lábios, há dois beijos,
Nas tuas mãos, há dois ninhos...
Nos teu olhos: dois desejos,
no teu destino: caminhos...

37
Nossos dedos: doce trança...
Um balanço: nossos braços...
E eis a rede da esperança
a emaranhar nossos passos...

38
Ó meu amor, por quem choro,
louco e cego de desejo.
- Quanto mais louco, te adoro!
- Quanto mais cego, te vejo!

39
Os meus olhos pões à provas
em desafios fatais...
Teus olhos, são duas trovas
que em silêncio cantam mais...

40
Para ler a minha sorte
e saber se é má ou bela,
com as minhas mãos se importe:
vai ler cigana, as mãos dela.

41
Parece coisa de louco...
Como explicar na verdade
que o amor, que durou tão pouco,
me doa uma eternidade?

42
Pecado ? Afirmo e te juro,
é palavra sem valor,
pois nada existe mais puro
que se pecar... por amor!

43
Pensei que o mundo acabasse
Felizmente era mentira!
- Apenas virara a face
de um disco que eu já ouvira...

44
Podes ter outro Senhor,
até mais rico que um Rei,
mas nunca mais outro amor
há de te dar quando dei.

45
Por ironia maior,
sorriste do meu desgosto,
e sepultaste este amor
nas covinhas de teu rosto...

46
Porque sabes que te cobro
tu te atrasas ao chegar,
e assim me pagas em dobro
os beijos que tens que dar...

47
Quanta prodigalidade!
Em poucos meses, querida,
gastamos felicidade
que dava pra toda a vida!

48
Que eu não tenho coração
não és tu, sou eu que te digo...
- Como hei de ter coração
se tu o levas contigo?

49
Que há de ser esse teu nome
que repito sem querer?
- Substantivo ? Pronome?
Ou verbo, de meu viver?

50
Quis tornar-me um trovador
para dizer que ela é minha,
mas tudo em vão, meu amor
não coube numa quadrinha.

51
Resta um consolo: pensar
no amor que juntos colhemos...
Nem Deus nos pode tirar
os instantes que vivemos!

52
Rosas tolas, tão vaidosas,
que em belas hastes vicejam...
Vem, amor, olha estas rosas,
quero que as rosas te vejam...

53
São céus e abismos profundos
nem eu posso descrevê-los:
mergulho em teus olhos fundos
e me afogo em teus cabelos!

54
Sorris tão perto... Sorrindo,
(ó estranho magnetismo!)
como que em mim vou sentindo
essa vertigem do abismo!

55
Tanto esperei, por meu mal...
Voltaste... E qual o valor?
- se eu hoje sei afinal
que não te quis o outro amor...

56
Uma quadrinha é uma cova
onde a poesia é uma flor,
por isso é que numa trova
vou sepultar este amor.

57
Vida amarga! E na amargura
da vida, eu pensei querida:
- quem dera a tua doçura
para adoçar minha vida!

58
Voltando, ( e a julgo perdida...)
- de onde quer que você ande
esta minha pobre vida
tiraria a sorte grande.

Fonte:
J. G. De Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. IV -  1. Edição, 1965.

Jorge Amado (Mar Morto) Primeira Parte

Resumo comentado por Jayrus Luna

Mar Morto pertence a primeira fase do autor: depoimentos líricos, com predominância do elemento sentimental, sobre rixas, e amores de marinheiros.

A história se passa no Cais da Bahia, onde viviam os marinheiros, e um dos mais antigos era Seu Francisco que criava o sobrinho Guma, ensinando-lhe as leis do mar. Guma, com o tempo, tomou conta do saveiro chamado Valente. A fama de Guma no cais ocorreu em uma noite de tempestade, onde Guma, com o seu Valente, salvou um navio (Canavieiras) que iria naufragar. Depois disso, Guma conheceu Lívia, uma das moças mais bonitas do cais, casou-se com ela e foram morar com Seu Francisco, onde ao lado deles foram morar Rufino (um grande amigo de Guma) e Esmeralda.

Viviam muito bem, até que Guma envolveu-se com Esmeralda que o perseguia, Rufino descobriu, matou Esmeralda e depois matou-se de desgosto. Logo depois, Lívia descobriu que estava grávida. Guma, com remorso de ter traído Rufino e Lívia, pegou o Valente e foi para o mar e bateu nas pedras. Não morreu, mas o Valente ficou totalmente destruído. Lívia teve o filho que se chamava Frederico e Guma estava feliz com o filho, mas ao mesmo tempo arruinado por ter perdido seu saveiro. Sem escolha, começou a contrabandear seda (já tinha comprado outro saveiro) para os árabes. Numa dessas viagens, o filho de um dos árabes tinha ido junto para Porto de Santo Antônio, mas caiu no mar. Guma pulou no mar e conseguiu salvá-lo, mas morreu com seu ato de coragem. Lívia ficou com Frederico e o Seu Francisco, e tomaram conta do saveiro (de nome Paquete Voador) apenas com a lembrança de Guma que ficará na memória do cais, principalmente porque após sua morte as águas do mar se tornaram calmas e mortas, mas também por ele ter sido um homem de coragem e bom coração.

1ª parte

A primeira parte da obra denomina-se IEMANJÁ, Dona dos Mares e dos Saveiros, e possui doze capítulos:

Primeiro capítulo - Tempestade

Jorge Amado destaca a chegada da noite com tempestade, carregada de nuvens, lavando o cais, amassando a areia, balançando os navios atracados e maltratando, sem piedade, os negros da estiva. Todos abandonaram o cais. O preto Rufino, diante do copo de cachaça, sabia que, com a tempestade, Esmeralda não viria ao encontro dele. Mestre Manuel resolveu não sair com seu saveiro, preferiu ficar amando Maria Clara. Lívia ficou, aflita, à beira do cais, sob a chuva e o vento, esperando Guma que vinha no "Valente", desafiando a fúria dos ventos. Um saveiro virou no mar e dois homens (Raimundo e Jacques) caíram na água e morreram.

Segundo capítulo - Cancioneiro do Cais

Cessada a tempestade, Lívia continua esperando Guma e ouve os gemidos de Maria Clara dentro do saveiro com mestre Manuel. Breve ela também estaria nos braços de Guma, pois há oito dias não o via. Rufino conta a Lívia que Raimundo e Jacques morreram afogados, tendo sido seus corpos encontrados por Guma. Todos passam a compartilhar do sofrimento de Judith, mulher de Jacques, uma mulata que ficou com um filho na barriga. Maria Clara ainda soluça de amor. Judith não terá amor esta noite nem nunca mais, pois seu homem morreu no mar. Do forte abandonado, vem a música cantada pelo velho soldado Jeremias, voz possante de preto:

"A noite é para o amor...

"Vem amar nas águas, que a lua brilha...

"É doce morrer no mar...

Terceiro capítulo - Terras do sem fim

Agora, o velho soldado Jeremias entoa uma canção que diz "desgraça é a mulher que casa com um homem do mar, seu destino será infeliz". O velho Francisco conhece essa canção, pois foram quarenta anos num saveiro, e era amigo de todos daquela região. Uma vez, ao salvar uma tripulação, viu o vulto de Iemanjá. Já teve três saveiros, mas agora vivia de remendar velas e do que lhe dava Guma. Frederico, seu irmão e pai de Guma, morreu na tempestade para salvá-lo. Sua mulher Rita morreu do coração quando soube do acidente com o marido.

A mãe de Guma, que o entregou ao pai logo que ele nasceu, chega de Recife para levar o menino. Frederico, mulherengo que nem macaco, passando um mês em Aracaju e prometendo-lhe mundos e fundos, deixou-a naquele estado. Havia morrido, Guma era um filho sem pai e seria criado por ela. O velho Francisco não entregaria o seu sobrinho para uma mulher da vida. Quando foi apresentá-la ao filho, Guma pensou que aquela fosse a mulher que seu tio lhe prometera, que deitaria com ele numa cama, mesmo tendo apenas onze anos. Guma assusta-se ao saber que aquela mulher tão esperada por ele era sua mãe, pois nunca lhe tinham falado dela. Ela o chama de filho e só então Guma sente um pouco de ternura por aquela mulher. Despediu-se e nunca mais voltou. Não iria jamais com ela. Seu destino era o mar. Uma noite, Velho Francisco deixou uma mulata para Guma no saveiro. Depois, vieram outras. Somente quando Guma tinha dezoito anos, o tio contou ao sobrinho as peripécias do irmão, que vivia pelo mundo e uma vez voltou trazendo a vida de um homem na ponta da faca. Guma já era homem, pois manobrava muito bem um saveiro.

Quarto capítulo - Acalanto de Rosa Palmeirão

Neste capítulo, Jorge Amado dá ênfase à história dessa mulata que possuía um ABC com as suas aventuras, contadas por todos, principalmente pelo velho Francisco. Sua fama corria o mundo, e todo marinheiro a conhecia: navalha na saia, punhal no peito, deu em seis soldados, comeu vinte prisões, bateu em muito homem. Andava pelo Recôncavo, sul do Estado e Rio de Janeiro. Uma flor (uma rosa palmeirão) que trazia sempre no vestido herdou-lhe o nome. Não aparecia há anos.

Certa vez, na terceira classe de um navio, chegou do Rio de Janeiro e foi o centro das atenções, reviu a todos e conheceu Guma (tinha-o visto ainda menino) a quem confessou que queria ter um filho e com quem viveu uns tempos. Dessa vez, contou que, vivendo com um tal de Juca, um cabra frouxo que havia apanhando dela invadiu a casa com mais seis homens querendo bater no Juca e abrir a vela. Todos apanharam. Na delegacia, o delegado, que era baiano, já conhecia sua a fama de Rosa Palmeirão. Juca foi-se embora de medo.

Quinto capítulo - Lei

Uma nova tempestade assustou os homens do cais, proibindo viagens e dando prejuízos. Num dia igual a esse, morreu João Pequeno, o mestre de saveiro que mais conhecia a profissão naquele cais. O governo deu uma pensão à mulher dele, cortada por economia. Aparecia nas noites de tempestade.

Xavier, mulato troncudo, chegou no seu saveiro Caboré. Quando lhe perguntam o porquê daquele nome, ele explica, meio alterado: "Foi por causa de uma mulher". Ela o chamava de Caboré, mas ele não sabia por quê. Um dia, sem nenhum motivo, foi embora.

Godofredo, comandante da Companhia, odiado no cais por perseguir a todos, ofereceu duzentos mil réis, mais cem mil réis do seu bolso, para um prático que trouxesse o "Canavieiras", que estava fora, sem poder entrar e pedindo socorro. Seus dois filhos estavam dentro. Guma aceitou o desafio, resgatou o saveiro e salvou a tripulação. A partir desse episódio, ganhou fama no cais da Bahia.

Sexto capítulo - Iemanjá dos cinco nomes

Ninguém no cais tinha um só nome, inclusive Iemanjá, que tinha cinco nomes doces, conhecidos por todos:

IEMANJÁ, seu verdadeiro nome, dona das águas, senhora dos oceanos.

DONA JANAÍNA, para os canoeiros.

INAÊ, para os pretos, seus filhos mais diletos.

PRINCESA DE AIOCÁ, para quem os pretos também faziam suas súplicas.

DONA MARIA, para as mulheres do cais, as mulheres da vida, as mulheres casadas, as moças que esperam noivos.

O pai de santo Anselmo era quem organizava as festas de Iemanjá, presidia as macumbas e, com ordem dela, curava as doenças. No Dique, nas Cabeceiras, em mar Grande, em Gameleira, em Dom Despacho e na Amoeira, seu dia é 2 de fevereiro. Já em Monte Serrat, onde a festa é a maior, seu dia é 20 de outubro. Porém todos se uniam para festejar Iemanjá.

Sétimo capítulo - Um navio ancorou no cais

"Um navio ancorou no cais e nele Rosa Palmeirão foi embora." Alguém a chama de bicha doida, pois só vivia correndo o mundo. Num grupo de conhecidos, Guma, cabisbaixo, é zombado por Maneca e Severiano que, ao ser socado por Guma, puxou de uma faca.

"Severiano encostou-se na parede do mercado, faca na mão, e gritou para Guma:

- Manda Rosa brigar comigo que tu não é homem."

Apesar de Guma pular, o pé de Severiano alcançou-o na boca do estômago. Rodolfo interveio e salvou Guma da morte. Rodolfo, malvisto no cais, chamado por muitos de ladrão, conta a Guma as aventuras do velho Concórdia, seu pai, que tinha uma filha, agora sua irmã, que ele não conhecia. Ela queria ver Guma para agradecer-lhe, pois alguns da tripulação do "Canavieiras" (navio salvo por Guma) eram seus parentes. Na saída, Guma pergunta:

"- Como é o nome dela?

- Lívia!" - respondeu Rodolfo.

Traíra morreu, vítima de um tiro, numa confusão, em um prostíbulo, em uma das cidadezinhas do Recôncavo (Cachoeira), após ter sido socorrido por Guma, que o conheceu na ocasião. No momento da morte, lembrou-se das filhas: Marta, Margarida e Rachel.

Oitavo capítulo - Marta, Margarida e Rachel

Aqui, o autor destaca dr. Rodrigo, que era de família de marinheiros. Seus pais e avós cruzaram os mares como meio de vida. Era magro e fraco, incapaz de levar um saveiro pelas águas; por isso, tratava da moléstia dos marinheiros e tirava até gente da cadeira. Era estimado no cais. Era também poeta, mas somente a professora Dulce sabia que ele fazia poemas sobre o mar. Todos esperavam que os dois se casassem; até saíam e conversavam.

Jorge Amado destaca também as filhas de Traíra (o que morreu com um tiro, em Cachoeira). Marta tinha dezoito anos, cosia peças, estava preparando um enxoval à espera de um noivo. Margarida nadava na beira do rio; Rachel era a menor, de quatro anos, brincava com uma boneca e não sabia pronunciar direito as palavras.

Nono capítulo - Viscondes, Condes, Marqueses e Besouro

Coloca-se em evidência a cidade de Santo Amaro, pátria de muito barão do Império, viscondes, condes e marqueses. Pátria também de gente humilde do cais, pátria de Besouro, o mais valente dos negros do cais, que derramou sangue, esfaqueou, atirou, lutou capoeira e foi morto perto dali, à traição, em Maracangalha, cortado todinho de facão. Virou uma estrela.

No dia em que Traíra morreu, Guma estava para ir ver Lívia, que foi à festa de Iemanjá somente para vê-lo. Lívia nasceu na capital, a cidade das sete portas, onde nascem as mulheres mais lindas do cais. Guma assumiu um compromisso com Rosa Palmeirão: ter um filho com Lívia para Rosa ajudar a criar.

Décimo capítulo - Melodia

Guma fez boa viagem em busca de Lívia, a mais bela mulher que seria oferecida ao mar. O "Valente" correu, e já brilham as luzes da Bahia, Guma já ouve o baticum dos candomblés, parecia ouvir a risada clara de Lívia.

Décimo primeiro capítulo - Rapto de Lívia

Guma alimentava seis meses de um desejo intenso. Chegando de Santo Amaro, Rodolfo levou-o para ver Lívia, que estava bela e tímida. Os tios dela, que tinham uma pequena quitanda e que foram salvos por Guma no acidente com o "Canavieiras", não aceitavam o relacionamento, queriam que ele fosse embora, pois Lívia não podia esperar nada de um marinheiro mais pobre que eles.

Guma entregou a ela uma carta; na verdade, foi escrita pelo doutor Filadélfio, conhecido por todos como doutor, escrevia histórias em versos, ABCs do cais, cantigas. A resposta de Lívia veio quando ele voltava: "- Estou preparando o enxoval."

Os tios proibiram Guma de visitá-la, e Rodolfo sugeriu que ele a raptasse, que a levasse para Cachoeira e casasse na volta. Combinaram tudo para uma semana. E assim se fez. Na ida, preso ao leme do "Valente", sente as carícias dos cabelos dela.

Décimo segundo capítulo - Marcha nupcial

Rodolfo acalma os tios de Lívia, que estavam revoltados, e pede a Guma que faça sua irmã feliz. O casamento seria daí a sete dias, na igreja de Monte Serrat e no fórum.

O velho Francisco ficou danado, pois sabia que um marinheiro não se devia casar. Iria embora. A mulher de Guma poderia não gostar de que ele continuasse morando ali. Mas não foi. Ali mandava Guma. Doutor Filadélfio bebeu no Farol das Estrelas à saúde de Guma e de sua futura.

No dia do casório, o cortejo entrou na casa de Guma. Jeremias trouxera o violão, e o negro Rufino, sua viola. Cantaram as canções do mar; desde aquele dia, que a noite é para o mar. Lívia jurou que seu filho não seria marinheiro.
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Continua… Segunda Parte: O Paquete Voador

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