sexta-feira, 21 de junho de 2024

Recordando Velhas Canções (Gondoleiro do amor)


Compositores: Castro Alves/ Salvador Fábregas

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,
Ama um canto o pecador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
- Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!? ...

Teu amor na treva é - um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa - nas calmarias,
É abrigo - no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
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O Gondoleiro do Amor: Uma Ode à Paixão e à Beleza
A música 'O Gondoleiro do Amor', interpretada por Tonico e Tinoco, é uma bela e poética declaração de amor. A letra é rica em metáforas e imagens que evocam a profundidade dos sentimentos do narrador por sua amada. Os olhos da amada são comparados a noites sem luar e ao negrume do mar, sugerindo mistério e intensidade. A figura do gondoleiro, tradicionalmente associada a Veneza e ao romance, é usada para simbolizar o papel do narrador como alguém que navega pelos mares do amor, guiado pela beleza e pelo encanto de sua amada.

A voz da amada é descrita como uma cavatina, uma forma musical lírica e expressiva, que ressoa nos palácios de Sorrento. Esta imagem evoca uma sensação de serenidade e harmonia, como se a voz dela fosse capaz de acalmar e encantar, assim como as ondas beijam a praia e o vento. A música também faz referência às noites italianas, conhecidas por sua beleza e romantismo, reforçando a ideia de que o amor do narrador é uma experiência sublime e quase celestial.

O sorriso da amada é comparado a uma aurora, trazendo luz e esperança nas tempestades da vida. Esta metáfora sugere que o amor dela é uma fonte de conforto e alegria, mesmo nos momentos mais difíceis. A letra continua a explorar a sensualidade e a intimidade do relacionamento, com imagens do seio da amada como uma vaga dourada ao clarão da lua. O amor é descrito como um astro na treva, uma canção no silêncio, uma brisa nas calmarias e um abrigo no tufão, mostrando que ele é uma força constante e reconfortante em todas as circunstâncias. A música termina com uma declaração de amor incondicional, onde a amada é vista como uma rosa, um canto, uma sombra e uma estrela, encapsulando a profundidade e a beleza do sentimento do narrador. (https://www.letras.mus.br/tonico-e-tinoco/1722731/)

Abbie Phillips Walker (Como A Velha Bruxa Neda Roubou A Lua E O Sol)

Era uma vez, há milhares e milhares de anos, imagino, pois ninguém nunca ouviu falar da Bruxa Neda hoje em dia, uma velha bruxa chamada Neda costumava pular em sua vassoura com outra vassoura na mão. Ela voava pelo céu, afastando as teias de aranha, como ela as chamava.

O que ela fez mesmo foi afastar as nuvenzinhas de chuva que as estrelas usavam como véus quando se cansavam de brilhar.

“Você tirou nossos véus de nossos rostos”, disseram as estrelinhas, bastante zangadas com a velha Bruxa Neda. “Nós os queremos de volta. Sua velha bruxa perversa, vá embora, vá embora!

Mas a Bruxa Neda apenas dava uma risada cacarejante e continuava com sua vassoura, varrendo as teias de aranha. “Estrelinhas tolas,” disse a velha Bruxa Neda, “elas teriam o céu em um estado muito desarrumado se não fosse por mim. Eu tenho que varrer todas as noites. Se não o fizesse, o céu estaria cheio de teias de aranha. ‘Véus’, de fato! Essas coisinhas tolas não sabem a diferença entre um véu e uma teia de aranha.”

Uma noite, todas as estrelas estavam usando seus véus quando a velha Bruxa Neda apareceu com sua vassoura e os levou embora. As estrelinhas ficaram tão zangadas, que esqueceram suas boas maneiras, e muitas delas correram para a velha Bruxa Neda, lançando pequenas flechas afiadas em seu rosto e fazendo-a piscar e piscar para que ela não pudesse ver para onde estava indo. Ela esbarrou na lua, que estava saindo de trás de uma nuvem para ver o que estava acontecendo.

“Olhe para onde você está indo, velha bruxa,” ela gritou.

A velha Neda largou a vassoura e tentou agarrar a lua, mas também a acertou bem no nariz.

“Sai, sai, sai! Solte meu nariz!” ela gritou, mas a velha Bruxa Neda não soltou. Ela se segurou e a carregou para sua casa, no topo de uma alta montanha.

“Vou dar motivo para essas estúpidas estrelas chorarem agora”, disse a velha Neda, enquanto abria um armário escuro e jogava a lua dentro.

“Elas não terão luar por um tempo, e se eu conseguir o sol, posso ter as coisas do meu jeito no céu e fazer aquelas estrelas se arrependerem de terem sido tão rudes comigo esta noite.”

No dia seguinte, quando o sol brilhava, e sem pensar no mal que lhe poderia acontecer, a velha Neda pôs os óculos fumê, o boné de cano alto e uma capa comprida e preta.

Então ela pulou em sua vassoura e voou direto para o sol. Claro, as estrelas estavam adormecidas e não podiam avisar o sol, e ele pensou que era uma nuvem negra que ele viu navegando em sua direção.

“Ah! agora posso tirar uma soneca”, disse. “Aí vem uma nuvem negra atrás da qual posso me esconder por um tempo. Eu fico com tanto sono brilhando o dia todo.” E então o sol deu um bocejo só para se preparar para sua soneca.

Mas algo aconteceu, ele não sabia exatamente o quê, mas antes que pudesse parar o bocejo, ele sentiu um puxão, e então ele foi coberto por algo preto e zuniu a uma velocidade terrível que ele não sabia para onde.

“Pronto, acho que posso fazer as coisas como quiser agora”, disse a velha Bruxa Neda enquanto tirava o sol de debaixo de sua capa, piscando e piscando e se perguntando o que havia acontecido com ele.

Dentro do armário escuro com a lua, ela jogou o sol e fechou a porta.

Claro, as estrelas acordaram assim que escureceu. E escureceu logo quando a velha Neda roubou o sol, então as estrelinhas brilharam e piscaram a noite toda e o dia todo porque o sol não nasceu, e elas não souberam quando a noite acabou.

Na noite seguinte, elas piscaram, e no dia seguinte, mas então começaram a ficar tão sonolentas que não conseguiam manter os olhos brilhantes abertos, e uma por uma, começaram a cochilar.

“Eu me pergunto qual pode ser o nosso problema?” disse uma estrela, tentando se manter acordada. “Esta é a noite mais longa que já vi.”

“E eu me pergunto onde está a lua?” disse outra. “Se pudéssemos vê-la, poderíamos descobrir por que o sol está tão preguiçoso esta manhã.”

A velha bruxa Neda estava voando, escondida sob sua capa preta, e ela riu para si mesma ao ouvir o que as estrelas diziam.

“Posso te dizer onde está o sol e a lua também”, disse ela, tirando a capa e se mostrando para as estrelas. “Tenho os dois trancados em um armário em minha casa”, e saiu voando em sua vassoura, deixando as pobres estrelinhas sem palavras de espanto.

“Algo deve ser feito e deve ser feito de uma vez”, disse uma estrela. “Se deixarmos aquela velha bruxa ficar com o sol e a lua, quem sabe o que será de nós.”

“Mas o que nós podemos fazer?” perguntou outra estrela. “Aqui estamos nós no céu e a casa da velha Neda fica no alto de uma montanha. Além disso, ela os vigiará de perto, pode ter certeza. O que podemos fazer e o que será de nós?”

“Uma de nós deve descer lá e deixá-los sair”, disse a primeira estrela. “Agora, qual de nós irá? Essa é a primeira coisa a resolver.”

Ninguém respondeu por um minuto, e então uma estrelinha disse timidamente: “Estou disposta a ir, mas sou tão pequena que acho que não poderia fazer nenhum bem”.

“Você é melhor para ir, exatamente porque você é pequena”, disse a primeira estrela. “E agora vou lhe dizer como isso pode ser feito.

“A Velha Bruxa Neda estará aqui esta noite, pode ter certeza, porque ela está feliz agora que tem o sol e a lua e quer ver como estamos infelizes.

“Quando ela vier esta noite, devemos fazer um grande alvoroço e chorar porque estamos muito chateadas, sem saber se é noite ou dia, e implorar que ela nos ajude. Ela voará perto de nós, e quando ela estiver muito perto da Pequena Estrela, devemos lamentar e chorar e atrair sua atenção, e então a Pequena Estrela deve pular na vassoura bem atrás da velha Bruxa Neda…”

“Oh! oh! oh!” disseram todas as estrelas. “Oh! oh! oh!” pois eles estavam com medo da velha Neda. Mas a estrelinha não gritou; ela apenas piscou e piscou e ouviu o que a primeira estrela disse.

“Como eu disse,” continuou a primeira estrela, “Estrelinha você deve pular na vassoura logo atrás da velha Bruxa Neda e então fechar os olhos até que a velha Neda chegue em sua casa no topo da montanha.

“Claro, ela pode só dar uma olhada então, apenas para ver onde a velha bruxa vai, e a Estrelinha deve ficar bem quieta até a velha Neda ir para a cama, pois ela geralmente dorme durante o dia.

“Quando tudo estiver quieto e você tiver certeza de que a velha bruxa Neda dorme, então você deve andar com muito cuidado e silêncio até encontrar o armário onde o sol e a lua são mantidos prisioneiros e destrancar a porta.”

“Mas de que adianta isso?” perguntou uma estrela. “Eles vão sair do armário, mas como eles vão voltar para seus lugares no céu? A velha bruxa nunca os trará, é claro.

“Espere, minha querida irmã, e eu direi a você como isso pode ser feito”, disse a primeira estrela.

“Depois de liberar o sol e a lua, estrelinha, você deve se apressar até o local onde a velha bruxa guarda sua vassoura mágica e pular nela. Alise-a três vezes em um sentido e depois três vezes na direção oposta, e ela obedecerá a você.

“Você deve ter cuidado, no entanto, para alisá-la apenas quando você já tiver o sol e a lua em segurança com você. Mas silêncio, silêncio! aí vem a velha Bruxa Neda.

A velha Bruxa Neda cacarejou e riu quando ouviu o lamento e o choro das estrelas pela perda do sol e da lua.

“Oh, devolva-os para nós, devolva-os para nós!” elas choraram. “Nunca mais seremos rudes com você, mesmo quando você tirar nossos véus.”

“Ah-há!” disse a velha bruxa, rindo alto. “Acho que vocês não serão rudes comigo, minhas estrelinhas bobas, pois pretendo manter a velha lua e o sol trancados no meu armário e fazer vocês brilharem o tempo todo até ficarem com tanto sono que caiam do céu. Há, há, há!

“Oh! oh! oh!” gritaram as estrelas, todas juntas, e a velha Neda voou perto delas para ver melhor como elas sofriam, e então a Estrelinha fez como a primeira estrela lhe disse para fazer, e no instante seguinte ela estava voando junto com a velha Bruxa Neda em direção a sua casa no topo da montanha.

A Estrelinha olhou só uma vez e viu a velha Neda entrar em casa. Então ela fechou os olhos e esperou até ter certeza de que a bruxa estava dormindo.

Com muito, muito cuidado, ela abriu a porta e entrou. Então ela olhou em volta e, por baixo de uma porta, viu uma luz muito brilhante e soube que atrás daquela porta estavam o sol e a lua.

A chave estava na porta e demorou apenas um segundo para girá-la. “Silêncio!” disse a pequena estrela. “Eu vim para libertá-los. Não façam barulho, mas sigam-me.”

A estrelinha tirou de uma cadeira a grande capa preta da velha Bruxa Neda e jogou-a sobre o sol e a lua para que sua luz forte não despertasse a velha bruxa, e em um minuto estavam todos sentados na vassoura, enquanto a estrelinha alisava três vezes para um lado e três vezes para o outro. E então disse: “Vá para o céu. Leve-nos para casa, boa vassoura.”

Eles voaram para longe e, em pouco tempo, o sol estava brilhando no céu como se nada tivesse acontecido com ele, e as estrelas adormeceram e dormiram profundamente; elas estavam tão cansadas.

A estrelinha naquela noite ocupou seu lugar no céu muito discretamente, mas as outras estrelas queriam saber tudo sobre sua aventura.

“Oh, eu apenas fiz como a primeira estrela me disse,” respondeu modestamente a Estrelinha, “e trouxe de volta o sol e a lua, só isso.”

“Você foi uma estrelinha corajosa”, disse a primeira estrela, “e como recompensa, a vassoura da velha bruxa foi transformada em estrelas, que serão transformadas em uma grande cruz, e nesta cruz para sempre você brilhará. E você terá mais brilho do que qualquer uma de nós, brava, brava estrelinha.”

Claro, a velha bruxa, tendo perdido sua vassoura, não podia mais incomodar as estrelas, então elas brilhavam e piscavam alegremente, sempre se sentindo gratas à Estrelinha por ajudá-las a sair de seu grande problema.

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

José Feldman (Versejando) 141

 

Monteiro Lobato (Colcha de Retalhos)

— Upa!

Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol. A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através de um cristal despolido.

Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros marginais.

Agora, uma porteira.

Ali, a encruzilhada do Labrego.

Tomo à direita, direto ao sítio de José Alvorada.

Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato… Será a filha de Alvorada?

— Bom dia, menina! O pai está em casa?

É a filha única. Pelo jeito não vai além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas noruegas. Mas arredia e até como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água neste córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

— O pai está lá? — insisti.

Respondeu um “está” enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua casa um jornal.

Mas a vida foi-lhe áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de tudo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

Se o marido deu assim em urumbeva (caipira), a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes — uma para batizar, outra para casar, uma terceira para enterrar.

Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às pessoas. Fora uma vez à vila com vinte dias, para batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada. Que descalabro!…

Da casa velha aluíra (derrubara) uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas (enfurnadas) nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

Bati palmas.

— Ó de casa!

Apareceu a mulher.

— Está seu Zé?

— Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na maçaranduba do pasto. Apeie e entre.

Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei. Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara — e uma cor… Estranhei-lhe aquilo.

— Doença! — gemeu. — Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

— Metade é cisma — disse-lhe para consolo.

— Eu é que sei! — retrucou-me suspirando.

Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou:

— Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!…

— Mecê é gabola porque nunca padeceu doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova… Aí vem Zé.

Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a cara.

— Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos na caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

— Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

— Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”. Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não…

A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.

Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

— Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem — concluiu com ternura.

A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

Aproximei-me, admirado.

— Sim, senhora! Com setenta anos!

Sorriu, lisonjeada.

— É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço…

Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

— Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

Pingo d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo — escolha com rapadura.

— Está bem — rematei, levantando-me do mocho de três pernas. — Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

— Que dá, sei que dá — mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje…

— Nesse caso…
= = = = = = = = = 

Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.

— Como isso? Uma menina tão acanhada!…

— É para ver! Desconfiem das sonsas… Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi ser “moça”, a pombinha…

O incidente ficou a azoinar-me (perturbar-me) o bestunto (cabeça). À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

Fui.

Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.

— Ó de casa! — gritei.

Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra encurvada e trêmula.

— Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

— Tem coragem de estar aqui sozinha?

— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se — murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

— O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…

A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

— Viver setenta e dois anos para acabar assim… Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo, trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

— Que mais agora? — murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha… Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

— Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu.

“Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda…

“Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "óó aquina"…

“Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

“Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

“Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

“Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”

A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

— E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.

Depois:

— Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

— Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.

— Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

— É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

— Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.

Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.

Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!…

E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

Ela por fim quebrou o silêncio.

— Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao íntimo do coração.

Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?

Pieguices…

Fonte: Monteiro Lobato. Urupês. Publicado originalmente em 1918. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Fui no Itotoró)


Cantiga Popular

Fui no Itororó beber água
Não achei
Achei linda Morena que no Itororó deixei

Aproveita minha gente
Que uma noite não é nada
Se não dormir agora
Dormirá de madrugada

Oh, Mariazinha
Oh, Mariazinha
Entra nesta roda
Ou ficarás sozinha!

Sozinha eu não fico
Nem hei de ficar!
Por que eu tenho Joãozinho
Para ser o meu par!
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Águas do Itororó: A Dança da Vida e do Amor nas Cantigas Populares
A música "Fui no Itororó" é uma tradicional cantiga popular brasileira, cujas origens se perdem no tempo, mas que continua sendo transmitida de geração em geração. A letra simples e repetitiva é característica das cantigas de roda, que são cantadas em jogos infantis e brincadeiras populares. O Itororó, mencionado na música, pode ser interpretado como um lugar fictício ou como uma referência a algum local específico, mas em um contexto mais amplo, simboliza um destino ou um objetivo que se busca alcançar.

A busca pela água no Itororó e o encontro com a 'linda Morena' podem ser vistos como metáforas para a busca por amor e companheirismo. A água, essencial para a vida, é comparada ao amor, que é vital para a existência humana. A música também destaca a importância da socialização e da participação em comunidade, como visto no convite para Mariazinha entrar na roda e não ficar sozinha, reforçando a ideia de que a vida é melhor compartilhada.

Além disso, a cantiga aborda a noção de aproveitar o momento presente ('que uma noite não é nada'), sugerindo que a vida é efêmera e que devemos desfrutar de nossas relações e alegrias enquanto podemos. A referência ao dormir 'de madrugada' pode ser uma alusão ao ciclo da vida, onde cada fase deve ser vivida em seu tempo. Em suma, "Fui no Itororó" é uma celebração da vida, do amor e da comunidade, elementos essenciais da cultura popular brasileira. (https://www.letras.mus.br/cantigas-populares/983990/

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “17”

 

Jaqueline Machado (Tirei o dia para descansar)

Tirei o dia para descansar. Mas não consegui. Ao tentar relaxar senti a alma, o coração e o corpo, doloridos e pesados. 

Tentei não focar nas dores. Nem dar ouvidos aos ruídos do passado, mas perturbações não me deixavam quieta. E descansar parecia impossível. 

Ainda assim, resiliente, me mantive positiva. E pensei: “amanhã as dores cessam, os ruídos se calam. E meu corpo entenderá que merece desfrutar um pouco de alivio e descanso". 

Só que no dia seguinte acordei ainda mais exausta. E não entendi o porquê, já que meu pensamento estava sintonizado em coisas positivas, como fé e amor. 

Tento não dar mais razão às trevas do que às luzes do destino, no entanto essa dualidade, por vezes – muitas vezes toma conta do meu ser. E transforma a leoa que há em mim, numa gatinha. Uma gatinha sensitiva que, depois de absorver as dores do mal que há no mundo, precisa dormir para se recompor. 

Demorei a relaxar, mas consegui. Dormi umas doze horas e acordei refeita. Voltei a ser leoa, a rainha da minha floresta. Botei alguns intrusos pra correr. E fui à caça de minha felicidade.  Mas logo raposas, serpentes e ratazanas deram início a novas emboscadas. Me mantive fria. Intacta, armada de coragem. E dessa vez fui eu quem os enfraqueci. Com um ruido estrondoso ceguei os olhos da inveja, cortei o veneno das más línguas e dei um basta nos vampiros sugadores de energia, que tentam confundir meus pensamentos, me trair em meus sentimentos, pensar que todo mal que está em mim, é fruto de minhas sombras. Tentam. E como tentam me colocar contra mim mesma. A fim de saírem ilesos de toda confusão que semeiam. Ah, mas estou a vigiar. Aprendi a distinguir minhas responsabilidades, das responsabilidades alheias. 

Aprendi a encarar a mulher que sou, de frente. E aceitá-la como ela é: amante da alegria, da escrita e da utopia... E nos braços desses três dons, grandes amores, que em verdade é uma trindade de luz, sempre me refaço. E volto a brilhar! 

Fonte: Texto enviado pela autora 

Recordando Velhas Canções (Cirandeiro)


Compositor: Edú Lobo

Ô cirandeiro, cirandeiro ó
A pedra do teu anel brilha mais do que o Sol
Ô cidandeiro, cirandeiro ó
A pedra do teu anel brilha mais do que o Sol
Ô cirandeiro, cirandeiro ó
A pedra do teu anel brilha mais do que o Sol
Ô cirandeiro, cirandeiro ó
A pedra do feu anel brilha mais do que o Sol

Mandei fazer uma casa de farinha
Bem maneirinha que o vento possa levar
Oi passa o Sol oi passa a chuva, oi passa o vento
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar
Mandei fazer uma casa de farinha
Bem maneirinha que o vento possa levar
Oi passa o Sol oi passa a chuva, oi passa o vento
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar

Achei bom e bonito, meu amor brincar
Ciranda maneira
Vem cá Cirandeira, vem cá balançar
Achei bom e bonito, meu amor brincar
Ciranda faceira
Vem cá Cirandeira, vem me namorar

Ô cirandeiro, cirandeiro ó
A pedra do teu anel brilha mais do que o Sol
Ô cidandeiro, cirandeiro ó
A pedra do teu anel brilha mais do que o Sol
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A Dança da Vida na Ciranda Popular
A música "Cirandeiro", interpretada por diversos artistas e grupos que resgatam as cantigas populares brasileiras, é uma expressão da cultura folclórica do Brasil, especialmente do Nordeste. A letra da canção evoca a imagem do cirandeiro, figura central na dança da ciranda, uma roda de dança tradicional onde os participantes se dão as mãos e giram ao som de músicas ritmadas e poéticas.

A referência ao "anel que brilha mais do que o Sol" pode ser interpretada como uma metáfora para a riqueza cultural e o valor imaterial que a tradição da ciranda representa, superando até mesmo a grandiosidade do astro rei. A casa de farinha mencionada na letra é uma alusão à simplicidade e à funcionalidade da vida rural no Nordeste, onde a farinha de mandioca é um alimento básico e a casa de farinha é o local onde ela é produzida. A ideia de que ela possa ser levada pelo vento sugere a leveza e a transitoriedade das coisas, mas contrasta com a permanência do movimento do cirandeiro, que continua a rodar, simbolizando a continuidade das tradições culturais.

A ciranda é apresentada como algo que encanta e convida à participação ('Vem cá Cirandeira, vem cá cirandar'), reforçando a ideia de comunidade e celebração coletiva. A música celebra a alegria e a beleza encontradas na simplicidade da vida e na preservação das tradições culturais, convidando todos a se juntarem na dança.

Lançamento de livro da Jaqueline Machado, em Portugal


Lançamento da coletânea À flor da Pele, Contos & Crônicas & Poemas em Lisboa - Portugal.

 
No dia 13 deste mês de junho, teve a live de lançamento da Coletânea Contos & Crônicas & Poemas, volume 6, com autores brasileiros, na "94ª Feira do Livro de Lisboa (Portugal) - Pavilhão Rede Sem Fronteiras H-40”. Projeto do qual também faço parte.



Quando jovem, eu sonhava escrever coisas bonitas, mas não tinha domínio sobre a escrita, já que por ser cadeirante e por outras razões particulares não pude estudar. E não sabia como realizar meu sonho.

Fui alfabetizada aos 11 anos, por uma tia chamada Almerinda, que não se encontra mais no plano físico.

Depois de uma breve alfabetização, tivemos que morar longe uma da outra. E dali em diante tive que me virar sozinha nessa constante busca pelo saber.

Apesar da dificuldade que foi estudar sozinha, meu amor pelas letras crescia cada vez mais ao longo do tempo. E depois que descobri os livros, especialmente os clássicos, como “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, “Grande Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa, “O sonho de um homem ridículo” de Fiódor Dostoiévski, entre outros, percebi que a literatura é uma paixão indissociável ao meu ser...

Sou a prova viva de que não se pode desistir dos sonhos. E que estamos no mundo para sermos felizes percorrendo o caminho que escolhemos.

Estou me sentindo feliz e honradíssima em ver minha escrita ganhar asas e chegar a
Além -Mar.

Gratidão, VIDA, por mais esta realização.
Viva a literatura!
 
- Minha gratidão também vai para a professora Cleusa Mazuim que me ajudou com a minha primeira publicação e para as poetas Zaira Cantarelli, Soninha Porto (coordenadora do projeto) e Lúcia Barcelos, escritora, poeta, trovadora e revisora dos meus livros: elas me ajudam alçar lindos voos com minha escrita.

Fonte: Texto enviado pela autora  

terça-feira, 18 de junho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 49: O baú do poeta

 

Arthur Thomaz (Perfume da saudade)


A brisa, resvalando nas brancas flores das azaleias, sussurrou teu nome. Tentando evitar a dor, fingi não ouvir, mas algo mais forte levou-me até o jardim. 

Nessa hora, o perfume da saudade impregnou meu coração, posto que é composto de essências de tormentosas paixões. 

Este inebriante aroma fixou-se indelevelmente em meu fragilizado espírito. Imediatamente, minhas amargas lembranças vieram à tona. O esforço para não chorar e não gritar esvaiu minhas forças, e neste instante, cada pedaço de minha alma transformou-se em um poço de dor.

Desesperado, gritei teu nome e nem o eco respondeu. Tentei afastar a imagem de nossos corpos abraçados, mas cada vez mais sentia que os teus braços me apertavam.

Despertei algum tempo depois, abraçado à uma touceira da alva azaleia, solitário e infeliz, rescendendo ao cruel perfume da saudade.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (Fita amarela)


Compositor: Noel Rosa

Quando eu morrer
Não quero choro, nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

Se existe alma
Se/Que há outra encarnação
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão
(Sapateia, sapateia)

Não quero flores
Nem coroa com espinho!
Só quero choro de flauta
Com violão e/com cavaquinho!
(Quando eu morrer)

Os meus inimigos
Que hoje falam mal de mim!
Vão dizer que nunca
Viram uma pessoa tão boa assim!

Não tenho herdeiros
Não possuo um só vintém!
Eu vivi devendo a todos
Mas, não paguei ninguém!

Quando eu morrer
Não quero choro, nem nada!
Quero ver raiar/ouvir um samba
Ao romper da madrugada!

Quero que o Sol
Não invada o meu caixão!
Para a minha pobre alma
Não vá morrer de insolação!

Estou contente
Consolado por saber!
Que as morenas tão formosas
A terra um dia há de comer!
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A Despedida Irreverente de Noel Rosa
A canção "Fita Amarela" de Noel Rosa é um clássico do samba que reflete a irreverência e a boemia características do compositor. A letra aborda o tema da morte de uma maneira leve e até humorística, algo que vai contra o tom geralmente sombrio e sério que esse assunto costuma evocar. Noel Rosa, conhecido por sua genialidade no samba e por suas letras cheias de duplo sentido e crítica social, utiliza a música para expressar seus desejos póstumos de uma forma peculiar.

No primeiro verso, ele rejeita o luto tradicional e pede por uma fita amarela com o nome de uma mulher gravado, sugerindo um amor marcante ou uma paixão que deseja lembrar mesmo após a morte. A menção à mulata sapateando em seu caixão e o desejo por um samba ao amanhecer em vez de choro e velas, reforçam a ideia de que a vida deve ser celebrada com alegria, mesmo no momento da morte. A música também aborda a relação de Noel com seus inimigos e dívidas, mostrando um certo desapego material e uma aceitação de sua reputação e condição financeira.

"Fita Amarela" é uma obra que desafia a visão convencional da morte, propondo uma celebração da vida e da arte do samba. Noel Rosa, com sua habilidade de composição, transforma o lamento em festa, e a tristeza em celebração, deixando uma mensagem de que a vida deve ser vivida com intensidade e alegria, valores profundamente enraizados na cultura do samba.   (https://www.letras.mus.br/noel-rosa-musicas/78664/